terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 8

O QUE RESTA

Leva a tempestade o ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça tonta e aflita. Vai de árvore a árvore, salta de ramo em ramo ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em pairo, torna ao chão, olha, pesquisa e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.

Dolorida, ainda que tudo se lhe balde, revoa em volta da árvore em que teve o pouso e a prole, até que, de todo desanimada, abala, fugindo ao sítio da desventura.

Longe, porém, em verdes silvas, cantando aqui, ali palhiço e folhas, tece outro ninho, reinstala-se em tépido aconchego e dorme até que rompe a madrugada, e ei-la desperta, pronta para voar de novo, cantar ao sol, feliz.

Teu nome!

Anda de boca em boca como, de ramo em ramo, voa e revoa a ave desditosa. Ouço, a todo o instante, o doce nome ao qual dantes respondias. Mas o ninho em que ele vivia foi-se levado pela tempestade, caiu da árvore do amor, desfez-se em pó no chão.

Debalde soas, pobre nome! Não és mais que som. Andas nas falas, voas nos suspiros, sinto-te nas lágrimas.

Isso, porém, que monta se não assentas, porque o corpo, que era o teu pousadouro, desapareceu para sempre.

O desespero da ave cessa desde que ela refaz o ninho em outro sítio. Teu nome, esse... ai! de nós! nunca mais se firmará na vida, andará de boca em boca, de lembrança em lembrança em nossa saudade, como a ave, de ramo em ramo, nas árvores da floresta, mas sem poder fazer de novo o ninho, reinstalar-se e adormecer, para sair com a luz da manhã, reentrar na vida alegremente, ao sol.

Pobre nome! E é tudo que resta do que se foi na tormenta.

CONSOLAÇÃO

Já entrando no gabinete, detive-me, porém, à porta, comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as manhã, lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência os botões com que ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o grande tinteiro de bronze e a caixa dos cigarros.

Deixei-me estar quieto como se assistisse a uma cerimônia religiosa. E outra coisa não era aquele ofício de saudade, diante da mesa que fora o altar em que ele estivera exposto toda uma noite, entre as colunas flamejantes dos ciriais, com um crucifixo sobre o peito, e cercado de flores.

Com que enlevo ela colocava uma a uma no vaso, as rosas escolhidas!

Inclinava a cabeça para contemplá-las, a ver se estavam bem. Endireitava uma, chegava outra mais ao centro, punha os botões às bordas para que desabrochassem livremente, sem empeço.

Por fim, tomou o retrato delicadamente, a mãos ambas, chegou-o aos lábios e reteve-o, muito tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio e pôs-se a falar baixinho.

De repente, em ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com os braços estendidos sobre a mesa, de mãos postas, suplicava... O que? E, por entre lágrimas, agitada por soluços, a voz saía-lhe humilde, entrecortada e aflita.

Que diria a pobre mãe naquela ascese dolorosa?

Adiantei-me pé ante pé. O alto tapete abafava-me o rumor dos passos e assim, sem ser sentido, pude chegar até junto dela, e ouvi-la.

Rezava. A Deus? Não, ao espírito do filho. Rezava diante da imagem da sua grande, infinita saudade, pedindo-lhe o milagre da sua presença, um aceno, que fosse, do Além, para consolo da sua alma vazia.

Senti com ela, e, docemente, para não assustá-la, chamei-a.

Apesar da meiguice com que a tirei do arroubo, sobressaltou-se, estremecendo assustada. Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um braço pela cinta e, beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:

- Falavas-lhe? - Ela fitou-me com os olhos rasos de água. - Também eu converso com ele, disse-lhe - não como tu, dirigindo-me ao seu retrato - converso com ele dentro de mim: são as nossas almas que se falam. Tu queres o absurdo.

- Como absurdo?

- Sim. Queres que uma sombra te ouça; que o nada te responda. É absurdo. O retrato é um simples cartão de visita, lembra-nos a sua passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em volta de nós como a luz, envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que respiramos.

Eu sinto-o. Juro-te que o sinto e o que talvez te pareça indiferença, é tranqüilidade que tenho pela certeza em que estou firmado de que o não perdi de mim.

- Também eu o sinto - suspirou ela; - mas quisera vê-lo, ainda que fosse por um segundo. Que ele me aparecesse em um relâmpago e eu não sofreria mais. Por que não havemos nós de ver os nossos mortos? Quando conseguiremos passar da sombra para a claridade do Além! Deus devia ser bom para as mães...

- Deus é bom.

- Bom...! - disse meneando tristemente com a cabeça. - Bom... Bom e nega-nos o pequenino consolo que lhe pedimos com tantas lágrimas. Não mo quer mostrar durante a vigília, mostre-mo durante o sono, num sonho.

Quando dormimos desprendemo-nos do corpo, a alma faz como um pássaro que se ala do ramo onde tem o ninho. Pois bem, no sono, por que não mo deixa ver enquanto durmo? Seria um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por que?

- Por que? Ai! de nós, aí! da vida se conseguíssemos desvendar o segredo da Morte. O azul é o azul da alma. Quando viajamos que fazemos nós no largo oceano - atravessamos a cortina diáfana, vencendo-a, deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos opõe, ao longe. E por que a temos diante dos olhos sustamos a marcha? Não: prosseguimos com a certeza de topar em porto onde tomemos pé.

Ninguém se deixa ficar no oceano, à matroca - procura um rumo, norteia-se, toma um destino, rompe o azul. É preciso ter coragem e bússola para andar nos mares; é preciso ter crença e fé para levar a alma além da dúvida. Desesperos são temporais e é justamente nos temporais que se conhecem os mareantes.

Se, no furor da tormenta, com os ventos desencadeados e o mar grosso, a tripulação descorçoa e abandona o governo do navio, não serão, decerto, as vagas que o hão de salvar do soçobro. É preciso ter fé, e tu duvidas.

- Eu quisera ver, ter uma prova, por menor que fosse.

- Não as tens porque as buscas materialmente. No escuro não poderás achar o perdido; procura com luz e a Luz, para pesquisas tais, e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre e um dia, talvez, quem sabe...!

Como pensas? Concentrando-te, isto é: encerrando-te em ti mesma. É em nos mesmos que encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos, como a luz; nós não podemos ir a eles.

Achas que Deus não é bom porque cerra, em impenetrável sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que seria a vida, senão horrenda tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o Além o Nada, o inferno ou o Paraíso... Se fosse o Nada, todos viveriam a lamentar o perecimento, a destruição definitiva; se fosse o inferno, que dor saberem todos que os aguardava o tormento; se fosse o Paraíso, não haveria felicidade na terra porque, comparando a via contingente e sofredora com a delicia da existência paradisíaca, tudo fariam para desertar este mundo precário, com ânsia do outro, de eternidade feliz. E os berços, que se aureolam de sorrisos, cercar-se-iam de lamentações, porque viver seria tanto como penar.

Achas que Deus não é bom, porque não consente que o vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o sofrimento. Tu, em verdade, não choras o filho que deixou de viver, que está livre de todos os males que nos torturam: choras o filho que perdeste, o bem que te foi levado, o amor que te falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar sobre o seu túmulo.

- E isto basta-te? consola-te?

- Sim, basta-me, consola-me como me basta, para consolação de tudo quanto tenho sofrido, a certeza, em que estou, de que Deus existe. E se tu invocas o espírito do morto é porque estás certas de que ele não desapareceu com a morte, não se desfez como o corpo e agora, mais do que quando convivia conosco, triunfal, puro e eterno, tão puro como o teu amor, em que ele se encarnou, e eterno, tão puro como a Essência a que regressou.

- E achas que faço mal em trazê-lo assim enfeitado de flores?

- Mal? Por que mal? É um culto e todos os cultos, quando neles há sentimento, como nesse em que pões toda a alma, são belos e dignos de respeito.

Falo-te assim para que não chores tanto. Flores são carinhos; lágrimas são tormentos e, se ainda o chamas de filho e o queres venturoso, porque o hás de perturbar, entristecendo-o com tantas lágrimas?

Flores, sim quantas queiras. O que a morte podia levar, levou. O que nos resta ficará conosco eternamente, a saudade, e chorá-lo é devolver ao coração as lágrimas que dele tiramos.

SOMBRAS

Que resulta da nossa aliança com a luz? Sombra, nada mais.

Alegria é luz e assim como na maior claridade as sombras tornam-se mais negras, mais a tristeza se agrava se dela, em volta, a alegria exulta,

O silêncio é alivio: calma. Na quietude em que me refugio chego a não acreditar na tua morte porque te sinto em mim, comigo, como se vivo foras.

À noite as sombras não aparecem; todas se recolhem aos corpos que as expuseram. De dia, porém, destacam-se, prolongam-se com a terra.

No apogeu meridiano, não suportando a claridade fúlgida, acolhem-se ao de que saíram, como se concentra na dor um coração ferido se, em torno dele, há expansões de vivida alegria.

Felizmente, porém, o sol pouco se demora no zênite e logo que declina projetam-se, de novo, as sombras, até que todas se fundem em uma única, que é a noite.

Isolo-me, não porque aborreça a vida e inveje a felicidade alheia, mas para forrar-me no alvoroço da alegria.

Que o coração adormeça tranqüilamente, no silêncio, e sonhe, como quem dorme.


Sonhando, anda que em vigília, - porque recordar é sonhar de olhos abertos - vê o que foi, reconstitui, um a um, os dias venturosos até aquele que ficou eterno na memória, como jazem imóveis sobre as horas que não soam mais os ponteiros de um relógio cuja máquina parou.

O PIANO

Seis meses já haviam passado e, todavia, ninguém ousava abrir o piano. Mais do que escrúpulo havia medo.

Como que se temia o instrumento: negro, alongado a um canto da sala, em forma de altar, tendo sempre em cima um vaso de flores.

Rondávamo-lo sem ânimo de o tocar. De quando em quando uma das meninas folheava um álbum, de preferência o colecionado por ele, com as peças de sua predileção. Marejavam-se os olhos e, em silêncio, tornavam os volumes aos seus lugares, na estante.

E o piano permanecia mudo.

Um dia, porém, com receio de que as cordas se estragassem, abrimo-lo e a enervação metálica do instrumento rebrilhou ao sol.

Levantada a tampa do teclado, como um lábio que se arregaçasse em riso irônico, o fio das teclas apareceu ebúrneo.

Acercamo-nos todos do piano, olhando-o como se o víssemos pela primeira vez e dele esperássemos pressagamente revelação de segredo sombrio. Um momento ali ficamos, tácitos e quedos.

A mãe foi a primeira a afastar-se; as meninas seguiram-na às surdas, como se temessem, com o rumor dos passos, despertar o mistério. Bem sabiam elas que o instrumento havia de as fazer sofrer e a mim, e a todos, à própria casa que ele, dantes, alegrava com as suas melodias.

Seria pelo som? Se por tal fosse por que não nos comoveriam as vozes de tantos outros pianos que soam na vizinhança e só a daquele nos havia de entristecer?

É que as outras são vozes alheias, de outros lares. Nunca soaram para ele, nunca ele as despertara fazendo-as traduzir o que trazia na memória.

Ali passava ele horas e horas recordando trechos ou, entre nós, recolhido em êxtase, ouvia a mãe repassar as melodias que tanto amava.

E como as sentia! Com que enlevo, verdadeiramente religioso, ficava a ouvi-las, quieto, imóvel, sonhando. Enfim...

Um dia - era necessário que a casa retomasse o rumo na serenidade, reentrando na vida costumeira - abriram o piano e as cordas, que dormiam, despertaram.

Um frêmito percorreu todas a casa, a própria luz tornou-se tíbia e pálida, como acontece com a das lâmpadas de vigília quando entra na alcova o sol, e todos os olhos velaram-se de lágrimas.

Foi como se ele houvesse tornado: sentimo-lo presente.

E o instrumento gemia, soluçava. A própria musica, tão alegre outrora, vinha em pranto.

Seria o instrumento que a modificava ou os nossos corações? Eles, decerto.

O mesmo seria trasfegarmos de fonte a vasos que contivessem ou houvessem contido essência a água pura que logo se infundiria em aroma.

A música, impregnando-se de saudade, recordava e, com tal transporte, já não ouvíamos o instrumento, senão a ele, a voz dele e víamo-lo, sentíamo-lo, tínhamo-lo conosco e, a cada nota que vibrava, o coração respondia com uma lágrima, mandada aos olhos.

Ó arte misteriosa, arte etérea e evocadora! De que força superior dispões para que ressuscites mortos e exsurjas do túmulo, redivivos, os que se foram; as vozes, que se calaram; o corpo, porque o sentimos; o espírito, porque o percebemos no encantamento sonoro! Será a música sortilega como os conjuros dos nigromantes, que têm poder de trazer da Morte as presas sepulcrais?

O certo é que a música realizou o milagre que os nossos corações deprecavam.

Ele veio por ela, acudiu à invocação dos sons, desceu do Além e pairou sobre nós.

E toda a casa ficou, um momento, em alvoroço como a granja da parábola, de onde desertara o filho pródigo, quando os seareiros, avistando-o na estrada, largaram o serviço e correram alvissareiramente a dar a boa nova aos pais e aos irmãos do que tornava.

E quando a mais triste das mães se assentou ao piano, abriu o álbum que ele lhe dera e começou a executar débil, tremulamente e chorando, foi ele quem mais atentamente a ouviu, porque todos nós o sentimos, não aqui, ali, mas em nós mesmos, como todos vêem e sentem a luz ou o perfume em uma sala, se nela há sol ou flores vivas.

Ó arte miraculosa! E nós que temíamos ouvir-te! Nós que tanto tempo evitamos o altar da ressurreição, de onde ele saiu nos sons, como se evola o aroma nas espiras de fumo dos incensórios, vindo a nós, envolvendo-nos, visitando-nos com a sua presença imaterial, enchendo com ela o grande vazio da nossa saudade, imenso, sem termo como o infinito.

Já agora que importam as lágrimas! sabemos como atraí-lo. Ele adorava a música, buscava-a onde ela soasse. Por que não o havemos de chamar aos nossos corações com a voz harmoniosa?

E o piano, outrora temido, é hoje o nosso companheiro e confidente.

Abrimo-lo, e, em contraste com o sepulcro, que não nos restitui o que, avaramente, guarda, ele, com a vibração das suas cordas, traz-nos o espírito adorado, atrai-o do Além e fá-lo vir até nós, conviver conosco, senão em corpo carnal, na essência que dele se acha integrada em Deus, da qual conservamos a lembrança na memória do coração, que é a saudade.
–––––––

continua…

Nenhum comentário: