domingo, 23 de dezembro de 2012

Teatro de Ontem e de Hoje (Diário de um Louco)


Adaptado do conto homônimo de Nikolai Gogol, o monólogo do funcionário público que vive a fantasia esquizofrênica do poder e da riqueza é realizado pelo Teatro do Rio, em 1964. A interpretação estilizada, entre o ridículo e o patético, marca a carreira de Rubens Corrêa. Trinta e quatro anos depois, o texto ganha nova leitura, interpretado por Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi.

O monólogo é uma adaptação do conto de Nikolai Gogol, escrito no século XIX, que antecipa a fase áurea do realismo russo. O autor constrói um funcionário público, Axenty Ivanovitch Propritchine, que é a encarnação da insignificância: sua existência pobre e solitária se mostra no pequeno quarto em que vive, sua falta de importância no emprego é pateticamente simbolizada pela função que ocupa: funcionário de apontar penas de escrever. Para escapar da pequenez de sua vida, ele cria para si um mundo de fantasias, uma nova identidade que cresce até fazer dele um rei. A segunda parte da história o coloca em um manicômio. Metáfora sobre a alienação, o texto mergulha profundamente nas causas sociais da loucura mostrando que, na cisão entre realidade e desejo, entre o mundo que se oferece para ser vivido e o mundo a que não se tem acesso, cria-se um abismo que cinde a personalidade.

A montagem de 1963 salva o Teatro do Rio de uma crise financeira que parecia irreversível. Com o teatro fechado e pagando dívidas, os sócios Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque ensaiam durante um ano e meio em tempo integral, dividindo-se entre o palco, o estudo do texto e a pesquisa da cultura russa. Embora a adaptação do texto já tivesse sido encenada na França, no Brasil eram incomuns tanto a transposição de textos literários para o palco quanto os monólogos. 

A iniciativa tem excelente repercussão e durante três anos, com intervalos para outras montagens, o espetáculo faz novas temporadas e turnês pelo país. No entanto, apesar de aplaudir a iniciativa e a qualidade da montagem, a crítica em geral se dedica mais ao elogio do texto do que à montagem - e o espetáculo não recebe nenhum prêmio. O ator Rubens Corrêa, vinte anos depois, em entrevista a Simon Khoury, considera este trabalho o melhor desempenho de sua carreira, o mais difícil tecnicamente e o que lhe exigiu maior entrega: 

"A sensação mais próxima de pronto que eu tive foi no Diário de um Louco. (...) Talvez nesse espetáculo eu tenha estreado perto do que queria, e quando acabou eu achava que estava perto também do meu objetivo. Recordo muito bem que nas últimas semanas (...) minha comunicação com o público estava tão linda, tão fácil, que comecei a querer enfeitar demais, aí me tranquei com o Ivan no teatro e comecei a limpar tudo, tirar os excessos, extirpar o supérfluo até atingir aquele grau de pureza absoluto, aquele ponto de simplificação total. Quando consegui alcançar esse ponto, ficou ótimo, e falei comigo mesmo: Rubens, agora realmente você pode parar de fazer o espetáculo, porque você não tem mais nada a declarar. (...) Nessa peça foi onde me aproximei mais das pessoas, onde cheguei mais perto delas. Penetrei em suas entranhas, fazia o que queria com o interior delas".1

Em 1997, Diogo Vilela retoma o papel, e a encenação fica a cargo de Marcus Alvisi. O diretor procura dar ao texto um tratamento leve, centrado mais na personagem do que no mundo que o esmaga. Há pinceladas de humor e a tentativa de se descolar da linguagem realista, ao mesmo tempo que se desenha o trajeto do espetáculo pela relação emotiva com a platéia. No teatro da Casa da Gávea, o público, acomodado em uma arquibancada, se encontra bem próximo à exígua área cênica. A intimidade que se cria entre o ator e a platéia é utilizada por Diogo Vilela com uma interpretação olho a olho e a projeção da interioridade do personagem.

A crítica Barbara Heliodora aplaude a realização da Casa da Gávea, recém-inaugurada e já com perfil definido, "fazendo clara opção por montagens austeras (...), vem encontrando um caminho digno de nota, no qual a qualidade tem sido a força norteadora".2 A crítica enaltece também a tradução de Luís de Lima e a dramaturgia de Roberto de Cleto. O trabalho de Diogo Vilela recompensa, segundo ela, a ida ao teatro: "Mais conhecido por suas atuações em comédia, Diogo Vilela consegue dar a gradação correta ao trajeto do personagem, numa atuação rica, variada e obviamente trabalhada com muito amor; se o seu pobre funcionário é patético e vítima de uma sociedade injusta, ele colabora para o próprio destino com suas invejas e manias, ele não é apenas um boneco na mão do destino, ele existe e é multifacetado".3

O crítico Macksen Luiz comenta os elementos do espetáculo: "A música vai um pouco de encontro com este detalhamento da cena ao sublinhar aquilo que o ator vive com economia de meios expressivos. Os dois momentos da personagem - a dissociação da realidade e o confinamento no manicômio - estão bem marcados pelo diretor, que consegue aproveitar a pausa (inclusive para a mudança do cenário) para criar um belo impacto cênico para registrar a transformação do tempo. A iluminação de Marcus Alvisi também marca com desenho detalhista as passagens de tempo, e os figurinos de Kalma Murtinho mostram um requinte de criação na precariedade da sua pobreza, enquanto o efeito cênico da camisa de força explode numa beleza melancólica no adereço da coroa de talheres".4

Notas

1. CORRÊA, Rubens. Depoimento prestado a Simon Khoury. In: ATRÁS da Máscara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. v. 2, p. 324. 

2. HELIODORA, Barbara. Arte inspirada na perturbação mental. O Globo, Rio de Janeiro, 20 set. 1997.

3. Ibid.

4. LUIZ, Macksen. A grandeza humana numa pequena jóia literária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set 1997.

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