quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Lêdo Ivo (Poesia Breve)


Ilustração: Robson Vilalba

A SÍLABA

O mundo inteiro cabe numa sílaba
e nela me refugio
para esperar a aurora.

Aprendi que Isto é Aquilo.
Não preciso aprender mais nada.
Já sei o essencial.

A noite guardou as chuvas de verão
e agora amanhece.
O dia é um voo de pássaro.

O DIA DOS HOMENS

Viver é preciso.
Não existe Inferno
nem Paraíso.

Apenas o chão.
E uma persistente
chuva de verão.

PRESSA JUSTIFICADA

Os mortos vão depressa
e a explicação é simples:
todos os cemitérios
devem fechar às cinco.

A MORTE DE UM ESTILISTA

Sua prosa era lapidar
e a morte o surpreendeu quando
estava castigando o estilo.
Na missa de corpo presente,
no recinto acadêmico
foi comparado a Camilo.
E seus pares derramaram
lágrimas de crocodilo.

OS DOIS TEOLÓGOS

“Se tudo é permitido,
não há liberdade”,
ponderava o poeta
na mesa do abade.

O ALCOÓLATRA

“Bebo porque Deus não existe”,
dizia o alcoólatra, mirando
o mundo com seus olhos tristes.

PARADA DE ÔNIBUS

Nas filas dos ônibus, quando anoitece, e o nada
[recolhe ao seu arquivo mais um dia jogado fora,
um cigarro entre os dedos é tudo o que resta
da iracunda piedade que o homem tem por si
[mesmo.

LAMENTAÇÕES DE CAMÕES

Fui amor, fui paixão e celebrei
o mundo, o vento e as ilhas infinitas.
Mas hoje, neste quarto centenário,
me assombra o meu destino.
Linguistas e filósofos fizeram
de mim uma apostila.

QUEIXA DO EDITOR DE POESIA

“Poesia não se vende,
ninguém a entende!”
− suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.

A TRAVESSIA

Quem ia na balsa
que, naquela noite,
atravessou o rio?
Vestida de preto,
era a própria Morte
morta de frio.

TEMPORAL NOTURNO

A chuva desta noite
pousa no meu sonho.
Pássaro molhado.

OHIO

O céu de Ohio é azul e branco.
A neve de Ohio é azul e branca.

O sol apaga as estrelas caídas sobre
[ os dormentes da ferrovia
por onde passam trens cheios de leite e milho.

Pousado no castanheiro, um pássaro azul
não segrega o seu canto.

ESTAÇÃO DE TRATAMENTO

A gaivota
sobrevoa
o semáforo.

Nenhum rumor da água.
Nenhum frêmito de alga.

Apenas os esgotos
lançam no leve oceano
o sigilo da vida.

O LAGO HABITADO

Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

NOITE DE DOMINGO

Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.

A INSPIRAÇÃO

Não creio na inspiração,
essa bruxa radiosa
que sopra a canção
e te faz alegre ou triste.
Mas que ela existe, existe!

Fonte:
Lêdo Ivo. Poesia Breve. Brasília/DF: Poexílio, 2012.

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