domingo, 23 de dezembro de 2012

Soares de Passos (Anelos)


Que imenso vácuo neste peito sinto!
Que arfar eterno de revolto mar!
Que ardente fogo, que jamais extinto
Somente afrouxa para mais queimar!
Ai, esta sede que meu peito rala,
Talvez a apague mundanal prazer:
Ali ao menos poderei fartá-la,
Ou num letargo sem paixões viver.

Mas dessa taça já provei... não quero!
Quero deleites que inda não senti...
A luta, os riscos dum combate fero!
Talvez encantos acharei ali.

A luta, os riscos, em acção travadas
Guerreiras hostes disputando o chão;
O sangue em jorros, o tinir d'espadas,
O fogo e o fumo do voraz canhão!
Ali os gozos dum feroz delírio,
À luz das armas, sentirei em mim,
Ou numa delas o funéreo círio
Que à paz dos mortos me conduza enfim.

Mas não, não quero sobre a terra escrava
A vis tiranos imolar o irmão...
O mar, o mar, que em sua fúria brava
Ninguém domina com servil grilhão!

O mar, o mar! sobre escarcéus revoltos
Em frágil lenho flutuar me apraz,
Ao som das vagas e dos ventos soltos,
E das centelhas ao clarão fugaz.
Ali sorrindo da feroz tormenta,
E dos abismos que me abrir aos pés,
Dentro desta alma de prazer sedenta
Sublime gozo sentirei talvez.

Mas o mar livre tem um leito ainda
Que os meus anelos poderá suster...
O espaço, o espaço! na amplidão infinda
Talvez que possa o coração encher.

O espaço, o espaço! qual ligeiro vento
Irei lançar-me nesse mar sem fim,
E a longos tragos aspirar o alento,
Sentir a vida que desejo em mim...
Ora águia altiva, desprezando o solo,
O rei dos astros buscarei então
Ora entre as neves do gelado pólo
Voarei nas asas do veloz tufão.

Mas solitário, sem cessar errante,
De que valera na amplidão correr?...
A glória, a glória, que em painel brilhante
Me of'rece a imagem dum maior prazer!

A glória, a glória! mil troféus ganhados,
Mil verdes palmas e lauréis também;
Triunfos, c'roas e sonoros brados
Da turba – é ele! – repetindo além...
Então em sonhos duma vida infinda
Verei a chama d'imortal farol,
Que eu meu sepulcro resplandeça ainda,
Bem como a lua, quando é morto o sol.

Mas não, que a inveja com a voz mentida
A luz em sombras poderá tornar...
O amor, o amor, que redobrando a vida,
A vida noutrem me fará gozar!

O amor, o amor, celestial perfume
Que a mão dos anjos sobre nós verteu,
Doce mistério que num só resume
Dois pensamentos aspirando ao céu!
O amor, o amor, não mentiroso incenso
Que em frios lábios só no mundo achei,
Mas imutável, mas sublime e imenso
Qual em meus sonhos juvenis sonhei...

O amor! só ele poderá nesta alma
Risonhas crenças outra vez gerar,
De minha sede mitigar a calma,
E inda fazer-me reviver, e amar.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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