sábado, 19 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (Dimas Carvalho e o Reino da Poesia)


Conheço a literatura de Dimas Carvalho há muito tempo. Li quase todos os seus livros. Meu conhecimento dele, porém, veio depois. Vi-o pela primeira vez numa tarde de janeiro de 1997. Inaugurava-se o Bosque Moreira Campos (Faculdade de Letras da UFC). O evento está registrado em fotografias, três delas reproduzidas nas páginas derradeiras do Almanaque de Contos Cearenses, daquele ano. 

Não lembro mais quem me apresentou a Dimas. Talvez Pedro Salgueiro, relações-públicas da literatura cearense. Conhece todo mundo: acadêmicos engravatados, cordelistas de chapéu de couro, poetas de todos os naipes: enigmáticos, sorumbáticos, asmáticos. Frequenta, com desenvoltura, o banquete dos escritores de fraque e cartola e a alcova das hetairas. Pois deve ter sido ele o autor da apresentação de Dimas a mim. 

De longe, avistei aquela figura esquisita, a sorrir e palrar. Supus tratar-se de algum cigano (Pedro se dá bem com todas as maiorias e minorias), em busca da mulher perdida. Vestia calça de linho branco e camisa colorida (talvez portasse um punhal na cintura). Na cabeça, chapéu de feltro. No pescoço, cordão dourado. Nos braços, relógio e pulseiras de ouro. “Não vá se assustar. Dimas gosta de se mostrar assim. Além disso, anda sempre com, pelo menos, duas mulheres jovens e belas. É o dândi da ribeira do Acaraú.” Não me assustei, porque nem a poesia mais enigmática me assusta.

Depois daquele dia festivo (Moreira Campos merece mais homenagens como aquela), Dimas e eu pouco nos vimos, ele na sua Acaraú, eu em Fortaleza. Estivemos em bares e encontros de escritores, palestras em faculdades, lançamentos de livros, entrega de prêmios (as paredes e estantes de sua casa estão repletas de certificados, medalhas, etc). Tanto abocanhou prêmios que julgadores de concursos já dizem: “Não, desta vez Dimas não deve ganhar. Precisamos democratizar os concursos literários.” Não concordo com certas práticas democráticas. Pois isso ocorreu em certo concurso, do qual fui julgador. Dimas concorreu na categoria “livro publicado”. Dei meu voto, convicto de estar escolhendo o melhor. Os demais julgadores, no entanto, votaram em outra obra: “O livro de Dimas é o melhor, sim, mas ele já ganhou prêmios demais. Agora é a vez de outros.”

Amante das fêmeas humanas, Dimas escreve com um olho na folha de papel e outro nas ancas das moças. Apesar disso, não há uma só página em sua obra em que se vislumbre ao menos uma curva mais erótica.

Admirador de padre Antônio Tomás, sabe-lhe de cor todos os sonetos. E os diz, ufano, como se cantasse o Hino Nacional Brasileiro. Como o primeiro quarteto de “Verso e reverso”:

Essa mulher de face encaveirada
 Que vês tremendo em ânsias de fadiga
 Estendendo a quem passa a mão mirrada
 Foi meretriz, antes de ser mendiga. 

É sua intenção publicar em livro a obra do grande poeta de Acaraú.

Dimas é viajante nobre. Todo ano vai à Europa. Conhece, palmo a palmo, as ruas das principais cidades europeias. E tem memória fabulosa. Narra até os pormenores de seus passeios por Lisboa, Paris, Roma. Para o ouvinte é como se estivesse ao lado do poeta nas caminhadas pela História.

Por tudo isso, já valeria a pena conhecer Dimas Carvalho. Mas há ainda o poeta e o contista, ambos excelentes. É ler seus livros, suas fábulas perversas, suas pequenas narrativas, suas histórias de zoologia humana, seus poemas. O mais recente – Acaraú & outros países – é uma homenagem ao seu pequeno reino, a oeste do império dos tapuias. Nele há também um poema longo, monumental, desses que só os maiores conseguem compor: “Outros países”. São 21 sonetos de esquemas variados. Assim, os 11 primeiros se apresentam dentro do chamado modelo inglês. Todos – ou o todo – compostos como numa partitura. E então se vê, sobretudo, o rosto de Camões (não só nos versos “é para muito além que eu não desejo / cruzarmos os olhares redundantes / por mares nunca navegados dantes / dormem os caminhos que pra nós prevejo”) e o olhar iluminado do Jorge de Lima de Invenção de Orfeu (“Ser que nasceu bem antes do princípio / e que decerto nunca há de ter fim / pois ele é o próprio abismo, o berço, o início”).

Para ser poeta da estatura de colosso, bastaria este poema. Obra de quem se situa entre o eterno e o universal.

Fortaleza, 24 de agosto de 2009.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/216

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