sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 5


FLORES 

Não há ainda um mês que adormeceu em Deus o ser do meu ser, a minha criatura de amor e o leito em que ficou, no dormitório silencioso, já se recama de flores.

As que o acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras substituíram-nas e também feneceram; em compensação as sementes esparzidas pelo jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros mortuários, mal lhe caíram das mãos na terra fria logo rebentaram em vida, formando uma colcha de verdura que veste e enfeita a melancolia do jazigo.

E tal colcha matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas e miosótis.

Quem terá realizado esse milagre de florescência tão rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu, Primavera.

Será o remorso de no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita ou pensas, por acaso, que, escondendo em teu manto o túmulo querido farás com que o esqueçamos com a indiferença da terra que sorri em flores sobre a mocidade morta?

Como te enganas, traidora!

Mais prestígio tem a saudade em nossos corações do que tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se fazes nascer flores, ela ressuscita o que mataste, evoca-o a todo o instante, trá-lo da sombra eterna e integração na vida e só não o refaz, tal como o tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual se desce por uma escada, cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas se fecham sobre o náufrago.

A casa está cheia dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora, em toda a parte.

Ouvimo-lo. São os seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente e sentimo-lo quando o relógio bate, devagar, as horas: as horas em que ele acordava e vinha dar-nos os bons dias; as horas em que ele saía; as horas, lentas e longas, da sua ausência; as horas alegres que o traziam do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à casa, cauteloso, indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença. Todas essas horas continuam e ele continua a viver em todas elas.

O que nos aflige é a angústia de o não podermos sentir como o sentíamos outrora.

Vemo-lo como imagem refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo, ai! de nos.

Suplício igual ao de Tântalo é o que nos inflige a saudade.

Vê-lo, ouvi-lo no coração, senti-lo em toda a parte, tê-lo sempre presente em nós e tão distante como a mais remota das estrelas e todas as esperanças...

Temo-lo conosco, na família, que o não esquece.

O seu lugar vazio espera-o sempre.

Quando nos aparece, projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente apenas, sem palavras sonoras: batem-lhe os lábios como asas de pássaro cativo. Caminha, e os passos não lhe soam. Estende-nos os braços e nunca o alcançamos, porque, entre nós, interpõe-se uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.

Temo-lo tão perto e tão longe, conosco e para sempre apartado, vivo na imagem, só na imagem que é o reflexo da saudade. 

Seria, talvez, melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro, levando consigo para o túmulo todo o ser. Mas não! partem como o sol tramonta: deixando a terra em escuridão, mas cheia de calor. E esse calor na terra é vida; no coração é saudade.

Assim é na saudade dos vivos que os mortos se eternizam, nela é que eles continuam a viver: é o paraíso de tristeza, como o esquecimento é o inferno dos que não souberam fazer-se amar.

E em quantos paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos corações soa o seu nome em apelo lamentoso!

As próprias coisas parecem sentir-lhe a ausência.

Que vazio à mesa e que silêncio! É que ele já se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu lugar seja mantido como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um momento para outro.

Mas ninguém lhe serve o prato, o seu talher não se descruza, não se lhe desdobra o guardanapo, o copo mantem-se-lhe vazio, o seu nome é pronunciado a medo, para não despertar nos corações a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.

Essa sombra ficou e, para sempre, em nossos corações.

E tudo que resta daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar, lá está no cemitério em flores.

Flores, eis o que de meu filho fez a Primavera.

Todo o riso, todo o viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a bondade de um coração magnânimo, toda a energia de um caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim, reduziu-se ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.

Os que passarem por elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes a origem dolorosa, louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte, mas os que sabem o que elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram, esses...

A CASA

Mudar-nos... Por que? se a casa toda está impregnada da sua presença, do seu ser, como o vaso que conteve essência longamente lhe conserva o aroma?

Por que mudar-nos deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam, a sua voz timbra serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes, como inveterado hábito que se repete inconscientemente?

Quantas vezes, do meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe vagarosamente, ensurdecendo os passos para não despertar os que dormem!

Dar-se-á que os degraus conservem a impressão do seu andar e trepidem, como os móveis estalam, à noite, retraindo ou dilatando as fibras ao contato do ar? 

As tábuas não soam por si e, se estalidam, é que algum piso as recalca.

Paredes de pedra e cal, assoalhos de madeira morta, é possível que dele vos lembreis às horas justas em que ele entrava, pé ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a casa, fosse perturbado?

Se o lar assim se recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho cheio de reminiscências, (memória inerte em que ele persiste), porque nele viveu toda a sua alegre infância, nele passou toda a sua adolescência e nele começava a gozar a mocidade?

Se o túmulo, que lhe contém o corpo, não o relega, a casa, que lhe guardou o espírito, não o havia de repudiar, decerto.

Em todos os cantos brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas as manhãs, entra pela janela junto à qual ficava a sua cama, mal o dia aponta, lá vem insinuando-se no mesmo filão de ouro com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.

A lâmpada, que o alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua como dantes.

Ao passar junto do meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se. Faro, à escuta. Tudo cessa.

Para que insistir? Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero, violar o segredo que já não é da vida?

Se ele ali está e não me aparece, ele! Tão meu amigo, é porque não deseja ser visto.

Deixemo-lo com o seu misterioso pudor. É o filho em visita ao lar paterno.

Bem-vindo seja e que Deus o abençoe.

E se, ouvindo aos que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado...?! Pobre espírito!

Quem sabe o que sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros, transformada em tudo - na disposição dos móveis, no arranjo dos aposentos, com outros hábitos, outras vozes.

E a própria casa não sentiria com ele? Talvez!

Se vamos piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque havíamos de fugir ao ambiente onde o seu espírito demora? Lá, debaixo da terra, é a morte; aqui, em todos os ângulos, é a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.

Mudar-nos... Isso seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade, o canto em que ele viveu. O mesmo seria arrancarmo-lo do coração desprezando-o no esquecimento. Se a casa o retém, nós é que o havíamos de repelir? Não!

Onde uma vida se exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no; os fortes, os que verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo, como quem rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.

Mudar-nos... Não! Fiquemos onde ele perdura.

Longe, entre outras paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com outras portas, que nunca se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida, visitados por ele, como o poderíamos sentir?

Aqui, não. Aqui ele está conosco: é a sua casa. Que nela viva.

A LUZ 

Acordo. Ainda é noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil umbroso da montanha, fronteira à minha janela, destaca-se no dilúculo. Respira de leve a aragem.

Aclara aos poucos. Sente-se a luz em marcha. Já as árvores aparecem e as casas realçam, brancas, na massa da verdura.

Chia uma cigarra; outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o silêncio pálido. É o despertar nos ramos.

Debruço-me à janela e, em êxtase, contemplo o maravilhoso espetáculo do amanhecer.

O céu recama-se de cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que dele escorrem, broslam a paisagem, colorindo-a.

Chove polilha de ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu verde.

O primeiro raio de sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade alastra.

Enche-se o ar de vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto matinal dos pássaros.

Um sino soa, límpido.

Passam trabalhadores ainda estremunhados; rodam veículos.

Ressoa soturnamente, longínqua, uma sereia de fábrica.

São os rumores da vida que recomeça.

A vida... Tudo ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos, formigas desfilam em fieiras.

Tudo acorda e entra em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais, os mínimos seres, as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam, o mesmo pó levanta-se. É a vida!...

O relógio bate sonoramente: são os passos do tempo, as horas.

O próprio invisível agita-se, porque é ele, o vento, que meneia, brando e brando, as folhas.

Entretanto, em todo esse deslumbramento ativo, há escuridão e silêncio, falta alguma coisa que minha alma procura em vão.

Já o sol rebrilha, fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são as casas que acordam. Foi-se o sono dentro da noite.

E ele? Por que não acorda? Por que não vem do sono? Por que não o despertará a luz; ela, que fez o milagre de vencer a noite no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a natureza toda; ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente; ela, eterna; ela divina, por que não despertará o que adormeceu?

E o sol ressurge; o sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste na morte ao reclamo miraculoso da madrugada. 

De que me serve, a mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz, se, em vez de trazer-me alegria, mais me entristece o coração?

Fazes o dia, tiras o sol do oriente, és a Vida e não tens força para arrancar de um túmulo um pouco de terra.

De que te serve o Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu, ressuscitando o dia, e deixas a terra cheia de saudades?

És como os pródigos que se dissipam em festins e negam um mendrugo ao pobre que lhes estende a mão.

––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

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