quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Maria Nascimento Santos Carvalho (Romance Inacabado)

      Romance Inacabado é uma história triste, como tantas outras que já escrevi, retratando não só o meu drama pessoal, mas, também, o de muitos seres humanos cujo romantismo, despreparo psicológico ou a carência afetiva os levam a acreditar nas mais absurdas utopias do Destino, como continuo, ingenuamente, acreditando.

      Um dia, que poderia ser qualquer um do mês de agosto, Maria, como fazia há algum tempo, saiu para fazer uma caminhada de fim de tarde, que lhe fora imposta pelo excesso de peso gerado pela vida sedentária que ultimamente levava.

      Mal chegou ao destino avistou, a meia distância, um cavalheiro que, em princípio, lhe pareceu muito familiar, mas depois de observar atentamente percebeu que era um estranho, uma daquelas pessoas que, à primeira vista, encantam e deixam uma impressão tranqüilizadora.

      O seu mais novo conhecido, anônimo, parecia um artista. Sua beleza negra era de tirar o fôlego de qualquer mulher desacompanhada ou encostada num "estaleiro". Estava num papo animado com um amigo, simpático, com jeito brejeiro, rindo como se estivessem fazendo comentários maliciosos a respeito de alguma coisa ou de alguém.

      Estavam andando em posições opostas e Maria percebeu, ao passar olhando para o "artista", que sua presença parecia fazer parte da paisagem das pedras do Calçadão, que ele estivesse acostumado a pisar todos os dias, sem se dar conta, sequer, de que ela poderia ser uma pedra com formato diferente.

      Ao voltarem, novamente se encontraram e Maria teve a sensação de ser a mesma pedra do calçadão que ele havia ignorado e pisado há menos de uma hora e por mais que ela olhasse em sua direção não foi nem notada, porque os dois amigos só tinham sorrisos um para o outro, o que reforçou a sua certeza de que andavam o tempo todo debochando de colegas ou de quem quer que por eles passasse.

      Mais uma vez, mesmo nunca tendo avançado um sinal em sua vida afetiva, olhou com admiração para o "artista" e o achou a "paisagem" mais interessante que já havia passado diante dos seus olhos e, instintivamente, desafiando a sua timidez e esquecendo todos os Mandamentos da Lei de Deus, pela primeira vez na vida se via transgredindo todas as normas de boa conduta e como se os seus olhos despertassem a sua mente, sua alma e o seu coração, como uma louca que perdeu a noção do raciocínio, pensou alto, pronunciando, imaginariamente : "- eu quero este artista para mim".

      Maria era solteira e não pensava em se prender a ninguém, mas aquele "atleta" havia mexido com sua cabeça e por um momento pensou em tentar conquistá-lo, esquecendo sua meta principal : a liberdade ... E, fugindo daquele pensamento brusco, pensou: como queria conquistar um homem que nem havia olhado para ela, que não sabia seu nome, que nada sabia a seu respeito, a não ser que a ignorara como se ela fosse mais um pedaço do calçamento embaixo da sola dos seus tênis?

      Maria, mesmo sem perceber, passou a observá-lo, e, por incrível que pareça, tinha sempre a mesma impressão do dia em que o conheceu. Seu colega parecia mais falante e ele mais observador, mas, no fundo, dava para notar que tinham sempre um bom repertório de coisas engraçadas para comentar enquanto malhavam e nada que considerassem errado ou ridículo passava despercebido por seus olhos críticos.

      O tempo foi passando e cada dia mais crescia a vontade de Maria ouvir a voz do ilustre "desconhecido", de saber se era gentil, atencioso, se era romântico... essas coisas que mulher, geralmente, tem curiosidade de saber. Mas, mesmo quando uma vez ou outra estava sozinho, não lhe dava a menor chance de se sentir mais visível do que aquela pedra à qual já se reportou.

      Maria se sentia a pessoa mais insignificante da face da terra, mas jurava que, um dia, nem que tentasse o resto de sua vida, derreteria aquela pedra de gelo e falaria com o "dito cujo", nem que fosse para ficar mais decepcionada do que já estava com a sua indiferença, ou seu preconceito inconcebível.

      Depois de poucos meses de tê-lo visto, Maria já estava tão escravizada à presença daquele ilustre desconhecido que nem sabia como andar, quando passava por ele. Tinha medo de parecer que estava rebolando para chamar a sua atenção, de que ele a interpretasse mal... mas como iria interpretar isso ou aquilo se não se dava conta da sua existência ?

      Maria, na ânsia de perder peso mais depressa, caminhava usando meias compridas, roupas grossas etc. o que, para eles, poderia dar a impressão de que estava com as pernas mais riscadas de varizes do que o Mapa do Brasil, uma vez que pareciam observar o que viam e o que imaginavam ver para aumentar o rol de assuntos engraçados para as longas caminhadas.

      Por isso, para não alimentar a má impressão, com o tempo Maria foi se desvencilhando dos excessos do vestuário, descobriu as pernas, passou a usar camisetas, como quase todos os "atletas" com excesso de peso, e só faltou pendurar uma melancia no pescoço para que aquele homem lhe dirigisse a palavra.

      Apesar de saber que estava agindo errado, ela não abria mão do seu desejo de ser notada, e comeu o pão que o Diabo amassou por conta dessa maluquice que se havia apoderado dela. Ela reconhecia o "seu artista" a uma distância incrível e seu coração começava a bater desordenadamente. Pouco tempo depois, passou a pensar nele vinte e quatro horas por dia e quase toda noite chorava e se desesperava pela sua incapacidade de falar com uma pessoa que via quatro ou cinco vezes por semana e não era vista por ele hora nenhuma.

      Às vezes, ele sumia uma, duas semanas, para o seu maior desespero e quando o revia era como se o céu se abrisse aos seus pés e ela pudesse entrar nele com o seu "admirador imaginário" que, magicamente, a tornava invisível, como se nunca tivesse passado por ele. Era como se Deus se lembrasse de lhe devolver uma felicidade que nem lhe pertencia e talvez nunca fosse pertencer. Seu coração disparava e ela já não tinha mais controle da situação.

      Em síntese, já estava com os nervos à flor da pele e só faltava agarrá-lo a força e dizer : — eu estou aqui, eu o amo, eu sou louca por você... só falta eu me pendurar no seu pescoço e você finge que nunca me viu ? Será que sou uma porcaria tão sem valor que você não inclina seu rosto nem para rir de mim ?

      Mas, felizmente, sua loucura, por milagre, não chegou a tanto, embora tenha faltado muito pouco para ter um ataque histérico e se jogar nos braços dele.

      Um dia, quase três anos já passados, após tanto sofrimento, Maria viu, de longe, que "seu artista" estava sozinho e, quase como um desafio, prometeu a si mesma: é hoje que vou fazer este homem falar comigo, custe o que custar ... e ficou maquinando o que poderia fazer. De repente, quando ele se aproximou, fingiu que estava se sentindo mal, mas, nem assim ele parou para lhe perguntar se estava com algum problema de saúde, se precisava de ajuda.

      Foi a pior idéia que ela poderia ter, pois nunca pensou que mesmo fingindo que nunca havia cruzado com ela, ele fosse passar como um cometa, sem lhe dirigir uma palavra, nem perguntar se ela estava precisando de alguma ajuda. Parece até que sabia que a única coisa que ela estava precisando era ouvir sua voz e receber um gesto de carinho, por menor que fosse.

      Como não estava sentindo nada além da vontade de tê-lo mais perto, quando percebeu que nem olhou para trás para ver se alguém havia se importado com ela, recomeçou a caminhada e na volta, com voz trêmula, fingindo uma ousadia que não tinha, se atravessou na frente dele, quase o atropelando e foi logo perguntando, num fôlego só. — Porque você não deixa de ser metido a importante demais e não fala comigo? Só falta eu engolir você com os olhos e você finge sempre que não me vê ? Fingi que estava passando mal e você nem quis saber se eu precisava de auxílio... — Você já me viu algum dia aqui, por acaso ?

      Ele, surpreso, com voz pausada disse, com um ligeiro sorriso, não sei se de nervosismo pela reação de Maria ou de deboche pelo inusitado : — Eu conheço você, sim, e quando você usava aquelas meias grossas eu comentava com o meu amigo : — esta mulher, coitada, deve ter as pernas cheias de varizes, por isso, só anda com elas cobertas com estas meias ridículas. — Adorei quando você tirou as meias e passou a caminhar com roupas mais joviais. Aí, disse ele : — percebi como é uma mulher charmosa, interessante e sensual. Nesse momento ela se esqueceu de que era apenas uma pedra do calçadão e começou a se sentir uma pedra bruta, mas visível aos olhos do novo "amigo".

      Seguiram batendo papo, embora ela estivesse morrendo de medo que alguém a visse com um estranho e a interpretasse mal. Mas estava tão feliz com o rumo que a conversa estava tomando que queria que o mundo parasse naquela noite.

      Depois desse dia, "seu príncipe", o José, como se identificara, volta-e- meia aparecia sozinho e saíam conversando amenidades, separados como dois estranhos, com receio das línguas maldosas, uma vez que ele se revelara comprometido.

      Das amenidades passaram para conversas mais arrojadas, até que, um dia, chegaram ao ponto que ela queria : Ficar a sós com aquele deus negro, há tanto tempo dono dos seus sonhos, das saudades,de sua alma, dos maus pensamentos; enfim, do seu todo.

      Foi o que de mais bonito aconteceu em toda a sua vida. Ela se sentiu mulher de verdade, pela primeira vez, e abandonou aquela sensação de estar errada por amar tanto aquele adorável desconhecido.

      Em seus encontros e desencontros esporádicos foram descobrindo as suas afinidades... E quantas !

      Maria pensava que suas afinidades fossem capazes de aproximá-los cada vez mais, mas lhes faltava um fator em comum : ele a queria como amiga que aceitasse apenas uma "amizade colorida"; ela o queria como amigo, como homem e como o pai dos filhos que ela tanto sonhava ter, o que levava suas afinidades a um grande distanciamento, a um imenso abismo. O quase tudo em comum parecia muito pouco para um relacionamento mais sólido e, dia a dia, se perdeu na diversidade dos seus sentimentos, como nesses versos :

Coincidências

     Agora que conheço a tua infância,
      eu vejo que foi quase igual à minha :
      a falta de recursos, com constância,
      e tudo o que não tinhas ... eu não tinha !
         
      Nós tínhamos irmãos em abundância,
      pais honrados que, às vezes, à noitinha,
      percorriam a pé longa distância
      para vermos um circo, na pracinha.
            
      Lutando, já formados, progredimos,
      mas os nossos destinos não unimos
      porque em teu peito não me dás guarida ...
     
      Noventa e nove por cento há em comum ...
      e eu não sei como apenas " menos um "
      pode matar os sonhos de uma vida ! ...


     Meses depois, José se desvencilhou de Maria como se tivesse se desvencilhado de um par de tênis desgastado pelo uso, sem um desentendimento, sem uma explicação ... Apenas sumiu como havia aparecido, sem se importar com o que poderia estar acontecendo com ela, como se percebesse que ela estava precisando do seu apoio, de cuidados especiais para enfrentar uma gravidez de risco, uma vez que estava na primeira gestação, com quase quarenta anos de idade.
      José, que se dizia caixeiro viajante, durante muitos anos não foi visto por Maria, que criara seus dois filhos, Leonardo e Lena, os gêmeos gerados num relacionamento proibido e sem importância para José. Foi num momento de desânimo e decepção que expressou mentalmente as suas

Marcas na Alma

     Partiste sem aviso, às escondidas,
      sem promessa de um dia regressar..
      e, embora com saudades incontidas,
      eu me recusaria a te esperar.
   
      Se eu tivesse o milagre de outras vidas,
      e motivos de sobra para amar,
      com receio de novas despedidas
      eu jamais voltaria a te aceitar ...
     
      Foram tantos projetos que ruíram,
      tantos sonhos de amor que se evadiram,
      tanto estrago em minha alma a vida fez
      
      que, farta de tristeza e desengano,
      queria que o destino desumano
      acabasse comigo de uma vez.


     Quando passou para a faculdade, num "trote de calouros", Leonardo se feriu gravemente e sua colega de cursinho, Andressa, que estava com ele, ajudou a socorrê-lo e passou a noite no hospital aguardando notícias.

      Maria, avisada da tragédia, chegou pouco tempo depois e conversava com a coleguinha de seu filho quando José chegou preocupado, tentando levar a filha para casa, sem perceber que era a mãe de Léo que se encontrava de costas. Foi um choque muito grande para os dois.

      Léo estava sendo operado e José logo se ofereceu para doar sangue, se fosse preciso e para ficar com Maria, enquanto o pai do garoto não chegasse. Maria agradeceu, dizendo que não era preciso, mas José levou Andressa para casa e voltou para lhe fazer companhia, confessando que sua esposa estava doente, há muitos anos, e que ele era quem cuidava dos dois filhos : Andressa e Anderson, já quase adultos.

      Foi no hospital que José teve certeza de que Leonardo era seu filho, depois de se submeter a exames para descobrir se havia compatibilidade para doação de um rim, uma vez que o acidente havia comprometido os rins do novo universitário.

      Leonardo, depois de muito tempo hospitalizado, voltou à vida normal, mas, ainda muito magoado por não ter conhecido seu pai, leu uma poesia que havia encontrado num "livro de bolso", e parecia a sua história :

Desilusão

     Ao ver um pai chegar na minha escola
      trazendo a mão do filho em sua mão,
      carregando, feliz, sua sacola,
      sinto uma enorme dor no coração...
      
      Penso em mais tarde os dois jogando bola
      e sinto até inveja da emoção
      daquele pai que, às vezes, se controla
      para não dar no filho uma " lição " ...
      
      Agora, quase adulto como estou,
      nem ligo para o pai que me gerou
      e não dirige a mim um simples ai ...
      
      Se esse pai não me deu nenhum conforto,
      não sabe se estou vivo, ou se estou morto,
      não quero nem saber se tenho um pai !...

    
      Hoje, com os filhos ultrapassando os vinte e um anos de idade, Maria olha para trás, revive todo o sofrimento porque passou e ainda encontra forças para agradecer a Deus por seus filhos, fruto de um amor proibido e inconseqüente, e reza para que seu "artista preferido" encontre o amor que teve e jogou fora, sem sequer tomar conhecimento da existência de seus filhos, que, inteligentemente, talvez pouco estão se importando se em suas certidões de nascimento existe apenas um pai ignorado, como costumam dizer nos momentos mais angustiantes, embora Maria tenha certeza de que dizem isto para não entristecê-la mais ainda.

      Leonardo e Lena freqüentam a mesma sala de aula, e num trabalho escolar, falando sobre o Dia do Papai, Lena resolveu apresentar seu

Sonho Adormecido ...

     Sonhei com o meu pai a vida inteira,
      embora um pai que nem me viu crescer ...
      pois encontrei, no sonho, uma maneira
      de encarar meu problema sem sofrer ...
      
      E, filha de um ausente e mãe solteira,
      eu me humilhei demais para entender
      que o preconceito é a mais triste barreira
      que o mundo inteiro, um dia, há de vencer.
      
      Meu pai, que era caixeiro viajante,
      mudava de lugar a cada instante,
      deixou o seu " produto " e foi embora ...
      
      mas mesmo sendo um pai desconhecido,
      se acordasses meu sonho adormecido
      eu seria, meu pai, feliz agora.

     Maria foi quase todos os gêneros de pedras no caminho de José, o seu príncipe, mas embora tenha rolado nas tempestades que o destino lhe impôs, continua com a mesma certeza do primeiro dia em que o viu, porque seu coração, seus olhos, sua mente, sua alma e todo o seu ser o escolheram para ser o homem de sua vida e, mesmo depois de tudo que já passou, mesmo com o coração sangrando por não havê-lo conquistado, ainda não perdeu a esperança de reencontrar a felicidade ao lado do homem que, um dia, sem conhecê-lo, sem nada saber da sua vida, pensou como quem reza em silêncio : — " Eu quero este homem para mim". Por enquanto, enquanto vive de esperança, faz de Contradição a sua prece de cada dia.    

Hoje, mais uma vez, desesperada
por ser injustamente preterida,
vejo que já nasci predestinada
a amar sem nunca ser correspondida ...
     
       Mas o que mais me dói, na despedida,
      é saber que fui sempre desprezada
      porque foste o anjo bom da minha vida
      e eu da tua jamais pude ser nada.
      
      Se me pudesse ver da eternidade,
      chorando de tristeza e de saudade
      pelo amor que no tempo se perdeu,
     
       Carlos Drummond de Andrade me diria :
      " E agora ", como vais viver, Maria,
      sem o José que achavas que era teu ? !


     Como a esperança é a última que morre, Maria espera, um dia, poder dizer :

      – E serão felizes para sempre…

Fonte:
http://www.marianascimento.net/contos/003.htm

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