quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 9

A MEMÓRIA
Dantes não havia homem mais rico do que eu, e o meu tesouro chamava-se – memória.

O que eu tinha ali acumulado o com que ordem! Desde a infância a ajuntar por dia...

E tanto era eu desejar como ser logo atendido.

No dia último dos dez do meu martírio quando me convenci que morrias, não sei que se passou em mim.

Foi como se reduzissem a cinzas todo o meu tesouro.

Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu.

Assenhoreaste-te da casa das relíquias e nela imperas, solitário e dono.

E, agora, se recorro à memória por um nome, é o teu que, de pronto, me responde; se procuro recompor uma imagem, é a tua que se me afigura; se atento a um som remoto, ouço-te voz; se insisto em recordar uma cena, vejo te, e como? Infante, menino, adolescente ou jovem, como te perdi? Brincando, estudando, na arena, no trabalho, à mesa, na alegria da família, forte, feliz em suma? Não! Vejo-te sempre na hora extrema, estendido no leito arfando encarado em mim, com o crucifixo ao peito, entre as mãos gélidas, diluindo o derradeiro olhar em lágrimas.

Que alivio seria para mim perder o que me resta da memória!...

Mas não! Perder esse pouco, que é tudo. seria esquecer-te, nunca mais sentir-te, proceder com a tua lembrança como faz o túmulo com o teu corpo.

Não! Pereça tudo! Esqueça eu tudo, contanto que fiques no fundo da memória, tu, como fica a esperança no coração do mais desventurado.

RECORDANDO
Fica-me em caminho a casa em que nascente. Vejo-a diariamente e, olhando-a, lembro-me da manhã de alvoroço quando dissipaste o silêncio daquele lar com a alegra do teu primeiro choro.

Como me ecoou no coração a tua voz deserta: sons apenas, vazios; espaços em que deviam, com o tempo, desabrochar palavras, flores que não se trazem do céu, por serem efêmeras, próprias da terra.

Lembro-me de ti ao colo de tua mãe, tão pequenino e tão chegado ao seio como se fosses o seu próprio coração.

No breve instante que dura a minha passagem por esse oriente toda a tua vida passa-me pela alma, atravessa-a de golpe, cinde-a com a velocidade da luz.

Quantos sonhos ali entretecemos com idéias felizes, desenrolando infindavelmente o novelo de ouro das nossas esperanças!

Sete irmãozinhos teus já nos haviam deixado sós. Sete vezes, chorando, foram levar os enjeitadinhos da vida à roda lúgubre dos que, expostos na terra, são recolhidos no céu.

Sete vezes havíamos perdido os bens que Deus nos dera.

Temendo que te acontecesse o mesmo redobrávamos, à noite, a vigilância para que a Morte, ladra dos nossos amores, não nos entrasse pelo sono furtando-te também.

Se te aquietavas serenamente desconfiávamos da tranqüilidade; se te agitavas temíamos que fosse de febre. E tanto desvelávamos em volta do teu berço que despertavas assustado aos gritos.

Que alegria quando te ouvíamos chorar!

E tua mãe, sorrindo, dava-te logo o seio e, inclinada sobre ti, mais do que o leite, o que te oferecia era a própria alma. Tais eram as cenas de amor, iluminuras da minha felicidade.

Aconselharam-me a mudar-me para casa mas desafogada, que tivesse jardim onde respirasses ar livre, pudesses gozar o sol, passar as manhãs entre árvores.

Achei perto o que desejava. Casa ampla, terreno vasto, arvoredo e flores. Ali sim! Acordavas com o canto dos passarinhos.

Eras pequenino, de colo, quando me apartei de ti. Durante sete dilatados meses, errando por brenhas, correndo o mar e rios, parando em vilas sertanejas e em cidades, acompanhei o dealbar da tua vida pelas cartas de tua mãe.

Em uma anunciou-me ela os teus primeiros passos; em outra o teu primeiro dente; em outra a tua primeira palavra. E eu via-te no meu pensamento, sentia-te dentro de mim.

Quando regressei contavas um ano e três meses.

Ao entrar em casa, vendo-te formoso, com os cabelos em cachos, os dentinhos alvos à flor do sorriso, como se acabasse de mamar e trouxesse ainda a boca cheia de leite, olhando-me espantadamente, com a inocência a brilhar dentro dos olhos, fui-me direito a ti de braços estendidos.

Refugiste arisco para junto de tua mãe, com um beicinho de choro, que me fez sorrir.

Não me conhecias. Era natural. Pouco a pouco porém, fui conquistando a tua confiança e já na tarde desse venturoso dia éramos amigos íntimos.

E tu, tomando-lhe pela mão, levaste-me a percorrer o teu pequenino paraíso, a chácara em que te criaste, entre árvores, uma das quais a ameixieira, foi a tua ama mais solícita, dando-te os frutos dos seus galhos e agasalhando-te à sua sombra, onde brincavas, e, quanta vez! dormias.

Desde então até o dia triste se nos separamos foi por ausências breves.

Cuidava eu, na minha confiança, que assim seria sempre até que me soasse a hora de sair na viagem infinita.

S foste tu que partiste!

Eu deixei-te pequenino, quando não sentias ainda a minha falta: deixei-te, mas regressei. Tu me deixaste cheio das tuas raízes, já me havias tomado todo o coração... e não voltas, não voltarás nunca mais!

Passo diariamente perto da casa em que nasceste, olhando-a, porém, logo me lembro do túmulo em que jazes. Tu, não: teu corpo criado por nós, a nossa parte humana, que a divina foi por Deus reavida e lá está com Ele, longe de nós, longe da terra, tão longe!

Longe, todavia está o sol e aclara-nos; longe estão os demais astros, e vemo-los. Só tu não nos dás sinal de ti a não ser pela saudade em que te transformaste e que não nos deixa, tão viva em nós que eu, às vezes, tenho medo de que te estejamos a prender conosco, privando-te do Paraíso, encarcerado, como te trazemos, em nossos corações.

Mas se deles saíres que nos ficará neste mundo, perdida a única consolação que nos resta, que é a tua, lembrança?

Vive, vive em nós, no mais íntimo da nossa alma: vive na saudade como antes vivias, em esperança, no mais profundo do nosso amor.

VISITA
A súbitas, sem causa, constringe-se-me o coração. Enche-se-me o peito de ânsia. Trava-se-me a respiração em angústia asfixiante.

Abre-se-me um hiato na existência como se fendem abismos na terra quando a convulsionam cataclismos.

Deve ser assim o morrer, o instante em que a alma, soltos os liames que a retém ao corpo, emerge em surto demandando o espaço para ascender ao céu, liberta.

O que se passa em mim em tais momentos lembra-se essas bolhas de ar que afluem na profundeza dos lagos e, mal chegam à tona, dissolvem-se integrando-se na atmosfera.

Sinto que alguma coisa se desprende do meu ser, como se desprende uma pétala da flor.

Arrasam-se-me os olhos de água e o coração, em sobressalto, precipita as pancadas.

És tu que passas por mim. És tu que me fazes vibrar de comoção. És tu que me atravessas instantaneamente a memória como um pássaro, em vôo de frecha, corta, alígero, o espaço.

Pássaros...! E que são as saudades senão aves de arribação? Ao invés, porém das andorinhas, que, a maneira dos heliantos, andam sempre procurando o sol e, as primeiras brumas, reunidas em caravanas, partem, céus em flora, em busca de climas tropicais, elas emigram no estio e é justamente no inverno que nos chegam.

Coração alegre não lhes serve: gostam de fazer os ninhos à sombra da melancolia e aí vivem e procriam.

No mais rigoroso da tristeza, quando as lágrimas são mais copiosas, levantam-se em revoadas e escurecem e entristecem ainda mais o que, já de si, é lúgubre: o coração magoado.

Se no momento, tais evocações excruciam-me, deixam-me depois a alma aliviada, como certos bálsamos que, no instante em que são aplicados às feridas, exacerbam-lhes as dores para as lenirem depois!

E por que assim se converte a angústia em conforto? Porque, por ela, me convenço da tua sobrevivência.

Se tornas, posto que só em espírito, é porque existes.

O nada não se levanta, não atende, não se manifesta. E tu surges, vens a mim, anuncias-te presente, ainda que invisível.

Caminhando ao longo do silvedo eis que nos chega um aroma. Senti-lo e logo saber que flor o exala é tudo um instante. E a flor ? Onde? Escondida na balsa, oculta nas frontes ou refolhada nos aningais do lago, algures, invisível, mas presente.

É o que se dá quando meu coração se retranse de saudade. Entristeço-me, logo, porém, consolo-me sentindo-te.

Melhor seria que eu te visse, que vivesses conosco. Mas o maior tormento, depois que te partiste, era imaginarmos que te havíamos perdido para o sempre. Não!

Estás longe, mas existes, não desapareceste porque o essencial de ti a parte eterna do que foste, vive.

O que lá está, na terra, é o casulo: a borboleta voa livre, na luz, e, de quando em quando, saudosa, baixa do céu à terra e pousa de leve em nossos corações.
–––––––
continua…

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