domingo, 30 de dezembro de 2012

Baú de Trovas V

Inspirado na bonança,
de pensamentos diversos,
o poeta é uma criança
brincando de fazer versos.
Adolfo Macedo

Que exemplo o do vaga-lume
que vive na noite escura;
quanto maior é o negrume,
mais ele voa e fulgura!
Albertina Moreira Pedro

Quem vive ofensas perdoando
e por amor tudo faz,
vai sempre em punho levando
uma bandeira de paz!
Analice Feitosa de Lima

Qual fantasia perdida
que se desfaz na amplidão,
tudo é efêmero na vida,
feito bolha de sabão!
Antônio Coutinho

Ralha o chefe, quando chego
atrasado e irritadiço...
Eu até gosto do emprego;
só não gosto é de serviço!
Antonio V. Rufatto

Sede balança amiúde
ao pesar os vossos feitos;
vereis gramas de virtude,
toneladas de defeitos.
Aristóteles Lacerda Júnior

Garimpeiro, pelos vãos
dos teus dedos que envelhecem,
muda as riquezas de mãos
para mãos que não merecem!...
Arlindo Tadeu Hagen

Destino é força que esmaga...
– Credor austero, tremendo,
manda a conta e a gente paga
sem saber que está devendo.
Barreto Coutinho

Traça os rumos com carinho,
pondo firmeza nos traços,
que a retidão do caminho
dá segurança aos teus passos.
Carolina Ramos

Veleiro de vela panda,
perdeste o rumo e, a bailar,
vais brincando de ciranda
nas águas verdes do mar!
Célio Grunewald

Já com cabelos grisalhos,
mas inda pensando em ti,
vejo a saudade em retalhos
nas cartas que recebi.
Cidoca da Silva Velho

Range a carroça, à distância,
e o boi num passo indolente
me traz lembranças da infância,
faz do passado... presente.
Cincinato Palmas Azevedo

Um abajur sobre a mesa,
na velha jarra uma flor;
um “Tango para Teresa”,
saudades de um velho amor.
Dalmir Pena

Tenho, sim, muito mais ouro
e fortuna que um ricaço:
não há no mundo tesouro
que pague as trovas que eu faço!
Darly Angélica O. Barros

Num reino que tanto mata,
onde a ambição desatina,
mesmo sem ouro e sem prata,
o rei... é quem se domina!
Diche Galvão Campos

A união se faz maior
em noite fria que tenha
uma família ao redor
de um velho fogão de lenha!
Eduardo A. O. Toledo

Assim é este mundo,
todo cheinho de loucos...
E mais este vagabundo
que te quer bem como poucos!
Francisco C. Rocha

Nem sempre a briga é conflito
quando o bom senso a conduz;
certas pedras, em atrito,
soltam centelhas de luz!
Haroldo Rodrigues de Castro

Eu prefiro a arte caduca,
pois receio a evolução.
Quanto mais ela se educa,
mais aumenta a confusão.
Humberto Del Maestro

Virtude é fazer o bem
pelo prazer de fazê-lo,
mesmo sendo para alguém
que não faz por merecê-lo.
Izo Goldman

Responde, ó Deus, pela mão
que podes ver, calejada:
– Por que há de ter tanto chão
quem nele não planta nada?
Jaime Pina da Silveira

Sacudiram minha vida,
duas coisas, te confesso:
a tua triste partida
e o teu alegre regresso.
João Batista Serra

Se alguém brigou por amor,
ou é ciúme, ou intriga...
– Quem ama não tem rancor,
e por amor ninguém briga!
José Vitor de Paiva

Se aos outros deres bom trato,
respeito, a qualquer momento,
receberás – de imediato,
o mesmo e igual tratamento.
Josias Paiva Pinheiro

Ai, meu Brasil, quem me dera
eu partir de Portugal
numa linda caravela
bem ao lado de Cabral!...
Manoel Fernandes Menendez

Respeita o empenho constante,
o eterno recomeçar
de quem erra e segue avante,
na esperança de acertar.
Maria H. C. M. Duarte

De um cantinho da Bahia,
chamado Porto Seguro,
parte o Brasil – sob a guia
de Iemanjá – rumo ao futuro.
Maria Madalena Ferreira

Numa alegria sem fim,
o meu coração criança
faz da ilusão trampolim
e mergulha na esperança...
Marta Maria P. Barros

Na epopéia de Cabral
eu bendigo a calmaria,
que, do imenso Litoral,
fê-lo aportar na Bahia.
Newton Meyer Azevedo

Sobre mulher não discutam;
seus impulsos não se medem,
as mais fracas também lutam,
as mais fortes também cedem.
Nydia Iaggi Martins

Duas lindas borboletas
persigo, em nossos idílios:
as tuas pupilas pretas,
batendo as asas dos cílios.
Orlando Brito

Saudade – espelho encantado
que mostra, aos olhos da gente,
toda a imagem do passado
revivendo no presente...
P. de Petrus

Num tormento incontrolado,
meu ciúme amaldiçoa
o teu retrato falado
nos lábios de outra pessoa.
Paulo César Ouverney

Pelas veredas singelas
da Trova e da Poesia,
se difundem as mais belas
lições de filosofia.
Roberto R. Vilela

Cansado de fazer trovas
sem que me ouvisses jamais
tentei usar armas novas
quem sabe atenda haicais.
Sérgio Serra

Pranto da noite chorosa,
orvalho feito diamante,
natureza caprichosa,
cristalizou num instante.
Silvia Reis

Nós precisamos sorrir,
mesmo sendo vergastados,
pois ninguém leva, ao partir,
os patrimônios roubados.
Swami Vivekananda

Se a família é rica ou pobre
e se o lar é acolhedor,
a gente sempre descobre
pela grandeza do amor!
Therezinha D Brisolla

Fontes:
Manoel Fernandes Menendes:
Seleções em Folha. Ano 4. N.1 – janeiro 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.2 – fevereiro 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.3 – março 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.4 – abril 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.5 – maio 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.6 – junho 2000. São Paulo/SP
Seleções em Folha. Ano 4. N.7 – julho 2000. São Paulo/SP

Wagner Rodrigues (Sonetos Escolhidos)

Sem Cais

Neste dia em que meu coração
Aflito, pulsa a dor duma saudade
Rasga no meu peito triste uma vontade
De escrever mil sonetos de paixão!

Quem me dera tamanha inspiração
Capaz de atenuar minha soledade
Esse vazio da fatalidade
Que é te ter como minha adoração!

Mas não consigo nem um só soneto!
Apenas um composto sem quarteto
Feito somente com as iniciais

De DOIS portos que num oceano agitado
Deixaram o barco do Amor naufragado
A poucos metros de UM porto sem cais!

O Vírus do Amor

Disse um dia alguém que o vírus do Amor
- Este, que reside em tese no Beijo -
É a mutação sublime do Desejo
Que antes de ser Desejo foi Calor...

Disse um dia alguém que o vírus do Amor
- Este, que se propaga no cortejo -
No início ele era apenas um Ensejo...
Mas hoje faz deste homem um trovador!

Venha menina, e beije-me em ternura
Faz-me contaminado com esta cura
Faz-me acamado de tanta alegria!

Venha menina que em meu quarto assoma
Quero desfrutar de cada sintoma
Desse vírus que alguém me falou um dia!

Menina dos Olhos

Mas quem és tu!? Como ousas me perscrutar
desta forma? Não é possível crer!
Eu estou assombrado com este poder
Que consegue tão fácil me decifrar!

Incrível quando falas sem titubear
Daquilo que ninguém te fez conhecer...
Sinceramente não posso compreender
Tão singela maneira de sondar!

Como podes ler o meu coração?
Hei de descobrir o seu grande arcano...
- Eu também quero ler teu coração!

Lance de novo o teu olhar, menina
Inda quero usar deste teu plano
Que tão incrivelmente me fascina!

Soneto

O Tempo... Quão refém dele me sinto
Quando vejo que chances preciosas
Passaram e murcharam como rosas...
Flores jogadas num jardim extinto!

Devorou-me este Tempo tão faminto!
Tragou as minhas árvores frondosas
Deixou-me só lembranças vaporosas...
O Tempo... Quão refém dele me sinto!

Triste e impassível com o passar dos anos
Vejo a morte de todos os meus planos
Que agonizaram nas rugas da face...

Em cada movimento do relógio
Eu leio com terror o necrológio
De um Sonho que morreu e não renasce!

Tesouro

Eu levava comigo, bem guardada
A jóia mais bonita deste mundo
Que perdida no mar, bem lá no fundo
Estava pelas rochas ofuscada...

E para ter a jóia cobiçada
Impelido por um querer profundo
Eu mergulhei no mar de um estranho mundo
E enfrentei a torrente mais gelada...

E na fúria de um cristão contra um mouro
Bravamente fiz o que foi preciso
Para conquistar meu grande tesouro...

Mas a Vida atacou-me sem aviso
E fez-me pobre ao levar o meu ouro
E fez-me triste ao levar teu sorriso!

Ode a Tristeza

Tão triste! Mas se no mundo a Tristeza,
tivesse formas assim tão divinas,
glorificar a Dor seria a sina
de todo homem que se curva à Beleza!

Se a Dor é assim, a Dor é a Princesa,
que ao se mostrar num pranto de menina,
faz ver que não há nada que defina
com exatidão tamanha realeza!

Teu olhar, umedecido pelo orvalho
(de um coração aflito e em retalho)
é a coisa mais singela que eu já vi!

E se a Tristeza fosse algo de valor,
esta jóia que escorre em ti, meu amor,
é mais valiosa que a prata, o ouro, e o rubi!

Despedida

Tu, que pensas mais em ti do que em mim
(E tenta convencer-me do contrário)
Não te importas com a dor do meu calvário
Só se importas se pra ti eu digo “sim”.

Veja! Por muito tempo eu rastejo assim
Ajoelhado em teu próprio santuário
Como se eu fosse um fiel sectário
Da seita que crias-te só pra mim.

E assim, fraco, carente de mim mesmo
Fico a andar pela minha vida a esmo
Enquanto vou na estrada da sua vida

Mas agora, temendo a derrocada
Eu vou precisar sair da sua estrada...
Fica em versos a minha despedida!

Na Estrada...

Na estrada que serpenteia o deserto
Que simboliza o coração humano
Lá vai o solitário com o arcano
Que o faz viajar para um rumo incerto!

Ele vai sozinho, sem ninguém por perto
Andando sem rumo, destino, ou plano
Levando o segredo que o torna insano
E buscando AQUILO que está encoberto!

E ele segue... Tal qual Dean, tal qual Sal
Ora sendo bom, ora sendo mau
Num misto de fantasia e loucura...

E arfando nesta estrada de ilusão
Ele oscila entre a orgia e a solidão
Na ávida sede de achar a cura!

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=70&x=18&y=5

Eça de Queirós (O Mandarim) Parte I

Análise da obra
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2012/04/eca-de-queiros-o-mandarim.html

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PRÓLOGO

1º AMIGO (bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira-d'água)

Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana... Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo... Façamos fantasia!...

2º AMIGO

Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta...
(COMÉDIA INÉDITA)

I

Eu chamo-me Teodoro – e fui amanuense do Ministério do Reino.

Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.

A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel «Tojal» do Estado, estas frases fáceis: «Il.mo e Ex.mo Sr. – Tenho a honra de comunicar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, Il.mo e Ex.mo Sr...»

Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafa da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido, num lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos... Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:

– Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. «Enguiço» era com efeito o nome que me davam na casa – por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo – do muito que verguei n espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil réis mensais.

Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso – como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; – mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros – quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito – como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!

Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um «pária». A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o «Diário de Notícias»; pelas tardes de Verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a pátria... Depois, nunca fui excessivamente infeliz – porque não tenho imaginação: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporação de um lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangível, ao que já fora alcançado por outros no meu bairro, ao que é acessível ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d'hôte mastiga a bucha de pão seco à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: – pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores, e comprava décimos da lotaria.

No entanto procurava distrair-me. E como as circunvoluções do meu cérebro me não habilitavam a compor odes, à maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam assim do tédio da profissão; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permitia um vício – tinha tomado o hábito discreto de comprar na Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e à noite, no meu quarto, repastava-me dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de títulos ponderosos: «Galera da Inocência», «Espelho Milagroso», «Tristeza dos Mal-Deserdados»... O tipo venerando, o papel amarelado com picadas de traça, a grave encadernação freirática, a fitinha verde marcando a página – encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingénuos em letra gorda davam uma pacificação a todo o meu ser, sensação comparável à paz penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr da água triste...

Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado «Brecha das Almas»; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:

«No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação «homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelação estranha – «tocarás tu a campainha?»

Se o volume fosse de uma honesta edição Michel-Levy, de capa amarela, eu, que por fim não me achava perdido numa floresta de balada alemã, e podia da minha sacada ver branquejar à luz do gás o correame da patrulha – teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a alucinação nervosa. Mas aquele sombrio in-fólio parecia exalar magia; cada letra afectava a inquietadora configuração desses sinais da velha cabala, que encerram um atributo fatídico; as vírgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos numa alvura de luar; no ponto de interrogação final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolável cidadela da Oração!... Uma influência sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fora da realidade, do raciocínio: e no meu espírito foram-se formando duas visões – de um lado um mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro cintilando aos meus pés! Isto era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos de uma ténue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um dicionário francês – a campainha prevista, citada no mirífico in-fólio...

Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metálica me disse, no silêncio:

– Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um forte!

O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um indivíduo corpulento, todo vestido de preto, de chapéu alto, com as duas mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo de um guarda-chuva. Não tinha nada de fantástico. Parecia tão contemporâneo, tão regular, tão classe média como se viesse da minha repartição...

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício.

Veio-me à ideia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocínio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo – como nunca acreditei em Deus. Jamais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes públicos, encarregados de manter o respeito por tais entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substância, rivais bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amáveis, – um de barbas nevadas e túnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Luís XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa imitação burguesa do pitoresco Plutão – não acredito. Não, não acredito! Céu e Inferno são concepções sociais para uso da plebe – e eu pertenço à classe média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do senhor deputado; igualmente para me subtrair à tísica, à angina, à navalha de ponta, à febre que vem da sarjeta, à casca da laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males públicos, necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações, desde a Arcada até ao Paraíso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mística nas alturas – o destino do bacharel está seguro.

Por isso, livre de torpes superstições, disse familiarmente ao indivíduo vestido de negro:

– Então, realmente, aconselha-me que toque a campainha?

Ele ergueu um pouco o chapéu, descobrindo a fronte estreita, enfeitada de uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra: – Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil réis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin, de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil réis; e quem bebe o primeiro cálice, não hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferível percorrer nelas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, pelos céus, sobre os fofos coxins das nuvens... Não farei à sua instrução a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um conforto, que são elas que realizam superiormente esse regalo fictício, chamado outrora a «bem-aventurança». Não lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais... Só chamarei a sua atenção para este facto: existem seres que se chamam Mulheres – diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fêmeas. Estes seres, Teodoro, no meu tempo, a páginas 3 da Bíblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Teodoro, é toda uma sinfonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, cetins, flores, jóias, caxemiras, gazes e veludos... Compreende a satisfação inenarrável que haverá, para os cinco dedos de um cristão, em percorrer, palpar estas maravilhas macias; – mas também percebe que não é com o troco de uma placa honesta de cinco tostões que se pagam as contas destes querubins... Mas elas possuem melhor, Teodoro: são os cabelos cor do ouro ou cor da treva, tendo assim nas suas tranças a aparência emblemática das duas grandes tentações humanas – a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda têm mais: são os braços cor de mármore, de uma frescura de lírio orvalhado; são os seios, sobre os quais o grande Praxíteles modelou a sua Taça, que é a linha mais pura e mais ideal da Antiguidade... Os seios, outrora (na ideia desse ingénuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados à nutrição augusta da humanidade; sossegue porém, Teodoro; hoje nenhuma mamã racional os expõe a essa função deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gás das soirées, – e para outros usos secretos. As conveniências impedem-me de prosseguir nesta exposição radiosa das belezas que constituem o fatal feminino... De resto as suas pupilas já rebrilham... Ora todas estas coisas, Teodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus vinte mil réis por mês... Confesse, ao menos, que estas palavras têm o venerável selo da verdade!...
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continua...

Fonte:
http://leituradiaria.com


Clevane Pessoa (Mensagem)

Fonte:

A Autora

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão IV)

Numa terra de ruas estreitas e becos sinuosos, duas praças de São Luís – a João Lisboa (velho Largo do Carmo) e a Deodoro (antigo Largo do Quartel) – mais que quaisquer outros espaços públicos da cidade ganharam uma extraordinária importância histórica.

Por uma série de fatores, cresceu e se desenvolveu em torno delas a atividade artística da capital, do século XIX até os dias de hoje. As duas viraram pontos de referência para a compreensão do espírito de São Luís. A João Lisboa é tida como o coração da cidade, que se celebrizou com um notável lastro de história, desde remotos relatos como os de Claude d‘Abbeville e Ribeiro do Amaral. Esta praça também ficou famosa por ter sido, durante muito tempo, o largo antigo onde grupos de pessoas se reuniam todas as tardes para comentar a vida da cidade. Era lá também que os intelectuais costumavam se encontrar à noite para discutir arte, literatura e política.

O escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981) recorda com nostalgia, no livro Breve História das Ruas de São Luís, que a Praça João Lisboa, “povoada de sombra espessa, dadivosa, fresca, aprazível, com bancos terminando os encostos laterais em cabeças de carneiros modeladas em cimento e gesso, era o coração, a alma, o centro nervoso da cidade, onde funcionava um poderoso mecanismo de censura social, cadinho maravilhoso e infalível.”

A História conta que foi no Largo do Carmo que se travou, em 1643, o memorável combate entre os holandeses invasores comandados por Anderson e a tropa do português Antônio Teixeira de Melo. O Convento do Carmo, que pertencia à Ordem dos Carmelitas e depois passou para o controle da Ordem dos Capuchinhos, serviu de abrigo para portugueses durante a expulsão dos holandeses.

Com escadaria em pedra de cantaria, o Convento do Carmo data de 1627 e foi construído graças à doação de terras feita por Alexandre de Moura aos frades carmelitas, que chegaram em São Luís em 1615.

No pavimento térreo do Convento do Carmo, funcionou o Liceu Maranhense, criado em 1838, no governo do presidente Vicente Tomás Pires de Figueiredo Camargo, cujo primeiro diretor foi Francisco Sotero dos Reis (1800-1871). Juntamente com a Igreja do Carmo, o Convento é considerado um dos mais perfeitos conjuntos arquitetônicos da época colonial em São Luís. Administrado desde 1894 pelos padres capuchinhos e – vale lembrar – este Convento também foi a primeira sede da Biblioteca Pública Benedito Leite, inaugurada no início de maio de 1831.

No interior do Convento, encontram-se sepultados vários bispos e padres que ali serviram e atualmente avulta, em frente à Igreja do Carmo, o busto do Frei Carlos Roveda de S. Martino Olearo (1852-1931), fundador da Missão Capuchinha no Norte e Nordeste do Brasil.

O Largo do Carmo dá acesso ao Beco da Pacotilha - ou Beco do Quebra-Bunda – por ter sido instalado lá, por algum tempo, o grande jornal A Pacotilha, de Vitor Lobato, em um prédio de azulejos verdes que ainda existe até hoje e era propriedade do Barão de Coroatá. Além do prédio da velha Pacotilha, lá havia uma coluna de mármore que dominava a praça, quase em frente ao Convento do Carmo: era alta, elegante, de base retangular, subindo para o capitel em feixes espiralados. Esta coluna de mármore era o Pelourinho de São Luís, erguido para o castigo público dos negros cativos.

Segundo César Marques (1826-1900), o famoso dicionarista da História do Maranhão, este pelourinho – célebre instrumento utilizado pelos feitores para castigar pretos que se rebelavam – foi inaugurado no dia 30 de setembro de 1815, quando dois escravos foram surrados, mesmo depois de já terem sido vergalhados na cela da Cadeia Pública, porque ainda traziam no dorso e nos braços as marcas de lapadas recentes.

De acordo com César Marques, os escravos eram amarrados à coluna, de bunda de fora, para serem açoitados, (daí o nome Beco do Quebra-Bunda), configurando uma cena pungente em pleno Largo do Carmo, defronte da Rua da Paz, no Centro Histórico de São Luís. Lá avultava a espiral de mármore do pelourinho, que fora destruído vandalicamente pelo povo, por ocasião da Proclamação da República, em novembro de 1889.

O escritor Dunshee de Abranches (1867-1941), cronista da velha cidade, com as ruas em ladeira, os mirantes de azulejos, os telhados escuros, as grades de ferro das sacadas, os lampiões nas esquinas, recorda, no seu prestimoso livro de memórias, de imagens marcantes como a de negros presos ao pelourinho, de mãos e pés atados.

No livro Panteon Maranhense, Antônio Henriques Leal (1828-1885) revela que Odorico Mendes (1799-1864), ao escrever o seu primeiro soneto, inspirou-se no supliciamento de um negro no pelourinho do Largo do Carmo. A sensibilidade do menino de 13 anos foi profundamente ferida pelo espetáculo deprimente e seu estro vibrou num soneto que Leal considera formidável:
Despido em praça pública, amarrado,
Jaz o mísero escravo delinqüente:
Negro gigante de ânimo inclemente
Na mão tem o azorrague levantado.

A rir em torno, um bando encarniçado
Ao verdugo promete um bom presente,
Se com braço mais duro ao padecente
Rasgando for o corpo ensangüentado.

Homens, não vos assiste a menor pena
Dos sentidos seus ais, d´angústia sua?
Rides, perversos, desta horrível cena! ...

A sua obrigação, oh gente crua,
Faz o reto juiz quando condena;
Tu, deplorando o réu, cumpres a tua.


Foi através da Resolução nº 14, de 28 de julho de 1901, que o histórico Largo do Carmo passou a ser denominado Praça João Lisboa, em homenagem à memória do grande mestre do jornalismo do Maranhão. O escritor Domingos Vieira Filho conta que, no antigo largo, João Francisco Lisboa (1812-1863) residiu por muitos anos. “Da janela de seu sobrado viu desfilar muitas vezes a vida da cidade. Há de se ter inspirado no velho logradouro para recompor com ânimo isento e exatidão documental lances heróicos da história maranhense aí vividos em mais de uma ocasião.”

O escritor Viriato Correia (1884-1967) foi quem fez, como deputado estadual, o projeto de lei mandando erigir uma estátua ao ilustre maranhense que, além de jornalista, foi crítico, historiador, orador e político. A Lei estadual nº 582, de 24 de abril de 1911, autorizou o governo a abrir os créditos necessários ao levantamento da estátua, inaugurada solenemente no dia 1º de janeiro de 1918, com discursos proferidos pelo professor Ribeiro do Amaral, pelo intendente Clodomir Cardoso, pelos acadêmicos Alfredo de Assis e Domingos Barbosa e pelo cônsul Fran Paxeco.

João Lisboa, maranhense nascido em Pirapemas, no dia 22 de março de 1812, é o patrono da Cadeira nº 18 da Academia Brasileira de Letras. Autodidata, foi caixeiro, jornalista, deputado provincial (1848) e historiador. Representa, ao lado de Varnhagen e de Joaquim Caetano da Silva, o tripé da reforma da historiografia brasileira.

Todos os estudos biográficos sobre João Lisboa, cognominado o Timon Maranhense, se baseiam nos dados publicados por seu contemporâneo e amigo íntimo Antônio Henriques Leal na Notícia acerca da vida e obras de João Francisco Lisboa, que precede as suas Obras (quatro volumes) impressas no Maranhão em 1864-1865. A biografia de João Lisboa, ampliada, foi reproduzida no tomo 4º do Pantheon Maranhense, editado em 1857 pela Imprensa Nacional de Lisboa.

Em 1977 saiu o livro João Francisco Lisboa Jornalista e historiador, de Maria de Lourdes Menaço Janotti, e em 1986 o primeiro volume da nova fase da Coleção Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, João Francisco Lisboa O Timon Maranhense, de Arnaldo Niskier, duas obras de pesquisa em torno da figura e dos escritos do publicista maranhense, que faleceu em Lisboa, Portugal, aos 51 anos de idade, no dia 26 de abril de 1863.

Um ano depois de sua morte, seu amigo Antônio Henriques Leal editou suas Obras Completas (São Luís, 1864-1865, 4 volumes) nelas incluindo a Vida do Padre Antônio Vieira, obra póstuma. Como escreveu Capistrano de Abreu, João Francisco Lisboa foi um dos mais vigorosos espíritos do Brasil e com razão o Maranhão se orgulha de ser sua pátria.
–––––––––-
Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 118. 20 de janeiro de 2006

Simões Lopes Neto (A Casa de Mbororé)

Dentro do mato grosso, mato velho e crescido, sem plantas pequenas dentro, aí, só há uma luz pouca, tirante a verde e a cinzento; e nenhuma árvore faz sombra, porque a ramaria de todas faz peneira por onde passa o sol, que nunca enxerga o chão...

Dentro desse mato, no mais tupido dele, há uma lombada redonda, como uma casca de
carumbé; aí, em cima dela, há uma casa de pedra branca, branca como se encaliçada, e sem porta em nenhum lado nem janela em nenhuma altura.

Dentro da casa branca as salas são lastradas de barras de ouro e barras de prata, do peso que é preciso dois homens para mover cada uma; e todas as juntas das pilhas estão tomadas de pedras finas...

Por cima de tudo estão, em montes, tocheiros de ouro maciço e cálices e resplendores de
santos; e salvas de prata e turíbulos e cajados.

Nos corredores, como prontos para içar para as cangalhas das mulas de carga, prontos,
com as suas alças, estão lotes de surrões, socados de moedas de ouro, separadas em porções, metidas em bexigas de rês...

O rondador da casa branca dia e noite anda em redor dela; é um índio velho, cacique que
foi, Mbororé, de nome, amigo dos santos padras das Sete Missões da serra que dá vertente para o Uruguai.

Os padres foram tocados para longe, levando só a roupa do corpo... mas a casa branca já
estava feita, sem portas nem janelas... e Mbororé, que sabia tudo e era cacique, de noite, e precatado, com os seus guerreiros, carregou de todos os lugares para aquele as arrobas amarelas e as arrobas brancas, que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os brancos de longe matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros.

Mbororé desprezava essas arrobas; mas como era amigo dos santos padres das Sete Missões, guardou tudo e espera por eles, rondando a casa branca, sem portas nem janelas.

Ronda e espera…

Fonte:
Simões Lopes Neto, Contos Gauchescos & Lerndas do Sul. Porto Alegre/RS: L&PM Pocket, 2012.

Simões Lopes Neto (Lendas do Sul)

Lendas do Sul, é o terceiro livro do autor regionalista João Simões Lopes Neto, e foi publicado em 1913. Reúne 17 lendas recolhidas por Simões Lopes Neto, que, não se contentando com o registro puro e simples, deu-lhes forma de verdadeiras obras-primas do conto gaúcho, principalmente pensando no "Lunar do Sepé" (1902), "O negrinho do pastoreio" (1906), "Mboitatá" (1909) e "Salamanca do Jarau" (1913).

Estas são apenas algumas das lendas do Rio Grande do Sul que o livro narra. Lendas que outrora foram passadas de boca a boca, principalmente na região interiorana. Um dos contos apresentados, "A Salamanca do Jarau" inspirou Érico Veríssimo a escrever algumas partes de sua grande obra, O Tempo e o Vento.

A compilação de lendas efetuada pelo escritor foi de grande inspiração para os futuros escritores brasileiros do modernismo, mais especificamente do romance de 30, por se tratar da mais pura representação do homem brasileiro. Nas histórias, nada do homem é ignorado: sua linguagem seus hábitos e até reflexos do ambiente que o rodeia são descritos com uma linguagem despojada, porém de difícil compreensão para aqueles que não estão habituados ao vocabulário gaúcho. Por se encontrar em uma linha limite entre o realismo e o modernismo propriamente dito, as obras de João Simões Lopes Neto são agrupadas no perfil literário do pré-modernismo.

A obra Lendas do Sul apresenta, entre outras, e já citado, três das principais lendas de nossa cultura: "A Mboitatá", "O Negrinho do Pastoreio" e "A Salamanca do Jarau". Nas duas primeiras, temos o personagem Blau Nunes, típico crioulo, como narrador; já na terceira, temos o mesmo personagem como protagonista da história.

A lenda "O lunar de Sepé", ouvida pelo autor através de “uma velhíssima mestiça – Maria Genória Alves - moradora na picada que atravessa o rio Camaquã, entre os municípios de Canguçu e Encruzilhada”, narra em versos as contendas guaraníticas das reduções das Missões, causadas pela assinatura do Tratado de Madri, em 1750, em que Portugal recebeu de Espanha essas possessões em troca da devolução da Colônia do Sacramento.

É sabido o quanto foi significativa a organização dos Sete Povos das Missões (São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Francisco Borja, São Luís Gonzaga, São João Batista, São Lourenço Martir e Santo Ângelo Custódio), comunidades com organização democrática socializante, em que todos produziam para o grupo, no qual a participação nas decisões era completamente ativa, sistema em que se desenvolveu um clima favorável à intensa produção cultural, principalmente na Arquitetura e na Música. Não foi de se estranhar que os índios e missionários lutassem para preservar as reduções. Sepé Tiaraju, corruptela de José, sábio para os charruas, ou chefe, da mesma etimologia de eçapé, que significa 'ver caminho', 'alumiar', era realmente um iluminado, marcado por um lunar na testa, insígnia de sua coragem para defender seu povo e suas conquistas.

Observem-se alguns versos da composição:

Do sangue dum grão-Cacique
Nasceu um dia um menino,
Trazendo um lunar na testa,
Que era bem pequenino:
Mas era um-cruzeiro-feito
Como um emblema divino
[...]
Diferente em noite escura
Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visível
apenas o sol era posto;
assim era-Tiaraiú-,

Chamado -Sepé,-por gosto. (LS, p. 103)

Na relação dos povos guaraníticos com a coroa de Castela e Portugal ficou alegorizada a exploração e opressão dos desvalidos que não podiam compreender o que não fazia parte de seu código ético de valores e talvez ainda a violência que representaram para os povos mais primitivos, os interesses dos civilizados. Observe:

E, de Castela, tampouco
Esperava tal furor;
Pois sendo seu soberano,
respeitava seu senhor;
Já lhe dera ouro e sangue,
E primazia e honor!


E Sepé Tiarajú foi vencido pelos poderosos e com ele todo o povo das Missões. Note:

Mas, o lunar de Sepé
era o rastro procurado
Pelos vassalos dos reis,
Que o haviam condenado...
ficando o povo, vencido.....
E seu haver...conquistado!
(LS, p.106)

Outra lenda, "O negrinho do pastoreio", é considerada a mais genuinamente sul-riograndense, pois pontua o linguajar e ambiente típicos do gaúcho do interior do Rio Grande do Sul. Muito lida e contada, esta lenda reconstrói a trajetória do Negrinho a quem “não deram padrinho nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não tem.” Talvez a lenda tenha sua popularidade embasada no quanto chocante é uma alegoria dos maus tratos aos escravos num Estado onde a escravidão não foi enfática nem agressiva. Fala de um tempo em que as estâncias, como símbolo da propriedade privada, começavam a surgir, e do fazendeiro como um mau caráter, contraponto da heroicidade mitificadora com que o campeiro gaúcho era sempre configurado, na qual a generosidade e hospitalidade eram fundamentais. Observe-se um fragmento do texto:

Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.

Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo... e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era seu próprio couro que ele estava lonqueando
[...] (LS, p.79)

Um negrinho sem nome era empregado desse estancieiro que, irritado por perder uma carreira de cavalos em que esse era o ginete do baio, maltratou-o seguidas vezes obrigando-o a cuidar de tropilhas de animais que fogiam, ou porque ele se distraia dormindo, ou porque o filho do patrão, tão maleva como o pai, soltava os animais deixando-os fugir. O estigma de perder o gado passou a acompanhar o negrinho que de tantos maus tratos do estancieiro acabou morrendo jogado num formigueiro. E, como narra a lenda “nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno [..].” (LS, p.85), enfatizando-se o pouco valor dos bens materiais tão estimados pelo fazendeiro.

Ao final da narrativa, o negrinho ressucita, salvo por Nossa Senhora, sua madrinha, e passou a ser considerado como aquele que tem o poder de achar perdidos. Veja: “daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela , cuja luz ele levava para pagar a do altar ...da Virgem, ...que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém vêr”. (LS, p.86). Então, “quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo - Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi!... Se ele não achar... ninguém mais”. (LS, p.87)

Ainda uma outra lenda, "Mboitatá" é uma lenda guarani que, para explicar as fantasias criadas pela aparição dos fogos-fátuos no campo, produzidos pela fosforescência de restos de ossadas, conta a história de uma interminável noite em que houve uma enchente tão grande que alagando a cova da cobra boiguaçu fê-la sair para fora e comer todos os olhos dos animais e homens mortos transformando-se numa serpente luminosa. Observe:

E vai,
como a boiguaçu não tinha pelos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos.
(LS, p.28)

E é interessante que os olhos comidos são metonímicas representações da essência de cada ser. Daí, sua potencialidade virtual de alimentar a cobra. Veja:

Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue tem cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor dos seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão- aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados baços!
[...] (LS, p. 227)

E o narrador explica porque a cobra, assim mesmo, cheia de olhos, morreu ao cabo de um tempo: “[...] a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos [...]” (LS, p.29)

É procedimento habitual em Simões Lopes Neto a universalização de um tema regional dando-lhe caráter de alegoria filosófica. Nota-se que, nessa lenda, se discute a essência do ser e sua impossibilidade de transferência e apropriação.

Isso se repete, na mais significativa lenda desse grupo, "A salamanca do Jarau," introduzida pelas palavras que explicitam sua origem: “Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que esses viram![...]“ (LS, p.29)

Aqui, se conta um fato ocorrido com Blau Nunes, o gaúcho campeiro contador de causos, antigo furriel da Revolução farroupilha, que é o narrador revivido de Contos gauchecos, outra obra de Simões Lopes Neto. O personagem vive um momento de crise e sem sorte, pois, sendo pobre, ainda perdeu a força, a coragem e o poder de cultivar. Chamado à aventura, saiu à procura do boi barroso, elemento mágico capaz de lhe trazer felicidade. Essa busca tem as características de uma viagem mítica que alegorizou também as inquirições do homem sobre o sentido de sua existência. Observe a lenda:

Era um dia...
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas-a carqueja é sinal de campo bom-, por isso o campeiro às vezes alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia campeando, campeando
[...] (LS, p.35)

Blau Nunes, campeiro de cepa, vivia um momento de crise, pois gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava...

Domador destorcido e parador, que só por pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas quando gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado...

De mão feliz para plantar, que não lhe chochava semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e azeda...

E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau de nome, ia ao tranquito, campeando, sem topar coo boi barroso.
(LS, p.37)

Na sua viagem de busca, encontrou a Caverna do Jarau, daí, o título da lenda, onde ficou sabendo da história de um sacristão encantado e perdido por uma salamanca, lagartixa mágica, a Teiniaguá, que o seduziu metamorfoseada numa princesa lindíssima e o prendeu para sempre. Entrou, então, nesse espaço mágico, onde passou por sete provas que enfrentou: as espadas, os jaguanés e pumas, ossamentas de criaturas, as línguas de fogo, a boicininga, as lindas mulheres, os anões cabeçudos. Chegou então à presença da encantada que lhe falou oferecendo prêmios, representados pela sorte, poder de sedução, sabedoria, coragem, autoridade, riqueza e sensibilidade artística, mas o campeiro se deu conta que ele queria muito mais. Disse o narrador:

Blau nem se moveu; e, carpindo dentro de si a própria rudeza, pensou no que queria dizer e não podia e que era assim:
- Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo! ...És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim...Eu te queria a ti, teiniaguá encantada! [...] (LS, p.63)

Observa-se que, mais uma vez, o reaproveitamento da lenda assumiu dimensões alegóricas de reflexão sobre o sentido da existência e a miséria humana diante da inexorabilidade de alcance do absoluto.

Continuando a narrativa, Blau resolveu então voltar ao mundo real levando uma moeda mágica que quanto mais pagava suas compras mais se multiplicava. No entanto, quem era pago por ele perdia em seguida a mesma quantia em algum novo negócio. E assim, todos começaram a olhar desconfiados para ele que foi, pouco a pouco, enriquecendo mas perdendo os amigos e ficando muito rico, mas infeliz.

Desatinado, Blau voltou para a caverna, devolveu a moeda e retornou para casa de posse de uma grande descoberta: a importância da amizade e da paz de viver. Veja-se as últimas palavras que dão fechamento à lenda: “E agora estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida! “ (LS, p.63)

Simões Lopes Neto não imaginaria o quanto sua mão poderia abrir perspectivas de interpretação amplas para o leitor que, a partir de um universo configurado regionalmente, pode alçar-se ao universal.

Fonte:
Lisana Bertussi, Professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras e Cultura Regional da Universidade de Caxias do Sul, Doutora e Pós-Doutorada em Letras.
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/l/lendas_do_sul

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 11

Barreto Filho (“Barretinho”)
José Barreto Filho
Aracaju/SE, 27 janeiro 1908 – 17 dezembro 1983)
sobrinho do poeta Tobias Barreto.

" SONETO "


Ama na vida tudo o que puderes:
a garça, o mar, o cisne de alva pluma...
Vive do amor de todas as mulheres
que hás de morrer do fero amor de alguma.

Perdoa sempre... Esfolha de uma em uma
as pétalas fatais dos malmequeres,
deixando, assim, que a vida se resuma
no brilho do destino que tiveres.

A vida é um galho cujos dons se almejam,
árvore boa que eu, cantando, exalto,
coroada de frutos e de ninhos.

Recolhe os frutos que mais perto estejam.
Para alcançares o que vês mais alto,
hás de ferir a mão pelos espinhos.
==================
Bastos Portela
[Gentil Bastos Portela]
(Recife/PE, 1894 – ?)

" JÓIA FALSA "


Amor...Mas, ora o amor! O amor, na vida,
não é, de certo, esta perfídia...Não!
- Primeiro, uma palavra enternecida;
depois, um beijo: após, uma traição...

...Não te digas, porém, arrependida,
nem me prometas mais o teu perdão!
Pois se foste, por vezes, iludida,
também me envenenaste o coração...

Não houve afeto entre nós dois... Havia
um doce enlevo, uma ilusão de amor,
- e um pouco de maldade e de ironia...

Enganei-me. Inda bem que o reconheço...
- És uma simples jóia sem valor,
e eu te comprei pelo mais alto preço!
===============
Bastos Tigre
[Manuel Bastos Tigre]
(Recife/PE, 12 março 1882 – Rio de Janeiro, 2 agosto 1957)

" IMUTÁBILIS AMOR "


Amor é sempre amor por mais que viva.
Será maior, menor, mas sempre amor;
não muda a sua essência primitiva,
embora mude a forma ou mude a côr.

Se nas reações da química afetiva
pode haver mais calor, menos calor,
de nada nem se acresce nem se priva
a incorpórea molécula do amor.

Não muda o que era amor para amizade;
- porque apresente a prata áureo fulgor
vai que, de ouro, ela seja variedade ?

Fanada a flor, é sempre a mesma flor,
murche de velho, em lama se degrade,
se avilte em sangue... amor é sempre amor!

" DEFINIÇÃO "

Amor é mal, é mal que não tem cura;
mas, sendo mal, sofre-lo nos faz bem . . .
Chora o amante, se o amor lhe dá ventura,
e ri da dor, se dele a dor lhe vem.

O amor é vida e leva a sepultura;
é doce filtro, o amor, e fel contém.
É luz, mas, entretanto, em noite escura
vive, às cegas, o alguém que ama outro alguém.

O amor é cego, e vê todo o invisível;
sendo imutável, quase sempre é vário,
é deus, e faz de um Santo um pecador !

Fraco a indefeso, é força irresistível;
sendo, pois, a si próprio tão contrário,
quem é que pode definir o amor?
=============
Beatrix dos Reis Carvalho
(Rio de Janeiro/GB)
sem dados biográficos.

" CONTRIÇÃO "


Meu Deus, eu sei. Eu sei, não merecia
esse bem que me das em profusão.
Sofrer é justo como a luz do dia,
mas ser feliz é prêmio, é galardão!

Quase me acostumara à tirania
da vida que castiga sem razão.
E, para mim, o amor como eu queria
era uma estrela, longe, na amplidão;

nao devia existir e, se existisse,
querê-la era loucura, era tolice,
que as estrelas não vem a nossa mão. . .

Meu Deus! Puseste a estrela em meu caminho!
Por esse amor que é todo o meu carinho,
perdão se duvidei, perdão, perdão!
===============
Belmiro Braga
[Belmiro Belarmino de Barros Braga]
(Vargem Grande/MG, 7 janeiro 1872 – Juiz de Fora/MG, 31 março 1937)

" DESPEDIDA "


E partes amanhã! . . . E, triste, eu penso
no que há de ser de mim, meu doce encanto . . .
E sinto os olhos úmidos de pranto
e na alma a angústia de um pesar imenso . . .

Eu tenho agora o coração suspenso,
nos lábios a mudez, no olhar o espanto:
- feiticeira, puseste-me quebranto,
tu és dona de mim, eu te pertenço. . .

E partes amanhã, meu bem querido,
sem que eu possa, ditoso e comovido,
beijar a tua fronte e os olhos teus. . .

Sem que eu possa, feliz, numa ânsia louca,
com meus lábios gravar na tua boca
as cinco letras da palavra - Adeus! . . .

" DE DUAS, UMA ! "

Eu por uma mulher pensando vivo,
por mim outra mulher vive pensando;
aquela de mim sempre se esquivando,
esta sempre a buscar-me, e eu sempre esquivo...

E o amor, contraditório e miserando,
de eu morrer e matar, sendo o motivo,
nem desta pelo amor me faz cativo,
nem daquela me torna o amor mais brando.

Se devo por fim ao meu desgosto,
que me importa que o mundo ande composto
de bem-me-queres e de mal-me-queres? . . .

É necessário, pois, que o Amor me acuda:
- de duas, uma! O coração me muda,
ou muda os corações dessas mulheres!
Fonte:
– J.G . de Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Mitos e Lendas (O Macaco e a Cutia)

Contam que uma vez, a cutia deu uma festa em sua casa e convidou todos os animais seus amigos. O macaco também foi. Quando chegou lá a cutia, de sabida, deu-lhe uma viola e disse-lhe que tocasse. E o macaco foi tocando enquanto os outros dançavam.

A cutia entrou na dança, muito assanhada e, quando girava com muita força, bateu com o rabo na parede e partiu-o. Então todos os animais que tinham rabo ficaram com medo e pararam de dançar.

Foi então que o preá disse:

— Ora! Vocês estão com medo de dançar! Toque aí, macaco! Vão ver como é que se dança.

O macaco meio desconfiado, trepou num tamborete e continuou a tocar para o preá dançar. Este, muito animado deu umas voltas pela sala e depois, foi dar uma umbigada no mestre macaco, que não teve jeito senão entrar na dança das cutias e dos outros bichos. Aí é que foi. Todos lhe pisavam o rabo até que meio zangado, o macaco parou de dançar e gritou:

— Não danço mais! Isso é um desaforo! O compadre preá, o compadre sapo e outros compadres, só porque não têm rabo, pensam que podem pisar no rabo dos outros! Chega!

E pulou para cima da janela, onde continuou tocando sem ser mais incomodado.
Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (O Boi Surubim)

Estátua do Boi Surubim na cidade de Surubim
O boi Surubim
Nasceu um bezerro macho
No curral da Independência,
Filho de uma vaca mansa
Por nome de Paciência.
Quando Surubim nasceu
Daí a um mês se ferrou
Na porteira do curral
Cinco touros enxotou.

Na porteira do curral
Onde Surubim cavou
Ficou um barreiro tal
Que nunca mais se aterrou.

Na praça da cacimba
Onde o Surubim pisou
Ficou a terra acanhada,
Nunca mais capim criou.

Um relho de duas braças,
Que o Surubim amarrou,
Botou-se numa balança,
Duas arrobas pesou.

Fui passando num sobrado,
Uma moça me chamou:
— Quer vender o Surubim?
Um conto de réis eu dou.

"Guarde seu dinheiro, dona,
O Surubim não vendo não.
— Dou um barco de fazenda,
De chita e madapolão.

"Este é o meu boi Surubim
É um corredor de fama,
Tanto ele corre no duro,
Como nas vargens da lama.

Corre dentro, corre fora,
Corre dentro da caatinga;
Corre quatro, cincos léguas
Com o suor nunca pinga.

Quando Surubim morreu,
Silveira pôs-se a chorar:
Boi bonito como este
No sertão não nascerá:
Eu chamava ele vinha:
— O-lé, o-lô, olá...

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 - Ano XII - nº 140
Edição Especial de Aniversário

Izabel Santa Cruz Fontes (Perdão)

Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente, desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos, então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.

Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio. Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um tratado político no Sul da África... você fala, fala, fala. Fala coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler, termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo. Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora, permitindo-se um resto de orgulho.

Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos, você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem motivo.

Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente, paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e, calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos perdoamos.
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Izabel Santa Cruz Fontes (1987) é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Diz fazer da escrita uma forma de "existir um pouco mais no mundo.”

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_izabel_perdao.asp

Soares de Passos (Infância e Morte)

«Ó mãe, o que fazes? em cama tão fria

«Não durmas a noite... saiamos daqui...
«Acorda! não ouves a pobre Maria,
«Pequena, sozinha, chorando por ti?

«Porque é que fugiste da nossa morada,
«Que alveja saudosa no monte dalém?
«Depois que tu dormes na terra gelada,
«Quão só ficou tudo, mal sabes, ó mãe.

«A nossa janela não mais foi aberta,
«O fogo apagou-se na cinza do lar,
«As pombas são tristes, a casa deserta,
«E as flores da Virgem se vão a murchar.

«Oh! vamos, não tardes... mas tu não respondes...
«Em vão todo o dia meu pranto correu;
«No fundo da cova teu rosto me escondes,
«Não ouves, não falas... que mal te fiz eu?

«Escuta! na torre de frestas sombrias
«O sino da ermida começa a tocar...
«Acorda! que o toque das Avé-Marias
«À imagem da Virgem nos manda rezar.

«A lâmpada exausta de Nossa Senhora
«Ficou apagada, precisa de luz:
«Oh! vem acendê-la, e à Mãe que se adora
«Ali rezaremos, e ao Filho na cruz.

«Depois à costura, sentada a meu lado,
«Tu hás-de contar-me, bem junto de mim,
«Aquelas histórias dum rei encantado,
«De fadas e mouras, dalgum querubim.

«A d'ontem foi triste, pois triste falavas
«De vida e de morte, dum mundo melhor;
«E o rosto cobrias, e muda choravas,
«Lançando teus braços de mim ao redor.

«Depois em silêncio teus olhos fechaste,
«Tão pálida e fria qual nunca te vi;
«Chamei-te era dia, mas não acordaste,
«E enquanto dormias trouxeram-te aqui.

«Oh! vamos, não tardes, que as noites sombrias.
«Sem ti a meu lado, me causam pavor!
«Acorda! que o toque das Avé-Marias
«Nos diz que rezemos à Mãe do Senhor.»

Tais eram as queixas da pobre Maria...
O sino da ermida cessou de tocar...
E a mãe entretanto dormia, dormia;
Do sono da morte não pôde acordar.

Três dias, três noites a filha sozinha
No adro da igreja por ela chamou...
Ao fim do terceiro já forças não tinha;
Da mãe sobre a campa, gemendo, expirou.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

João Anzanello Carrascoza (Uma Lição Inesperada)

No último dia de férias, Lilico nem dormiu direito. Não via a hora de voltar à escola e rever os amigos. Acordou feliz da vida, tomou o café da manhã às pressas, pegou sua mochila e foi ao encontro deles. Abraçou-os à entrada da escola, mostrou o relógio que ganhara de Natal, contou sobre sua viagem ao litoral. Depois ouviu as histórias dos amigos e divertiu-se com eles, o coração latejando de alegria. Aos poucos, foi matando a saudade das descobertas que fazia ali, das meninas ruidosas, do azul e branco dos uniformes, daquele burburinho à beira do portão.

Sentia-se como um peixe de volta ao mar. Mas, quando o sino anunciou o início das aulas, Lilico descobriu que caíra numa classe onde não havia nenhum de seus amigos. Encontrou lá só gente estranha, que o observava dos pés à cabeça, em silêncio. Viu-se perdido e o sorriso que iluminava seu rosto se apagou. Antes de começar, a professora pediu que cada aluno se apresentasse.

Aborrecido, Lilico estudava seus novos companheiros. Tinha um japonês de cabelos espetados com jeito de nerd. Uma garota de olhos azuis, vinda do Sul, pareceu-lhe fria e arrogante. Um menino alto, que quase bateu no teto quando se ergueu, dava toda a pinta de ser um bobo. E a menina que morava no sítio? A coitada comia palavras, olhava-os assustada, igual um bicho do mato. O mulato, filho de pescador, falava arrastado, estalando a língua, com sotaque de malandro. E havia uns garotos com tatuagens, umas meninas usando óculos de lentes grossas, todos esquisitos aos olhos de Lilico. A professora? Tão diferente das que ele conhecera...

Logo que soou o sinal para o recreio, Lilico saiu a mil por hora, à procura de seus antigos colegas. Surpreendeu-se ao vê-los em roda, animados, junto aos estudantes que haviam conhecido horas antes. De volta à sala de aula, a professora passou uma tarefa em grupo. Lilico caiu com o japonês, a menina gaúcha, o mulato e o grandalhão.

Começaram a conversar cheios de cautela, mas paulatinamente foram se soltando, a ponto de, ao fim do exercício, parecer que se conheciam há anos. Lilico descobriu que o japonês não era nerd, não: era ótimo em Matemática, mas tinha dificuldade em Português. A gaúcha, que lhe parecera tão metida, era gentil e o mirava ternamente com seus lindos olhos azuis. O mulato era um caiçara responsável, ajudava o pai desde criança e prometeu ensinar a todos os segredos de uma boa pescaria. O grandalhão não tinha nada de bobo. Raciocinava rapidamente e, com aquele tamanho, seria legal jogar basquete no time dele.

Lilico descobriu mais. Inclusive que o haviam achado mal humorado quando ele se apresentara, mas já não pensavam assim. Então, mirou a menina do sítio e pensou no quanto seria bom conhecê-la. Devia saber tudo de passarinhos. Sim, justamente porque eram diferentes havia encanto nas pessoas.

Se ele descobrira aquilo no primeiro dia de aula, quantas descobertas não haveria de fazer no ano inteiro?

E, como um lápis deslizando numa folha de papel, um sorriso se desenhou novamente no rosto de Lilico.

Fonte:
Revista Nova Escola

Machado de Assis (Magalhães de Azeredo: Horas Sagradas e Versos)

COM O TÍTULO Horas Sagradas, acaba de publicar Magalhães de Azeredo um livro de versos, que não só não desmentem dos versos anteriores, mais ainda se pode dizer que os vencem e mostram no talento do poeta um grau de perfeição crescente. Folgamos de o noticiar, ao mesmo tempo que outro livro, de Mário de Alencar, seu amigo, seu irmão de espírito e de tendência, de cultura e de ideal. Chama-se este outro simplesmente Versos. Quiséramos fazer de ambos um demorado estudo. Não o podendo agora, lembramos só o que os nossos leitores sabem, isto é, que Magalhães de Azeredo, mais copioso e vasto, tem um nome feito, enquanto que Mário de Alencar, para honrar o de seu ilustre pai, começa a escrever o seu no livro das letras brasileiras, não às pressas, mas vagaroso, com a mão firme e pensativo, para não errar nem confundir.

Um ponto, além de outras afinidades, mostra o parentesco dos dois espíritos. Não é o amor da glória, que o primeiro canta, confessa e define, por tantas faces e origens, na última composição do livro, e o segundo não ousa dizer nem definir. Mas aí mesmo se unem.. Porquanto, se Mário de Alencar confessa: "o autor é um incontentado do que faz" e, aliás, já Voltaire dissera a mesma coisa de si: "Je ne suis jamais content de mes vers", Magalhães de Azeredo nas várias definições da glória, chega indiretamente a igual confissão, quando põe na perfeição a glória mais augusta, e cita os anônimos da Vênus de Milo e da Imitação, até exclamar como Fausto:
E exclamar como Fausto em êxtase exclamara:
Átomo fugitivo, és belo, és belo, pára!


Isto, que está no fim do livro de Magalhães de Azeredo, está também no princípio, quando ele abre mão das Horas Sagradas. Confessa que as guardou por largo tempo:
Por largo tempo, neste ermo oculto
Guardei-vos. Ide para o tumulto
Das gentes. Quer-vos a sorte ali.
Colhereis louros? Mas ah! que louros
Os vossos gozos, que eu conheci?


E cá vieram as Horas Sagradas, título que tão bem assenta no livro. Elas são sagradas pelo sentimento e pela inspiração, pelo amor, pela arte, pela comemoração dos grandes mortos, pela nobreza do cidadão, da virtude e da história. A religião tem aqui também o seu lugar, como no coração do poeta. Tudo é puro. No "Rosal de Amor", primeira parte do livro, não há flores apanhadas na rua ou abafadas na sala. Todas respiram o ar livre e limpo, e por vezes agreste. Um soneto, Ad Purissimam, mostra a castidade da musa, uma das musas, devemos dizer, porque aqui está, nas estrofes "Mamãe", a outra das suas musas domésticas. É um basto rosal este a que não faltará porventura alguma flor triste, mas tão rara e tão graciosa ainda na tristeza, que mal nos dá essa sensação. A música dos versos faz esquecer a melancolia do sentido.

"Matinal", "Ao Sol", "Crepuscular" dão o tom da vida universal e do amor, a terra fresca e o céu aberto. Os Bronzes Florentinos é uma bela coleção de grandes nomes de e do mundo, páginas que (não importa a distância nem o desconhecimento da cidade para os que lá não foram), produzem na alma do leitor cá de longe uma vibração de arte nova e antiga a um tempo, ao lado do poeta, a acompanhá-lo:
Através do Gentil e do Sublime.

Não quiséramos citar mais nada; seria preciso citar muito, transportar para fora do livro estrofes que desejam lá ficar, entre as que o poeta ligou na mesma e linda medalha. Mas como deixar de repetir este fecho de bronze de Dante:
Quem, depois de sofrer o ódio profundo
Da pátria, viu o inferno, e chorou tanto,
Já não é criatura deste mundo.


E muitos outros deliciosos sonetos, fazendo passar ante os olhos Petrarca, Giotto, Leonardo da Vinci, Miguel Angelo, Boccacio, Donatello, Frei Angélico, e tantos cujos nomes lá estão na igreja de Santa Cruz, onde o poeta entrou em dias caros às musas brasileiras. Cada figura traz a sua expressão nativa e histórica; aqui está Leão X, acabando na risada pontifícia; aqui Cellini, cinzelando o punhal com que é capaz de ferir; aqui Savonarola, a morrer queimado e sem gemer por esta razão de apóstolo:

Ardia mais que as chamas a tua alma!

Não poderia transcrever uns sem outros, mas o último bronze dará conta dos primeiros: é Galileu Galilei:
Lá na Torre do Galo, esguia e muda,
Entre árvores vetustas escondida,
No entardecer da trabalhada vida
O potente ancião medita e estuda.
Já nos olhos extinta é a luz aguda,
Que os céus sondava em incessante lida:
Mas inda a fronte curva e encanecida
Pensamentos intrépidos escuda.
Sorrindo agora das neqüícias feras,
Que, por amor do ideal sofrido tinha,
Ele a sentença das vindouras eras
Invoca, e os seus triunfos adivinha,
Ouvindo, entre a harmonia das esferas
O compasso da Terra, que caminha.


Nem só Florença ocupa o nosso poeta, amigo de sua pátria. As "Odes Cívicas" dizem de nós ou da nossa língua.

Magalhães de Azeredo é o primeiro que no-lo recorda, nos versos "Ao Brasil", por ocasião do centenário da descoberta. O centenário das Índias achou nele um cantor animado e alto. A ode "A Garrett exprime uma dessas adorações que a figura nobre e elegante do grande homem inspira a quem o leu e releu, por anos. Enfim, com o título "Alma Errante" vem a última parte do livro. Aqui variam os assuntos, desde a ode "As Águias ", em que tudo é movimento e grandeza, até quadros e pensamentos menores, outros tristes, uma saudade, um infortúnio social, um sonho, ou este delicioso soneto "Sobre um Quadro Antigo";
Os séculos em bruma lenta e escura
Te ocultam, vaga imagem feminina:
E cada ano, ao passar, tredo elimina
Mais uni resto de tua formosura.
Apenas, no esbatido da pintura,
Algum tom claro, alguma linha fina,
Revelando-te a graça feminina,
Dizem que foste, ó frágil criatura ...
Ah! como és! - és mais bela do que outrora.
Seduz-me esse ar distante, esse indeciso
Crepúsculo em que vives, me enamora.
O tempo um gozo intensamente doce
Pôs-te no exangue, pálido sorriso;
E o teu humano olhar divinizou-se ...


Em resumo escasso, apenas indicações de passagens, tal é o livro de Magalhães de Azeredo, um dos primeiros escritores da nova -geração. A perfeição e a inspiração crescem agora mais, repetimos. Ele, como os seus pares conjugam dois séculos, um que lá vai tão cheio e tão forte, outro que ora chega tão nutrido de esperanças, por mais que os problemas sé agravem nele; mas, se não somos dos que crêem no fim do mal, não descremos da nobreza do esforço, e sobretudo das consolações da arte. Aqui está um espírito forte e hábil para no-las dar na nossa língua.

Faça o mesmo o seu amigo e irmão, Mário de Alencar, cujo livro, pequeno e leve, contém o que deixamos dito no princípio desta notícia. É outro que figurará entre os da geração que começou no último decênio. Particularmente, entre Mário de Alencar e Magalhães de Azeredo, além das afinidades indicadas, há o encontro de duas musas que os consolam e animam. O acerto da inspiração e a gemeidade da tendência levou-os a cantar a Grécia como se fazia nos tempos de Byron e de Hugo. A sobriedade é também um dos talentos de Mário de Alencar. Quando não há idéia, a sobriedade é apenas -a falta de um recurso, e assim dois males juntos, porque a abundância e alguma vez o excesso suprem o resto. Mas não são idéias que lhe Faltam; nem idéias, nem sensações, nem visões, como aquela "Marinha", que assim começa:
Sopra o terral. A noite é calma. Faz luar
Intercadente
Soa na praia molemente
A voz do mar.
As coisas dormem; dorme a terra, e no ar sereno
Nenhum ruído
Perturba o encanto recolhido
Do luar pleno.
Ampla mudez. A lua grande pelo céu
Sem nuvens vaga
E cobre o mar, vaga por vaga,
De um branco véu.
Longe, à mercê da branda aragem, vai passando'
Parda falua.
Nas pandas velas bate a lua
De quando em quando...


Lede o resto no livro, onde achareis outras páginas a que voltareis, e vos farão esperar melhores, pedimos que em breve. Que ele sacuda de si esse entorpecimento, salvo se é apenas respeito ao seu grande nome; mas ainda assim o melhor respeito é a imitação. Tenha a confiança que deve em si mesmo. Sabe cantar os sentimentos doces sem banalidade, e os grandes motivos não o deixam frio nem resistente. Ainda ontem tivemos de ler o que Magalhães de Azeredo disse de Mário de Alencar, e dias antes dissera deste J. Veríssimo, nós assinamos as opiniões de um e de outro.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 770)


Uma Trova de Ademar

O grande desmatamento,
por ganância ou esperteza,
põe rugas de sofrimento
no rosto da natureza!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Jamais chores o abandono
da primavera que finda...
pode haver frutos no outono
que tu não provaste ainda!
–Carolina Ramos/SP–

Uma Trova Potiguar


Velhice é só desenganos,
mas é tão limpa, tão clara,
que se a gente esconde os anos
eles refletem na cara!...
–Zé de Sousa/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Rio de Janeiro/RJ
Tema - TREM - 2º Lugar


Nos trilhos do itinerário
que a vida a mim destinou,
eu sou vagão solitário
de um trem que descarrilou.
–Jacy Bittencourt/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A saudade não permite
nem que eu sonhe um novo amor:
– tua lembrança é um limite
que eu não consigo transpor...
–João Freire Filho/RJ–

U m a P o e s i a

O famoso Patativa
poeta do pé da serra,
vive de mãos calejadas
colhendo os frutos da terra,
da enxada pra caneta
com tinta vermelha ou preta
pinta seus versos com fé;
num quadro expansivo e novo
simples poeta do povo:
Patativa do Assaré.
–Otacílio Batista/PE–

Soneto do Dia

AS MÃOS DE VITALINO.
–Rafael dos Santos Barros/PE–


Vitalino com mãos sujas e santas
modelava em barro os nordestinos
e transportava a dor e os desatinos
para os bonecos tantas vezes, tantas.

Bonecos mudos, quantas vezes quantas,
Minha alma cega por meus olhos viu?
A tua dor meu coração sentiu
no canto triste que ainda hoje cantas.

Soprou a vida num boneco mudo
que sem falar, assim, dizia tudo
dos nordestinos, dos desatinos seus,

advertência dos que nascem pobres
pelas mãos rudes que ficaram nobres,
abençoadas pelas mãos de Deus.

Teatro de Ontem e de Hoje (Gota d'Água)

Peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, inspirada numa adaptação de Medéia, de Eurípides, realizada por Oduvaldo Vianna Filho para a TV. Associada ao teatro de resistência, a montagem tem dois objetivos principais: retratar a realidade brasileira de modo contundente, apelando para uma fábula grega universalmente conhecida e criar um grande espetáculo musicado.

Ambientado numa favela - que está sendo reurbanizada através da construção de um conjunto habitacional - o enredo ressalta a dramática convivência de Joana e Jasão, o sambista que, depois de dez anos de vida em comum com ela, decide abandoná-la e aos dois filhos para se casar com a jovem Alma, a filha do empreiteiro Creonte, a quem pertencem as casas da Vila do Meio-Dia. O fundo social, uma dura crítica ao milagre econômico então em curso, surge através da mobilização da população do morro contra os preços extorsivos das unidades postas à venda. Incapaz de aceitar a traição, Joana acaba por envenenar as duas crianças, no dia da festa de casamento de Jasão. A música de Chico Buarque atribui algumas características de musical a este drama social denso, e diversas das canções da peça tornaram-se grandes sucessos na voz de vários intérpretes.

Destacam-se a direção de Gianni Ratto e a interpretação de Bibi Ferreira como a protagonista, destacam-se e valorizam a montagem, tendo sido registrados em disco seus momentos culminantes. O crítico Alberto Guzik, comentando a encenação, destaca os intérpretes, aos quais credita os melhores resultados do trabalho: "Todos eles (atores) transfigurados, reiluminados por essa grande e sensível intérprete que é Bibi Ferreira. Tão fantástico é o seu dom para o teatro que consegue superar seus próprios limites físicos para viver Joana, a Medéia brasileira, com uma garra de leoa, um ímpeto, uma honestidade que ultrapassam barreiras de tempo e de estilo, de escola e de forma. Bibi mostra o que é o ator quando entra em cena banhado dessa emoção sagrada que é energia teatral transformada em personagem vivida às últimas consequências".1

Desde Um Edifício Chamado 200, em 1971, Check-Up, e Dr. Fausto da Silva, em 1973, Paulo Pontes explora temas ligados à contraposição da pobreza ao poderio econômico (em 1972 traduz O Homem de la Mancha, musical de Dale Waserman sobre a história de D. Quixote, no qual o tema está igualmente presente). São criações que afirmam a crença no poder de um teatro da palavra, colocado como contraponto de racionalidade às experiências vanguardistas e contraculturais que impregnam o período. Gota d'Água, neste sentido, coroa este itinerário.
Notas

1. GUZIK, Alberto. As gotas da emoção. Última Hora, 21-22 maio 1977. p. 11.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 8 de julho: As Ações de Companhias

Se não quereis ficar doido, abandonai a cidade, fugi para Petrópolis, ou fechai-vos em casa.

Sobretudo não vos animeis a deitar a cabeça à janela ou a sair à rua, ainda mesmo de noite.

Apenas deres os primeiros passos, encontrareis um homem grave, que vos apertará a mão como antigo conhecido.

Pensais que vai perguntar pela vossa saúde, ou falar-vos de algum negócio particular? Enganai-vos completamente.

Desde terça-feira que não há nesta grande cidade senão um negócio. A forma vulgar da saudação, o clássico bons dias, foi substituído por um cumprimento mais cheio de interesse e solicitude:

- Então, quantas teve?

- Vinte.

- Ah! dou-lhe os parabéns.

E o sujeito deixa-vos com um pequeno sorriso de despeito ou de vaidade satisfeita.

Daí a dois passos encontrais um outro conhecido de mãos nos bolsos e chapéu à banda.

- Meu amigo, quer vender?

- O que, senhor?

- As suas ações.

- Ah! as minhas ações! Não se vendem.

- Pois, se quiser, fico com todas as dez.

Este especulador, que tomais por um comprador de ações, está desesperado por vender as suas antes do dia onze.

Mais adiante tomam-vos o braço de repente, e vos arrastam para a porta de uma loja ou para alguma esquina deserta.

- Quero pedir-lhe um favor.

- Pois não, senhor.

- Em quem vota?

- Em... Não sei ainda.

- Pois então peço-lhe o seu voto para o meu candidato.

- É membro da comissão?

- Não.

- Pois então está servido.

- Fico-lhe muito agradecido.

E continuais o vosso caminho, já um pouco azoado.

- Psiu!...psiu!

É um amigo que vem a correr, naturalmente para participar-vos alguma novidade importante.

- Sabe alguma coisa de novo?

- A respeito...

- Ora, a respeito das ações.

- Não; não tenho ouvido dizer nada.

- Fala-se numa segunda errata.

- Qual! não tinha jeito nenhum.

- Como! O regimento de custas era obra de jurisconsultos, e teve duas erratas.

- Tem razão!

- Adeus.

Quando pensais que vos desvencilhais do homem das erratas, caís nas mãos de um esquecido, que trata de comentar a grande lista dos agraciados, de princípio a fim.

Começa a calcular pelas famílias, depois passa a analisar os indivíduos, examinar a sua profissão, e por fim entra no vasto campo dos paralelos e das comparações.

O homem tem na memória uma certidão de batismo de cada um dos agraciados, e um registro dos bens, da morada e do gênero de vida de todos os agraciados na grande loteria do caminho de ferro.

Se o deixarem falar, disserta cinco horas a fio, sem copo d’água, sem mesmo temperar a garganta, sem fazer uma pausa, nem titubear numa vírgula.

Afinal vos larga para ir continuar além a sua propaganda, para ir pregar a nova cruzada contra os homens da comissão.

Assim enfastiado, aborrecido de todas estas coisas, tendo gasto inutilmente o vosso tempo, entrais no Wallerstein para conversar com algum amigo que não esteja contaminado.

Achai-vos no círculo de flâneurs, que passam o tempo alegremente a divertir-se a semear algumas flores neste vale de lágrimas.

Conversa-se sobre as novidades do dia, sobre a probabilidade da vinda de Thalberg e a notícia do contrato da Stoltz, sobre a próxima representação lírica em favor da Beneficência Francesa.

Se falais de uma moça elegante, de um lindo toilette preta que brilhava um desses dias nos salões, de uns bonitos olhos e de uns requebros graciosos, vos interrompem de repente:

- O pai não teve ações!

Se vos lembrais da Charton na Filha do Regimento, e se despertais todas as vossas belas recordações para sacia-las segunda-feira, ouvindo aqueles gorjeios maviosos de envolta com as facécias do Ferranti, não vos deixam acabar.

- É verdade, diz um, a propósito de Ferranti, deram-lhe dez ações!

E saís desesperado, correndo para a casa antes que vos venham atordoar novamente os ouvidos com a maldita palavra que está na ordem do dia.

Quanto mais se soubesseis o que é realmente para toda a sociedade a lista que publicaram na terça-feira os jornais diários da corte.

É uma espécie de cadastro, de registro, de livro negro da polícia, no qual se acham escritas as ações de cada um, por conseguinte o seu talento, a sua virtude, a sua consideração na sociedade.

As moças lá vão procurar os nomes dos noivos; os negociantes indagar se os seus devedores merecem a continuação do crédito; os amigos saber o grau de amizade que devem despender mutuamente.

Os curiosos divertem-se com as comparações, e os parasitas estudam os nomes daqueles a quem devem tirar o chapéu ou fazer simplesmente um cumprimento de proteção.

E assim são as coisas deste mundo.

Dante os homens tinham as suas ações na alma e no coração; agora tem-nas no bolso ou na carteira. Por isso naquele tempo se premiavam, ao passo que atualmente se compram.

Outrora eram escritas em feitos brilhantes nas páginas da história, ou da crônica gloriosa de um país; hoje são escritas num pedaço de papel dado por uma comissão de cinco membros.

Aquelas ações do tempo antigo eram avaliadas pela consciência, espécie de cadinho que já caiu em desuso; as de hoje são cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e interesses que prometem.
................

Mas temos muita coisa agradável sobre que conversar, e não vale a pena estarmos a gastar o nosso tempo com esta questão de jornais.

Enquanto senadores, deputados, empregados públicos, desembargadores, negociantes e capitalistas correm à praça para saber a cotação das ações, vamos nós para o teatro ver o benefício do Gentile.

O público deu-lhe todas as demonstrações de apreço e simpatia; os ramos de flores e os versos choveram dos camarotes, e a Charton cantou melhor do que ela mesma costuma cantar.

É um pouco difícil, mas é verdade. Há certas noites em que se conhece que não é a obrigação que a faz cantar, mas a inspiração, um movimento espontâneo, uma necessidade de expansão.

Nestas noites canta como o poeta que escreve versos inspirados, como o pintor que esboça o quadro que a sua imaginação ilumina, como a alma triste que dirige a sua prece a Deus, como a moça que sorri, como a flor que se expande, como o perfume que se exala.

Os lábios vertem os eflúvios d’alma, as melodias que um gênio invisível lhe murmura aos ouvidos, os segredos divinos que alta noite, a horas mortas, lhe contaram as estrelas, as sombras, as brisas que passavam sussurrando docemente.

Mas isto são coisas que se sentem, que se compreendem, e que não se explicam. Ouvi um artista cantar num dos seus bons dias, e percebereis essa nuança inexprimível que vai de bem representar o bem sentir.

Ia-me esquecendo dar-vos notícia do vosso pequeno teatro, do vosso protegido, minhas belas leitoras.

Se soubesseis como vos agradece a bondade que tendes tido em anima-lo, como se desvanece pelo interesse que vos inspira!

Agora já não é somente um pequeno círculo de homens de bom gosto que aí vai encorajar o seu adiantamento e aplaudir aos seus pequenos triunfos.

Na balaustrada dos seus camarotes se debruçam as senhoras mais elegantes, as moças as mais gentis dos nossos aristocráticos salões.

O lindo rosto expandindo-se de prazer, o sorriso da alegria nos lábios, elas esquecem tudo para interessar-se pelo enredo de uma graciosa comédia.

E depois a sua boquinha feiticeira vai repetir no baile, ou na partida, uma frase espirituosa, um dito chistoso, que requinta de graça, conforme os lábios são mais ou menos bonitos.

No Teatro Lírico podeis ver um semblante triste, uns olhos vendados pelos longos cílios de seda, uma fronte pensativa e melancólica.

Mas no Ginásio o prazer roça as suas asas d’ouro por todos esses rostos encantadores; e bafeja com o seu hálito celeste todos os pensamentos tristes, todas as recordações amargas.

Tudo sorri; os olhos cintilam, as faces enrubescem, a fronte brilha, o gesto se anima, e a alma brinca e se embala nas emoções doces, calmas e serenas.

A dor, a tristeza, a velhice e o pensamento, nada há que resista a esta franca jovialidade, que como um menino travesso não respeita nem as cãs, nem as lucubrações sérias, nem a gravidade e a sisudez.

E quando por volta da meia-noite vos retirais, ides satisfeito, julgando o mundo melhor do que ele realmente é.

E tudo isto é obra vossa, minhas amáveis leitoras: podeis ter este orgulho. Fostes vós que criastes este teatro; que o animastes com um sorriso, que o protegeis com a vossa graça, e que hoje o tratais como vosso protegido.

Entretanto peço-vos que, quando tiverdes ocasião, não lhe deixeis de dar umas dessas doces repreensões, uma dessas ligeiras advertências, como só sabem dar os lábios de mulher.

Dizei-lhe que faça com que seus artistas decorem melhor os papéis, e aprendam a pronunciar com perfeição os nomes estrangeiros.

Esqueci-me de pedir-vos isto naquela brilhante reunião em que vos encontrei seta-feira, tão bonitas, tão satisfeitas, tão risonhas, que bem se via que esta noite tem de ficar gravada na vossa memória, até que outra a venha fazer esquecer.

E agora atirai o jornal de lado, ou antes passai-o ao vosso marido, ao vosso pai ou ao vosso titio, para que ele leia o resto.

Bem entendido, no caso de que não esteja pensando em ações, porque então é escusado; não me dará a atenção de que eu preciso para falar a respeito da discussão que tem havido ultimamente na câmara.

O Sr. Sayão Lobato fazendo a exumação dos partidos políticos, procurou demonstrar que as idéias liberais tinham sido sempre estéreis para o país.

Em resposta duas vozes se ergueram; a do Sr. Melo Franco que defendia seus aliados, ea a do Sr. F. Otaviano que tomou a si a causa nobre do fraco e do proscrito.

Perdoe-nos o ilustre orador, que com tanto afã defende o passado de seu partido e que, apesar de magistrado imparcial se mostra parcialíssimo político nos seus retrospectos históricos.

Se o partido liberal não escreveu leis de 3 de dezembro, e não fez grande cópia de regulamentos, nem por isso deixou de fecundar as instituições do país com o germe civilizador de sua idéia, de suas crenças, de sua constância em pugnar pelas reformas úteis e necessárias.

A sua história é a história de muito pensamento generoso e nobre no nosso país, desde a sua independência até a calma e tranqüilidade de que atualmente gozamos.

Foi ele que nos deu, e que tem defendido ardentemente o júri e a imprensa; foi ele que primeiro proclamou o princípio das incompatibilidades, das eleições diretas, da independência do poder judiciário, que iniciou todas estas reformas que hoje se trata de realizar.

Não podemos estender-nos mais; porém em qualquer tempo aceitaremos com o maior prazer esta discussão; pela nossa vez também, revolveremos as cinzas dos túmulos, mas para honrá-las, esquecendo os erros dos mortos, e não para profana-las excitando o desprezo dos vivos.

Os partidos desapareceram da cena política; pertencem ao domínio da história. Simples investigadores, podemos apreciar os fatos com a calma necessária, sem sermos influenciados por interesses pessoais.

***

E agora, vem minha boa pena de folhetinista, minha amiga de tantos dias, companheira inseparável dos meus prazeres, confidente de meus segredos, de minhas mágoas, dos meus prazeres.

Vem! Quero dizer-te adeus! Vamos separarmo-nos, e talvez para sempre!

Tenho saudade desses dias em que brincava comigo sorrindo-me, coqueteando, desfolhando as flores da imaginação, e levando-me por estes espaços infindos da fantasia.

Oh! tenho muita saudade! Sempre me lembrarei dessas nossas conversas íntimas ao canto de uma mesa, com os olhos nos ponteiros do relógio, aproveitando as últimas claridades do crepúsculo para recordar ainda algum fato esquecido.

Mas é necessário. Faço-te este sacrifício, bem que me pese, bem que o levem a mal os meus melhores amigos.

Os outros te esquecerão, mas eu me lembrarei sempre de ti: basta isto para consolar-te.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.