terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: "Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim". "Está bem", respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: "Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece".

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir-se embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. "O que foi, amigo macaco?" "Tira-me daqui", pediu o macaco. O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. De repente, desistiu: "Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo..." Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. "Prefiro viver sem a cauda do que ser comido..." Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou a casa, cozeu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 4)


Waldir Araújo (Salvo pela Morte)

Carlos Nhambréne regressava de mais uma viagem à cidade de Bissau, onde tinha ido tratar de negócios ligados à venda de gado. No caminho para a sua região natal, a cidade de Bafatá, sentou-se confortavelmente na carrinha “Toca-Toca”* que levava cerca de duas dezenas de fatigados passageiros. Abriu cuidadosamente o jornal que ainda não tinha tido tempo de ler e, como sempre faz, foi directamente para às páginas da necrologia. Era um hábito, um vício ou qualquer outra coisa que o valha, mas o certo é que era um ritual. Tão bizarro quanto fatal. Mal abria um jornal, Carlos Nhambréne ia directamente para as páginas dos mortos. Tinha um estranho prazer em ver aquelas páginas. Saber quem deixou o mundo dos vivos. Apreciar a foto escolhida pela família do defunto para, pela última vez, mostrá-la a todo o mundo. Todos os dias de manhã, à hora do seu mata-bicho, mandava o pequeno Bubácar comprar o Djamburéré e já com o jornal na mão, repetia o seu ritual de leitura. Ia de imediato para as páginas da cruz e só depois lia a informação geral espalhada no jornal. Sem nunca antes deixar de apreciar todos os dados dos mortos diariamente anunciados. Conhecia os nomes e os estilos necrológicos das agências funerárias. Apreciava deleitemente os textos:

»A Família Enlutada Informa...«; »A todos os amigos e conhecidos a agência funerária Deus i Garandi informa do desaparecimento de...«; »A empresa Glória da Guiné informa aos clientes e amigos que o seu Digníssimo gerente deixou o mundo dos vivos.«

Nesse dia de regresso à casa depois de mais um excelente negócio, abriu o Djamburéré e foi directo às páginas do seu delírio. Carlos Nhambréne não queria acreditar. Mal começou a ler gelou de espanto. Numa coluna em destaque, com uma foto que lhe era muito familiar leu:

»Faleceu Carlos Nhambréne - A Família enlutada e amigos informam que o seu ente querido faleceu no passado dia 15 de Abril de 1992. O corpo encontra-se em câmara ardente da Igreja Matriz de Bafatá«.

Nhambréne perdeu o fôlego. Era a sua foto estampada na página da necrologia do Djamburéré, o jornal mais lido em toda a região Leste da Guiné-Bissau. Voltou a ler a mensagem ilustrada com um retrato que tirara há pouco mais de um mês na Foto do Leste, do seu vizinho Djibril Mané. Fechou a página impulsivamente. Olhou sorrateiramente para o restante dos passageiros que seguiam no »Toca-Toca«, quatro deles liam o mesmo jornal.

Carlos Nhambréne foi subitamente invadido por uma ira fulminante, um sentimento de ódio indescritível. Quem teria feito uma brincadeira de tamanha bizarria? Quem teve a coragem de provocar um dos homens mais temidos da região? Anunciar a morte de alguém que nunca se sentiu tão vivo? Enquanto o transporte, já cansado de muitos quilómetros galgar, percorrendo as massacradas estradas do interior, o comerciante mais proeminente de Bafatá e arredores preparava em silêncio ardente o plano de vingança. »Ah, mas quem fez isto vai pagá-las ou não me chamo Nhambréne Mon di Ferro«. Alcunha pela qual era conhecido em toda a região leste da Guiné-Bissau, Nhambréne »Mon di Ferro«. Por ser um patrão rude e ditador. Por ser um sovina de primeira água. Por se gabar de resolver tudo a pulso. E – por último, mas não menos revelador «, por ter uma prótese de metal que lhe completa o braço direito subtraído em consequência do acidente que sofrera em 1969, quando o camião militar que conduzia pisou uma mina do Colón**, junto à localidade de Candjambari, nos idos e gloriosos tempos da »Luta pela Liberdade da Pátria«. O acidente salvou-lhe a vida. Foi graças a esta desgraça que o triunfante »partido do povo« lhe atribuíra o almejado estatuto de »Combatente da Liberdade da Pátria« e um chorudo subsídio ad-eternum, o que lhe permitiu abrir um negócio de gado numa enorme Ponta que comprou e ainda três fábricas de gelo espalhadas pelas caloríficas localidades de Bafatá, Bambadinca e Gabú.

Nhambréne dobrou sorrateiramente o jornal, guardou-o na pasta preta que trazia sempre consigo e pôs-se a conjecturar. Sabia que inimigos não lhe faltavam. Amigos, só mesmo os que as circunstâncias emprestavam. Era mais fácil começar pelos últimos tempos. Quem teria motivos para pregar uma partida fúnebre como esta? Tinha dificuldades em ordenar as ideias. É que se trata de tarefa difícil encontrar uma acção deste homem que não tenha magoado fulano ou ofendido sicrano. O temperamento do homem trai qualquer gesto. Exímio gestor dos seus bens, Nhambréne Mon di Ferro era também excessivamente exigente e descaradamente ambicioso. Dormia apenas quatro horas por noite e o resto do tempo aplicava-o a tratar de enriquecer. Não se lhe conhecia filhos nem mulher oficial. Dormia com as empregadas e fazia tudo convencido de que ninguém sabia das suas desventuras nocturnas. Das mulheres que tivera por algumas horas ou noites, apenas uma marcou o homem. Aminata Sadjó, uma belíssima comerciante de Bambadinca, localidade a escassos quilómetros de Bafatá. Aminata conhecera Nahmbréne numa das viagens de negócios de gado. O homem ficou fascinado com a beleza dessa mulher de etnia mandinga. Uma beleza adornada por uma notória inteligência e capacidade de encantar. No encontro Aminata levou a melhor ao conseguir comprar mais cabeças de gado, deixando Nhambréne enraivecidamente enfeitiçado. O envolvimento entre os dois aconteceria dias depois. Mas foi sol de pouca dura. Não tardou muito, Aminata começara a encontrar no homem mais defeitos que virtudes. Depois de algumas desfeitas do comerciante, pequenas traições e mentiras mal formuladas, Aminata Sadjó nunca mais quis ver Nhambréne de perto. Enquanto isso, a paixão do comerciante de Bafatá por esta linda e misteriosa mulher de Bambadinca não conhecia limites. Mas estava de parte a hipótese de ser a Aminata a autora da fúnebre mensagem. Isto porque a mulher tinha mais que fazer. Detestava a arrogância de Mon di Ferro, mas votava-o ao desprezo. Aliás, o nome de Aminata só surgiu na mente ferida do homem porque é talvez a pessoa mais importante -ou será menos irrelevante?- da sua desinteressante vida.

Depois pensou no seu mais acérrimo rival. Samba Dabó, comerciante de cabeças de gado, dono de duas concorridas lojas em Bafatá e respeitado por toda a comunidade muçulmana do Leste. Nhambréne e Dabó cresceram juntos. O ódio de um pelo outro também. Com o passar do tempo, cada um foi à sua vida e voltariam a encontrar-se anos depois. Os dois feitos homens e comerciantes. Tirando os sinais exteriores que o tempo lhes foi deixando no corpo, mantinham o mesmo carácter. Samba Dabó, sério, trabalhador e pragmático. Carlos Nhambréne, trabalhador, sim, mas pouco sério e muito menos pragmático. Nhambréne fez de tudo para que o negócio de Dabó fracassasse. Até foi ter com o velho Serifo Camará, conhecido Muru*** da zona Leste. Pediu ao velho que utilizasse os seus dons de murundadi**** para atrasar a vida do seu inimigo de estimação. Mas saiu de lá com uma descasca. O Velho Serifo Camará repreendeu-lhe e disse que não utilizava os seus dons para fazer mal a um homem bom. Enquanto isso, Samba Dabó continuou a viver em Bafatá ignorando por completo a existência de Nhambréne. Sabia dos truques e dos constantes actos que este fazia para prejudicá-lo, mas em troca Samba apostava em manter o seu bom nome, a sua melhor defesa. Com tantos afazeres e até pela pouca importância que passou a dispensar ao seu concorrente de negócios, Samba não tinha assim grandes razões para constar na lista dos suspeitos. Bem, assim sendo, só se fosse o novo Governador da região. Jovem recém-nomeado e humilhado por Nhambréne desde o primeiro dia que assumiu o novo posto. Toumane Embalo tinha sido nomeado há poucos meses para substituir um antigo Governador que entendeu que chegara a hora de largar tudo e ir dormitar nas propriedades que foi acumulando ao longo dos tempos do poder. Toumane vinha cheio de energia, com ideias de mudar as coisas, instalar o rigor e desenvolver a região. Sonhos! Mal chegou enfrentou a teoria de conspiração instalada e fomentada por Carlos Nhambréne. Os habitantes mais influentes, comandados pelo Mon di Ferro, começaram logo por questionar a capacidade do jovem, a troçar da sua tenra idade e curto currículo. Porém, Toumane tentou não se deixar intimidar, mas teve dificuldades em dar início aos trabalhos. Os seus subordinados olhavam-no com um ar de desconfiança e fingiam não entender a sua linguagem de dinâmica e mudança. Cedo, o jovem administrador identificou o alvo número um, o obstáculo-mor do seu trabalho: Carlos Nhambréne. Mas sabia que a solução não deveria ser hostilizar o homem. Apesar de toda a arrogância e maldade, Nhambréne Mon di Ferro era, sem sombras de dúvidas, dos homens mais poderosos e temidos de Bafatá. A estratégia de Toumane era ter o homem como um aliado, pelo menos nos primeiros tempos. Carlos Nhambréne começara, aliás, a reconhecer o esforço do jovem, que lhe facilitava todas as burocracias relacionadas com o negócio e que lhe convidava para todas as cerimónias oficiais, apresentando o Mon di Ferro como »o nosso mais exímio comerciante e dos mais brilhantes cidadãos da região«. Toumane Embalo estava fora da lista dos suspeitos.

Enquanto procurava idealizar outro suspeito voltou a abrir sorrateiramente a página que anunciava a sua morte. Desta vez fixou bem a notícia. Não conseguia relacionar o estilo da escrita necrológica com nenhuma das agências funerárias da região. Fixou a sua fotografia e começou a pensar na sua vida. Quem era Carlos Nhambréne? Um homem duro e só. Por momentos vislumbrou toda a sua infância. As dificuldades que enfrentara desde os primeiros anos. A morte da mãe e a fuga do pai. Mais tarde a separação dos dois irmãos que decidiram partir para o Senegal à busca de melhor futuro, mas onde acabariam por encontrar a morte. Um tio austero acolheu-o educando sob a lei do chicote e da exploração, mas ensinando-lhe também toda a arte da pastorícia e dos negócios do gado. Era esse tio que viria a deixar tudo em nome de Nhambréne. Uma herança que honrou, fazendo crescer o negócio. Mas o duro passado moldou-lhe a alma e toldou-lhe o sentimento. A dureza passou a ser a palavra de ordem e guia dos seus actos. As relações com as pessoas que o circundavam era meramente mecânica, de puro interesse. Pensou nas maldades que fez sem se aperceber. Nas pessoas que procuravam despertar-lhe o sentimento da amizade e do amor. Pessoas a quem ele sempre respondera com desprezo. Nos empregados que serviram-lhe com dedicação e a quem ele sempre pagou míseros tostões. No pequeno Bubácar que lhe foi entregue para criação, por um casal desfavorecido que julgava que assim protegeria o futuro do rapaz. Criança que hoje não passa de um sujo e maltratado moço de recados. Pensou em tudo mais, mas só se lembrava de actos menos dignos, momentos de maldade de uma vida oca em virtudes. Sentiu-se invadido por um sentimento de remorso do tamanho do mundo. E, de repente, aconteceu algo de incrível. Começou a chorar. Carlos Nhambréne a chorar de remorsos! Chorou compulsivamente ignorando as pessoas que iam sentados a seu lado. Pouco depois sentia-se um homem novo, de alma lavada e coração aberto. Imaginou pela primeira vez como seria tudo diferente se ele desse um pouco de si aos outros. E sorriu. Carlos Nhambréne sorriu por ter bons pensamentos!

E de repente lembrou-se do sorriso que jamais esquecera. O sorriso da Aminata Sadjó. Breve no gesto, mas eterno na memória de Nhambréne.

Finalmente, quando o cansado Toca-Toca parou em Bafatá, Mon di Ferro reparou que era o único passageiro a descer naquele destino. Voltou para trás e viu apenas mais quatro passageiros sentados na carrinha. Eram as quatro pessoas que também vinham a ler o Djamburéré. Ainda tinham os jornais abertos a tapar-lhes a cara. Já de lado de fora do Toca-Toca, olhou de novo para dentro da carrinha e viu as mesmas pessoas, desta feita com as caras destapadas. Reconheceu a sua mãe, o seu pai e os dois irmãos. Gelou de espanto, imóvel tal qual uma estátua. A carrinha desapareceu por entre as poeiras das estradas do Leste da Guiné-Bissau. Abriu de novo o jornal na página da necrologia. Já lá não estava a sua morte. Carlos Nhambréne nunca mais foi o mesmo homem. Ainda hoje, quando compra o jornal, continua a ir directo para as páginas da necrologia.

Como se à espera de encontrar algo...

––––
Notas:
*“Toca-Toca” - Carrinha de transporte colectivo de passageiros.
**Colón - Diminutivo de Colonialismo. Termo com sentido depreciativo.
*** Ponta - Propriedade rural (equivalente a Fazenda, no Brasil)
****Muru - Curandeiro (Pai de Santo)
*****Murundadi - Trabalho de curandeiro.


Fonte:
Waldir Araújo.Admirável Diamante Bruto e outros contos. Portugal: Editora Livro do Dia Editores, 2008.

Waldir Araújo (1971)

Waldir Araújo nasceu em Bissau, Guiné-Bissau, a 14 de Julho de 1971.

Estudou Direito em Lisboa, na Universidade Moderna, curso que não chega a concluir por ter trocado o estudo das Leis pelo Jornalismo.

Fez o curso de Jornalismo no Cenjor, Centro Protocolar para Formação de Jornalistas.

Iniciou a carreira jornalística na Revista VALOR, EM 1996.

Colabora em publicações como Diário Económico, África Lusófona, Africanidades, entre outros.

Presentemente é jornalista quadro da RDP-África, uma importante emissora portuguesa que emite para toda a África lusófona.

Em 2005 recebe uma Bolsa de Criação Literária, do Centro Nacional de Cultura português para realizar uma investigação literária sobre a comunidadecabo-verdiana dos "Rabelados de Santiago".

Em Fevereiro de 2006, no importante encontro de escritores de expressão ibérica, "Correntes D'escritas", na Póvoa do Varzim, Portugal, como escritor convidado da Guiné-Bissau.

Tem vários textos (contos, prosas e poemas) publicados em várias publicações ligadas à Literatura.

Actualmente reside em Lisboa.

Fonte:
http://novacultura.de/wb/pages/literatrip/salvo-pela-morte.php

Ruth Rocha (Quem tem medo de dizer ”não”?)

A gente vive aprendendo
A ser bonzinho, legal,
A dizer que sim pra tudo,
A ser sempre cordial...
A concordar, a ceder,
A não causar confusão,
A ser vaca-de-presépio
Que não sabe dizer não!
Acontece todo dia,
Pois eu mesma não escapo.
De tanto ser boazinha,
Tô sempre engolindo sapo...
Como coisas que não gosto,
Faço coisas que não quero...
Deste jeito, minha gente,
Qualquer dia eu desespero...
Já comi pamonha e angu,
Comi até dobradinha...
Comi mingau de sagu
Na casa de uma vizinha...
Comi fígado e espinafre,
De medo de dizer não.
Qualquer dia, sem querer,
Vou ter de comer sabão!

Eu não sei me recusar,
Quando me pedem um favor.
Eu sei que não vou dar conta,
Mas dizer não é um horror!
E no fim não faço nada
E perco toda razão.
Fico mal com todo mundo,
Só consigo amolação.
Quando eu estudo a lição
E o companheiro não estuda,
Na hora da prova pede
Que eu dê a ele uma ajuda.
Embora ache desaforo,
Eu não consigo negar...
Meu Deus, como sou boazinha...
Vivo só para ajudar...
Se alguém me pede que empreste
O disco do meu agrado,
Sabendo que não devolvem
Ou que devolvem riscado...
Sou incapaz de negar,
Mas fico muito infeliz...
Qualquer um, se tiver jeito,
Me leva pelo nariz...

Depois que eu estou na fila
Pra pagar o supermercado,
Já estou lá há muito tempo...
Aparece um engraçado...
Seja jovem, seja velho,
Se mete na minha frente,
Mas eu nunca digo nada...
Embora eu fique doente!
A gente sempre demora
A entender esta questão.
Às vezes custa um bocado
Dizer simplesmente não!
Mas depois que você disse
Você fica aliviada
E o outro que lhe pediu
É que fica atrapalhado...
Mas não vamos esquecer
Que existe o "por outro lado"...
Tudo tem direito e avesso,
Que é meio desencontrado...
Quero saber dizer NÃO.
Acho que é bom para mim.
Mas não quero ser do contra...
Também quero dizer SIM!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 14. Lenço Perdido

Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manhã, ouvi atrás de mim um pchiu!, voltei-me, e um passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meio da rua, me apresentou um lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não me faltava lenço nenhum. Tive pena de que o objeto não me pertencesse, porque pareceu-me que sem isso o meu agradecimento não encaixaria perfeitamente com a amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceu o austero dever, tirei o chapéu, agradeci, e fui-me. O homem ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.

Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão -que ainda há muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade do ato, valha a verdade, não era grande. Os objetos transviados são quase sempre restituídos, quando de pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, é uma obrigação. Tem um princípiopassivo. É uma astúcia do egoísmo socializado, que evolveu para virtude, como o réptil se fez pato. Mas a galantaria é soberana: impulso livre, ação de luxo e primor, dom incompulsório, fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vontade senhora de si mesma. - O excesso da medida justa vale a medida inteira.

Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, num passo vagaroso de quem vê que carrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar num café, dei com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se e, inclinando a cabeça para um lado:

-"Seu doutor, não tem aí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?"

Dei-lhe os nicolaus.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) II - O Satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia - uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada - sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

- Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

- Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
--------------
continua

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 3)


Fernando Pessoa (Caravela da Poesia X)

O QUE ME DÓI NÃO É

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

POBRE VELHA MÚSICA!
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

PÕE-ME AS MÃOS NOS OMBROS...

Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.

Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.

SONHO. NÃO SEI QUEM SOU.
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

TENHO TANTO SENTIMENTO

Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

TEUS OLHOS ENTRISTECEM.
Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO BOMBARDEAMENTO

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?

VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA

Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

Vicência Jaguaribe (A Asa Branca e o Nordestino)

 Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor

          Finalmente, chove no Ceará. Embora com um certo atraso, Deus agora se alembrou / De mandar chuva / Pr’esse sertão sofredor. Se alembrou de fazer chover na capital e no interior do estado. A asa branca pode ir preparando a viagem de volta. Os agricultores já devem estar espalhando as sementes nas covas, abertas com antecedência, pois a esperança, que para muitos é a última que morre, para eles não morre nunca. Entra em estado de catalepsia, mas morrer mesmo, não. É. Aqui no Ceará, é assim.

          A ansiedade daqueles que trabalham com a terra e com o gado é grande. E têm um bom motivo. As secas periódicas, que desde sempre marcaram a história do Ceará, levam pequenos fazendeiros à ruína e expulsam os pequenos agricultores de suas terras. Daí nascerem as histórias mais ou menos folclóricas de que se encontra um cearense em qualquer quadrante do mundo que se visitar.

          Mas, talvez, haja muito de verdadeiro nessas histórias. O cearense pobre do sertão, quando vê a última rês despencar de fome e sede, o mandacaru entristecer, o leito dos últimos fios d’água crestar, os filhos lhe perguntarem com o olhar o que vão comer naquele dia, despede-se de sua terra e de sua gente e embarca. Deixa sua terra juntamente com a asa branca, que também resiste até o fim e só vai embora no último pau de arara. Vai na tentativa de trabalhar e mandar alguma dinheiro para que a mulher e os filhos possam sobreviver. Isso quando não pega a estrada com toda a família, o papagaio e o cachorro. Mas vai, pensando em regressar com as primeiras notícias do retorno da chuva.

          Nos tempos passados, o destino eram as terras lá de cima, as terras do norte. Muitos foram e não voltaram, possuídos pelos gênios da floresta, deixando a família à espera por anos, inutilmente. É, porque as florestas têm entidades que assediam, encantam, conquistam, dominam e matam.

          Hoje, o roteiro é o sul, o sul maravilha, como muitos chamam. Mas não propriamente os estados realmente do sul, mas os do centro-oeste, principalmente Rio e São Paulo. São Paulo está cheio de cearenses e de nordestinos em geral. São eles, os nordestinos, são eles, os cearenses, que hoje erguem São Paulo. Enfrentam a má vontade e o preconceito explícito das gentes do sul e, às vezes, até mandam buscar a família.

          O cearense, porém, tem muito da asa branca. Às primeiras notícias da chuva, aos primeiros prenúncios do inverno — da quadra chuvosa que aqui chamamos de inverno e que os estados que se situam mais para o sul chamam de verão —, põe em um saco os poucos pertences, dá um nó como cadeado e volta para sua terra, com a esperança de arrancar dela o milho, o feijão, a mandioca e a batata doce, que alimentarão a família e que, se vierem com fartura, serão vendidos na feira. Assim é a asa branca: ao primeiro sinal de inverno, ela volta. Aí, então, o nordestino tem a certeza de que o inverno vai pegar.

          Foi assim desde sempre. Promessas para a transposição de rios, para a irrigação, para a construção de açudes e de cisternas suficientemente grandes para acumular água potável nos anos de inverno bom sempre foram feitas e não cumpridas, ou cumpridas pela metade. Todos os governantes do Brasil, incluindo D. Pedro II — que, na grande seca de 1880, com a duração de três anos, fez a célebre promessa, cujas palavras foram levadas pelo vento: Venderei a última joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome. —, têm feito, para solucionar o problema da seca no Nordeste, promessas e até efetivado projetos importantes, como o da perenização do rio Jaguaribe e o da polêmica transposição das águas do rio São Francisco, que, aliás, já devia estar concluída. Mas parece que falta uma atitude séria e consequente de quem traça esses projetos. D. Pedro II, pelo menos, embora não tenha vendido nenhuma joia da coroa, decretou, em 1880, a construção do açude do Cedro.

          A chuva, pois, chegou ontem, 15 de fevereiro, em uma pancada forte e mais ou menos demorada, que alagou ruas e avenidas, mas que fez o cearense abrir um sorriso de alívio. Ela chegou por volta das 10 h da manhã e ficou até mais ou menos 1 h. Avisara, no dia anterior, que viria: o dia 14 foi um dos mais quentes do ano que mal se inicia. Não sabemos se ela foi só um ensaio ou se a peça vai entrar mesmo em cartaz. Nestes tempos em que tudo está mudado, inclusive os sinais da natureza, nunca se sabe. Até os profetas do sertão encontram-se acuados e mais ou menos desmoralizados. Os indícios naturais, antes infalíveis, já não mais se confirmam. Assim, por garantia, é melhor esperar pelo 19 de março, para ver o que diz São José.

          Torçamos para que o nosso agricultor, este ano, não tenha que acompanhar o voo da asa branca.
        
Fonte:
A Autora

Manuel Bandeira (Tragédia Brasileira)

Manuel Bandeira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

Carlos Machado (Caldeirão Poético da Bahia)

Formatação por J. Feldman com imagens obtidas na internet

COMÉRCIO

comprar tempo
em barras
– como ouro
ou sabão –
e estocá-lo
nos armazéns
da cobiça

instituir
o próspero
comércio
da eternidade

e abrir as
portas
para nova
e concorrida
profissão:
ladrão
de tempo

PUNHOS

o tempo tem punhos
de renda

e toda a cerimônia dos
carrascos

na mão direita três
punhais:

ponteiros de metal
cravados

na pele fria de cada
hora que vai

PÊNDULO
o braço do pêndulo
nunca se agita

apenas acena sem
ênfase

em compasso de
despedida

MARGARIDA

na margarida
do relógio

desfolho
uma a uma
as pétalas do dia

nesse jogo
de sal e saibro
toda pétala
a mais é
vida a menos

e toda flor
malmequer

FIDELIDADE

só a pedra é fiel
a sim mesma:

a lesma {e seus
coleios}

a lesma {e sua
gosma}

de molusco} é
sempre

o avesso do que
se supõe

mas a pedra ¿não
será ela

mesma uma forma
dura de lesma?

ANATOMIAS

anatomia de coisas

desnudar
o pássaro de vidro
e ver em seu lado
oculto
o outro lado
de seu vulto

dissecar
vozes
sombras descalças
e perquirir
a substância
escassa que principia
na polpa
branca do dia

flagrar a ânsia
do relógio
e a cadência
dessa máquina
humana

fotografar
a permanência
da chama

anatomia do gesto

dobrar a esquina
de mim mesmo
olhar pra trás
e ainda
enxergar
o resto de
meu gesto
tonto

PÁSSARO DE VIDRO (2)
quanto mais escancaras
teu íntimo de vidro

quanto mais descortinas
o avesso dos sentidos

mais o que revelas
deixas escondido

PÁSSARO DE VIDRO (3)
o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo

esse espaço
de incessante
tarde nua

onde o vôo
risca um traço
branco
de vidro no vidro

ANJO MURITIBANO
sim, uma vez
vi um anjo

nada dos anjos
católicos
gabriéis
armados e vingativos

nada dos anjos
de Rilke
alemães terríveis

meu anjo
sem asa
e sem palavra
não foi visto num castelo
em Duíno
mas numa casa
chã e rasa

em Muritiba

era um anjo
pequenino
morto morto
placidamente morto

estava numa
caixa de sapatos

SÁBADO

cavalos burros
jumentos
na rua:
é dia de feira

no paralelepípedo
a pata do quadrúpede
acende uma centelha

CANÇÃO DE MÁRIO E FERNANDO 

estética e angústia
traços-de-união
entre dois orpheus
desencontrados

um sem biografia
o outro sem história
arte longa curta vida

— e ambos viraram
sílabas

sombras fugidias
sobre as águas
do Tejo ou do Sena:

a vida escrevivida
         vale a pena?

orpheus na sala
de espelhos
divididos
multiplicados

ai tortuosa
aritmética da alma

1 é número múltiplo

CÃMERA

How you die is the most
important thing you ever do.
                    Thimoty Leary


uns preferem
a morte discreta
asséptica
sem vexame

outros apostam
no alvoroço:
enxame
de câmeras até
o osso do nada

thimothy leary
guru
lisérgico não quis
o analgésico
do silêncio

 morreu em show
cibernético
câmera aberta
para o olho
              poente

 ESFINGES

 Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
Para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
Oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_machado.html

Carlos Machado (1951)

Nascido baiano de Muritiba, em 1951, é jornalista especializado em informática e vive em São Paulo desde 1980. Autor de livros técnicos publicados pela Editora Campos (RJ), emprega seu talento e competência em prol também da literatura, e de forma generosa. É o criador e editor do boletim semanal poesia.net, em que dedica com esmero páginas à divulgação de poetas, principalmente contemporâneos e em sua maioria, brasileiros. Publicou de sua própria lavra o livro Pássaro de Vidro (poesias, Editora Hedra, SP, 2006), a respeito do qual escreveu Donizete Galvão:

“Todos que conheciam o olhar atento, a observação acurada e a sintaxe elegante dos comentários de Machado que acompanham os poemas de poesia.net, podem ver essas mesmas qualidades condensadas em sua poesia. Pássaro de Vidro nos apresenta um poeta em plena sua maturidade, rigoroso na sua concisão substantiva, em que a clareza e a leveza estão a serviço de uma poesia reflexiva e consistente. Vale ressaltar o acabamento impecável dos poemas que resultam em artefatos límpidos, sem rasura. Seguindo a máxima de Aníbal Machado, o autor retira dos poemas toda estridência para que ganhem mais alcance e ressonância”.

Sobre o trabalho do poeta diz também Luiz Alberto Machado em seu blog: “Carlos Machado já é digno de meus aplausos acalorados pela iniciativa de criar o Ave, Palavra, onde divulga semanalmente um boletim denominado de poesia.net, abrigando, revelando, resgatando, revalorizando e reproduzindo poemas de toda sorte de poeta, desde os clássicos até os novos e novíssimos.(...) Isso prova o quanto de aplauso efusivo o seu trabalho merece. Este poeta dos bons tem poemas publicados em revistas literárias, como Cacto e Jandira, além de jornais, como O Escritor, da União Brasileira de Escritores. Na rede, tem uma seleção de poemas reunidos no legendário Jornal de Poesia. Agora ele chega com O pássaro de vidro, dividido nas sessões “Horológio”, “Pássaro de vidro” e “Garrafa de Náufrago”.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_machado.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 13. Um Romance

Entre os passageiros com os quais frequentemente me encontro, pela manhã, há uma bonita mulata, não de olhar azougado, mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam notícias de família. Veste-se com decência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe. Tem as mãos lisas e mórbidas, os dedos compridos e afusados; as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de couro, sob a massa movediça das saias, têm uma graça hesitante de pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?

Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, a constância dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntário de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade familiar com o condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres brancas e chiques de braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive umas informações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático de farmácia, o homem do Infinito, ouvi dele a informação cabal.

"Pois não a conhece? Não conhece, deveras, a Florinda?" -Contou-me toda a história de Florinda, a mesma história de tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: "Hoje, uma senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora de casa. É companheira de um empregado aposentado dos correios, um casca, velho, reumático, bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irmã de caridade, de cozinheira, de mãe e de filha. E até de armazém de pancadas."

É aquilo de Amiel: Pas um brin d'herbe qui n'ait une histoire à raconter, pas un coeur qui n'ait son roman..., que é aquilo mesmo de Emerson: "Todo indivíduo tem uma história que valeria a pena conhecer, se ele pudesse contá-la, ou se nós lha pudéssemos arrancar". -Cada um carrega em si um epítome do drama humanal, tecido de trevas e de lumes. E cada um nos dá uma sensação de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo.

Fonte:
Domínio Público

Simone Pedersen (Balões Coloridos)

Um jovem casal teve seu primeiro filho, muito doente, com reduzidas chances de sobreviver. Sabendo de seus dias contados, os dois, de licença do trabalho, dividiram as vinte e quatro horas do dia de forma que ambos ficassem com o bebê e eles - apenas eles -, cuidassem do frágil recém-nascido. Com muita dificuldade para mamar, o anjinho precisava ser alimentado a cada hora do dia e da noite, com apenas alguns poucos mililitros do leite materno que a mãe produzia e cuidadosamente retirava e armazenava, num processo doloroso e demorado, pois o pequenino não tinha forças nem para mamar suas gotas de amor...

Em nenhum momento os pais reclamaram de cansaço. Em nenhum momento brigaram sobre quem teria que trocar a próxima fralda ou dar a próxima mamadeira. Nem discutiram quem se levantaria no meio da noite. Fez-me sentir uma péssima mãe... Fez-me lembrar de todos os momentos em que me sinto irritada com os tantos afazeres que a maternidade nos transfere, os familiares exigem e os amigos esperam.

A história do jovem casal mostrou-me que tudo na vida é passageiro e rapidamente desaparece, em largos passos, se nós não atentarmos a cada segundo e vivê-los intensamente. E que, no final da vida, não adiantará mais ter aprendido essa importante lição, pois o tempo passado é tempo vivido, ou tempo perdido. Não existe meio-termo. Não se vive mais ou menos. Não se arrepende mais ou menos. Ou estamos presentes, inteiros, naquele momento, ou nunca mais poderemos alcançá-lo. E as mães sabem disso melhor que ninguém. Acompanham cada minuto da vida de seus rebentos, choram com eles suas dores, riem com eles suas traquinagens. E cuidam, com todo amor e carinho, nos momentos de doença.

No dia do velório do pequenino menino, os pais não estavam desolados. Estavam tristes, mas tranquilos. Estavam conscientes de que haviam feito o melhor que lhes era possível. Haviam amado cada segundo, cada suspiro, cada lágrima e cada sorriso daquele frágil ser. E soltaram 99 balões coloridos, um para cada dia de vida do pequeno anjo, com quem tiveram o privilégio de conviver naqueles meses. Todos os presentes olharam para o céu, refletindo quanto um momento singelo pode representar se nós o agarrarmos com unhas e dentes.

E - como o passado -, os balões ficaram inacessíveis, desaparecendo no céu azul, num piscar de olhos. Lindos, se foram. E nunca mais foram vistos, restando apenas a imagem de um inigualável entardecer, colorido como só a vida pode ser por balões que representavam cada dia vivido no amor.

Fonte:
http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/2010/06/simone-pedersen-escritora-e-poeta.html

João Batista Xavier Oliveira (Poesias Escolhidas)

João Batista Xavier Oliveira nasceu em Presidente Alves/SP, em 16 de junho de 1947. Reside em Bauru/SP, desde 1975.
Blog http://jobaxaol.blogspot.com
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ISOLADO ENCANTO

Salão repleto, nobre de artes belas,
murmúrios, gestos, ares estilistas.
O afago forte nos pincéis de artistas
moldura abraços, traços, luz nas telas.

A flor disposta à porta em todas vistas
exala as auras plácidas, singelas.
Porém as vistas todas são aquelas
voltadas às paredes tão benquistas.

Se os quadros levam ao encantamento
no brilho mais audaz de um só momento...
o vaso à entrada ampara, preterida,

a forma que transforma a transparência:
- a tela estampa a vida, é conseqüência;
a flor no entanto é causa, pois tem vida!

JOIO

Por que nós complicamos singelezas
pelo simples sabor de afirmação;
por que não escutar o coração
que pulsa as vibrações das incertezas...

se temos ao alcance o corrimão;
degraus que facilitam mãos coesas;
o dom de emocionarmos às belezas...
Por que só ver a luz na escuridão?

Estamos de passagem simplesmente.
Abrindo com desvelo nossa mente
o mundo é bem maior em nosso espaço.

Por que nós complicamos as passagens
seguindo a realidade das miragens?
A vida é bela e o tempo é bem escasso!

L I B E R D A D E

À pequenina flor pedem passagem
as liras das libertas redondilhas
que fazem amplidões das suas ilhas
e os versos se esvoaçam na miragem.

E quantos que desejam maravilhas
largando as mãos que prendem a coragem
nas ilusões que agitam mas não agem,
levando os sonhos às tribos das trilhas...

Desejam ares nos mares sem costas,
os abandonos das peias supostas,
para os grilhões dos fugazes delírios.

Neste meu mundo deveras pequeno
ao horizonte dos olhos aceno
vôo nas asas das vestes dos lírios!

HARMONIA DO OLHAR

Um mavioso som esparziu-me à mente
de repente, alucinadamente,
ao deparar-me no alarme do olhar
do teu mundo de olhar.

No ínfimo espaço do nosso íntimo
apenas o som das veias
que incendeias nas entranhas.
Uma canção acaricia
Os nossos tatos dos olhos.

Latente harmonia
explode em êxtases...
E deparamo-nos no santuário
onde a pauta é infinita.

É o coral do suprassumo!
Ali mesmo se chega às estrelas!
Nossos corpos são nossos olhos!
Adentramos nas almas
e purificamos a eternidade!!

M A L G R A D O

O tempo está perdendo consistência;
pessoas mal conseguem meditar;
o frenesi, filhote da ciência,
lugar-comum, qualquer seja o lugar.

É a nova era, a febre da existência,
vendendo tudo, até a luz do luar!
E mais distante a luz da Providência
ao livre-arbítrio brilha sem parar.

Como é pequena a vida que se encerra
na plenitude fria da alquimia;
na inexorável sina de uma guerra...

E mesmo assim, malgrado a algaravia,
os nortes fazem parte desta terra;
auroras prenunciam outro dia...!

INSPIRAÇÃO

Ao longe o casarão adormecido,
 refúgio de sonoras nostalgias,
 ecoa, num lampejo, melodias
 que pairam, esparzidas, sem sentido.

 O som das uniões de algaravias,
 buscando modelar no meu ouvido,
 parece desenhar quadro esquecido
 nas pautas de diletas sinfonias.

 Na sintonia fina então repouso
 e o pranto sincopado é o refrigério.
 O enlevo de voar se faz presente.

 Cantar a realidade jamais ouso.
 Ao longe o casarão é meu mistério;
 é a inspiração que pulsa tão fremente!

V I A G E M

 Ganho momentos da vida
 para recordar momentos
 que minha infância querida
 legou aos meus pensamentos.

 Infância da ingenuidade,
 dos planos mirabolantes
 de conquistar a cidade
 e mudar o que era antes.

 Infância bola-de-gude
 entre os dedos tão certeiros;
 o êxtase da virtude
 atravessando os bueiros.

 O taco no pega-pega,
 balança-caixão e pique,
 passa-anel e cabra-cega,
 estilingue e piquenique.

 Matinê e amarelinha,
 lobisomem e sacis,
 roubar manga da vizinha,
 sempre escapar por um triz.

 Mocinho e vilão, ciranda,
 jogar pedras no telhado,
 caminhar atrás da banda,
 fincar os pés no molhado.

 Esconder a nota baixa,
 brigar por qualquer motivo,
 fazer brinquedo de caixa,
 se esbaldar no morto-vivo.

Sujar a roupa sem dó,
 escalar o jatobá,
 encher a casa de pó,
 confessar o que não há.

 No carnaval bater lata,
 soltar pipa no campinho.
 O resmungão que maltrata;
 carrapicho, prego e espinho.

 Perna-de-pau no palhaço
 anunciando na rua...
 quem tiver nervos de aço
 vai ver homem que flutua.

 Nas férias, o carrossel,
 e as arapucas no mato.
 No natal, papai-noel;
 o presente no sapato.

As trancinhas da menina,
 calças curtas do menino,
 olhares soltos na esquina,
 o sorriso pequenino.

 Ser craque de futebol,
 vingar-se do grandalhão:
 __conquistar lugar ao sol
 e a força do medalhão.

 Aquele dente-de-leite
 a chuva tirou do teto,
 boneca virou enfeite,
 espinha no rosto é afeto.

 O pensamento maduro
 põe os pés no chão agora;
 pela porta do futuro
 linda infância foi embora.

 Oh! infância viajante
 onde o céu era o limite,
 hoje é um mundo tão distante...
 não há fase que a imite.

 Oh! infância da pureza
 angelical, saudosista
 de sonhar sua beleza
 que minha alma não desista!

 Quem viveu a plena infância
 sabe do que estou falando.
 Lembrá-la encurta a distância
 e esquece o mundo nefando!!
(Da antologia "Quando vierem as rosas" 2009 UBT Seção de Bauru.)

Fonte:
Facebook do autor

Salgado Maranhão (Sol Sanguíneo)

Salgado Maranhão destaca-se pelo trato apurado da linguagem e pelo domínio da mesma. Sua relação de intimidade com a palavra escrita denota uma postura centrada diante do fazer poético e da vida. Influenciado pela filosofia oriental, o poeta traz para seus versos o estado de equilíbrio empenhado na relativização dos valores instituídos. O ser humano mostra-se cada vez mais limitado e distanciado da realidade em que vive e torna-se necessário soltar as amarras do convencionado e experimentar o desconhecido. É isso que o autor faz com sua poesia: toma a palavra e desnudando-a de seus significados usuais, explora sua condição polissêmica apontando para o caráter simples e transitório das coisas.

Numa dicção arraigadamente pessoal, Salgado Maranhão, em Sol Sanguíneo, atinge o (até agora) ponto máximo de sua obra, num conjunto coeso de poemas, em que a inteligência especulativa e a celebração da corporalidade do mundo se expressam com grande rigor metafórico. Nesta obra são preservadas todas essas características e percebe-se ainda um aperfeiçoamento da técnica escrita.

A poesia de Salgado Maranhão procura libertar a palavra de seu caráter usual (com a qual nos deparamos diária e cotidianamente), desvinculando-a das amarras do convencionalismo, e, através de um sofisticado trabalho poético experimentar a polissemia da palavra, expandindo indefinidamente as suas significações. Nesse sentido, as palavras se desdobram em suas múltiplas e possíveis interpretações, ao mesmo tempo em que interagem entre si, a fim de formar o corpo coeso do poema. É por essa razão que nos poemas de Salgado se encontra presente uma “escrita ascética (quase sem palavras)” visando a “sinergia do signo”. Ao distender ludicamente a palavra e ao expandir a sua significação imediata, o poeta impede que esta se esgote.

A ressignificação assumida pela palavra, produzida de forma proposital pelo poeta, causa no leitor certo estranhamento que altera o curso normal de suas
interpretações e certezas, levando-o a novas percepções e experiências. Como o próprio Salgado afirma em uma entrevista: “(...) cada rasgo de autêntica poesia nos ensina a desconfiar das certezas. Nos revela, através da linguagem, a força sutil que dá vertigem ao esqueleto das palavras” (SOUZA, revista Agulha online, 2003). Através de suas observações, o poeta nos leva a crer que a fragilidade e a efemeridade da existência humana podem ser compensadas através da perenidade e imanência da palavra poética. Segundo essa perspectiva, o poema possui o poder de fixar as experiências e percepções da existência caracterizada pela transitoriedade. Tal é o desejo do poeta descrito no poema “Sol Sanguíneo” que abre o livro:

Voltar ao desolado abrigo
da terra
chã.
Voltar aos limítrofes
da palavra (larva fulminante
e alarde) que assiste
da despensa
ao rapto da existência.
Voltar ao solo atávico
onde os loucos
riem-se
à sombra da neblina.

Percebe-se pela leitura do poema, que a “terra chã” é uma metáfora da palavra poética, terreno que deve ser conquistado pelo poeta, mas que se apresenta simultaneamente como abrigo e desolação. Como os versos sugerem, a palavra “assiste da despensa” – uma vez que ela se encontra à espera para ser transformada em poesia – “ao rapto da existência”, pois a vida humana nada mais é do que um “sopro itinerante”, fugaz e passageiro. A palavra atemporal assiste à inexorável temporalidade da existência humana.

Este poema remete ao tempo da posse de terras. Tudo que nela existia também foi violado e tratado como bens comerciais. “Sol sanguíneo: terra chã” faz esse movimento de volta às origens de seu povo quando o eu lírico narra a chegada do navio negreiro no cais. Enquanto isso as noites, “a terçar atabaques”, esperavam os cativos que estavam a chegar, evidenciando o sincretismo de elementos da cultura européia e africana.

Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.

Minha terra é minha pele.

vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.

Nesse trecho do poema, o eu enunciador assume sua especificidade étnica e cultural encarando a terra como segmento de sua pele. Nota-se um cuidado na opção pelo vocábulo que irá representar a sua cor: o azeviche, tipo de carvão fóssil utilizado em joalheria. O efeito seria outro se em seu lugar estivesse simplesmente “carvão”. Além disso, destaca que junto com os escravos vieram as “moendas de açúcar”, que representa uma das contribuições dos negros à economia brasileira, e as súplicas dos cativos tratados como mercadoria. Desse regime vieram os açoites que duraram séculos e a imposição cultural dos brancos
sobre os negros.

Tratados apenas como corpo vazio de cultura e espírito, esses homens foram entregues ao cativeiro devido à ganância do branco que se julgava superior. Além de terem sido separados do seu povo, viram-se obrigados a receber os valores dos senhores, que lhes eram impostos, em geral, de maneira violenta.

Já em “Mater”, o eu lírico faz uma homenagem à mãe África e chama a atenção para o descaso da história em representar sua herança entre o povo brasileiro. Seus descendentes em nosso país foram obrigados a se curvarem diante do branco. Porém o fio de sua memória ancestral, como “impressões digitais num rio”, mantém ligados seus filhos ao longo dos tempos:

I
De ti não há sequer
um álbum de família:

retratos da infância
nos campos de arroz e gergelim.

Talvez reste em pensamento
pedaços de tua voz

no vento
como impressões digitais
num rio.

II
No dia em que o azul
roubou teus olhos
e o silencio rival rasgou
teu nome,
cotovias cantaram no teu rastro.
No dia em que a manhã
cerrou teus olhos.

No poema, o azul aparece como metonímia para o mar e metáfora para o traficante que levara os filhos da mater africana. Silenciosa foi como se deu a captura e dura foi a partida. Porém quando não havia mais corpo, foi ao som das cotovias, aves que voam para a África no inverno, que o espírito retornou a terra mãe.

Noutra linha, totalmente metapoética, ”Fero” descreve a inquietação que a escrita causa ao poeta e este, que tenta representar o mais inimaginável como a oração dos pássaros, vê-se numa luta constante com a palavra quando esta parece se fechar às possibilidades de figuração:

Tento esculpir a Litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.

insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.

O processo de escrita configura-se conflituoso; o poeta é tomado por uma onda de embriagante loucura e perseguição. Seu maior inimigo então se vislumbra na “página em branco” a exibir o não-resultado de trabalho. É este, portanto um forte veio da poesia de Salgado Maranhão, escritor comprometido com a reflexão da linguagem, empenhado em recriá-la, explorá-la ao máximo e encontrar, nas bordas da palavra, o sentido buscado. Foi possível perceber também o envolvimento com situações íntimas de um sujeito que, assumindo-se como negro filho de África, deixa vozes de tempos remotos falarem em seus poemas, aludindo às atrocidades do passado escravo e rebelando-se contra as do presente.

Fonte:
Eduarda Rodrigues Costa (Graduada em Letras pela UFMG), Edimilson de Almeida Pereira(Ph. D. em Literatura Comparada – Universidade de Zurique, Professor Titular da Faculdade de Letras - UFJF), Fabrício Tavares de Moraes (Graduando em Letras - UFJF). Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sol_sanguineo

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Sapo)

O coelho e o sapo eram amigos.

Um dia resolveram os dois ir roubar marfim à Administração.

Depois do roubo, resolveram passar pela povoação do régulo para comemorar o feito e começaram a beber até não poderem mais.

Como toda a gente sabe, o sapo está sempre de boca aberta e a garganta a abanar. Quando o coelho viu aquilo, pensou logo numa forma de se livrar dele e ficar com o produto do roubo e começou a dizer em voz alta:

– "Então sapo, decides-te ou não a contar o que te sufoca a garganta?"

O régulo e os seus conselheiros disseram entre eles: "Nós sabemos que desapareceu o marfim da Administração. Vamos ficar atentos, o ladrão pode estar perto".

O coelho continuava:

– "Anda sapo, tens vergonha ou medo? Não disseste que não aguentavas mais? Não disseste que te bastava beber dois copos para te decidires? Então, sapo?"

O sapo estava atordoado, não sabia onde é que o coelho queria chegar.

O régulo mandou um auxiliar para perguntar:

– "Ei vocês, o que é que o sapo tem para contar?"

– "Nada, nada, senhor chefe", apressou-se a responder o sapo. Mas estava atrapalhado porque tinha bebido demais e trocava as palavras. Além disso, a presença do auxiliar do régulo metia-lhe medo por causa do roubo do marfim. O sapo olhou para o coelho como a pedir para ser ele a explicar o que se passava:
– "Anda coelho, tu és esperto, responde aqui ao senhor chefe".

O coelho disse:

– "Eu não posso dizer, o meu amigo pediu segredo... é melhor perguntar a ele próprio". E virando-se para o sapo:

– "Então, sapo, vais continuar com o problema entalado na garganta? Resolves ou não falar no roubo...".

O régulo, que já estava à espera disso, disse:

– "Eu já sabia que era o sapo quem tinha roubado o marfim do senhor Administrador. Vamos prendê-lo e levá-lo ao rei para ser julgado".

Só então é que o sapo percebeu que o coelho fizera tudo aquilo para se livrar dele e ficar com o marfim só para si.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

Soares de Passos (O Firmamento)

Ao meu amigo J. S. da Silva Ferraz

Glória a Deus! eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do teu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas retomando a vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são os vossos destinos!
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do seio omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
Ao rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,
Um sol que apenas vejo,
Monarca doutros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas
Do trono soberano:
Quem vos há-de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há-de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jazia
Nos véus do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras num momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto firmamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!

E tudo despertou, e tudo gira
Imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele
Que vos sustenta, e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos
Em volta do seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,
Que soberbo te elevas.
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas!
Que és tu com teus impérios e colossos?
Um átomo subtil, um frouxo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das ideias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas dum jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre,
Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d'amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d'esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,
Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto sol que te circunda
Teu sol inda é fulgente.
Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes dum mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintila
Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante:
Que foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia, ao peso
Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama.

Então, ó sol, então nesse áureo trono
Que farás tu ainda
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetisa a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos frios
Dalgum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolto pouco a pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.

E as sombras pousarão no vasto império
Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descantar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
Do sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! um dia meditando
Outro céu mais perfeito,
O céu d'agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então, mundo, estrelas, sóis brilhantes,
Qual bando d'águas na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no caos do universo.

Então a vida, refluindo ao seio
Do foco soberano,
Parará, concentrando-se no meio
Desse infinito oceano;
E, acabando por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade –
O silêncio aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Pedro Bandeira (Lado a Lado, Bem Bolado)

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguidas, ele perderia todas elas.

O caso é que ele tinha aprendido que “em cima” se escreve separado e “embaixo” se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.

Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.

– É fácil, Ricardinho – ensinou a Vovó. – Levante a mão esquerda, bem aberta.

– Assim?

– Não. Essa é a direita.

– Então é essa?

– É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.

– E de que lado fica o coração?

– Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.

– Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com “em cima” e “embaixo”?

– Veja, querido: seus dedos, “em cima”, estão separados e, “embaixo”, eles estão juntos, grudados na palma, não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! “Em cima” é sempre separado e “embaixo” é sempre junto!

Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na primeira série.

– Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...

– Não vai dar certo – respondeu o amigo.

– Por que não?

– Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!

– Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.

– E como é que eu sei qual é a direita?

– É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara.

– Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara – discordou o Adriano.

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a sua mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... bom, era a outra!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte I

I
Mistério da Casa de Bragança

A NOITE NA TAVERNA


Era por uma triste noite chuvosa, dessas que faz bem gozar quando a gente esta em casa. Lá fora, na rua do Piolho, a chuva argamassava a lama ao ritmo plangente de uma melopéia de cativo. E o vento vinha por ela assoviando, como por um funil, para desembocar imprecativamente no campo da Alampadosa. Dentro, na célebre tasca do Trancoso, a luz tremia vagarosamente nos grandes candieiros de azeite de peixe. Dava um lúgubre aspecto aquele antro de terra batida para chão, e de paredes escalavradas onde a gaiatice dos fregueses gostava de pintar obscenidades e onde se fazia a carvão a conta complicada dos pichéis.

Fantástico, por detrás do balcão envernizado como um cabo de enxada, o Trancoso erguia o busto na plenitude atlética de seu tórax. Era a grande cabeça barbuda e gadanhenta e, por debaixo da blusa felpuda de vasconço, o peito largo e forte a oscilar numa tempestade de respirações troando muitas vezes o grito estentórico dos apelativos brutais. E, para além na vastidão escura do aposento, por meio dos altos e bojudos tonéis cheios de cartaxo e de aguardente de cana, estavam as pequenas mesas de pau carunchoso, rodeadas de mochos baixos em rodelas de madeira sobre três espeques.

Naquela hora treda da noite, retardavam-se entretanto os fregueses a pretexto de que vinham cansados da procissão ao outeiro da Glória, e de que a chuva vergastava lá fora a quem tinha a audácia de sair. O Trancoso amuava-se, posto que lhe fossem emborcando as bebidas e o cobre lhe caísse pela gaveta adentro com um grande retinir metálico de chocalhar de guizos.

Já fora para ele o tempo dos primeiros açodamentos em juntar os patacões. As moedas de ouro contavam-se aos centos na velha arca escondida debaixo do nauseabundo catre onde dormia. Muito criança ainda, viera de além-mares para essas terras do Brasil, onde o ouro boiava à tona das enxurradas. E, em vez das longas empresas viajantes pelo sertão adentro, preferira o sossego das bodegas onde o dinheiro vinha ter pela lógica fatal das bebedeiras. Agora, diziam-no rico, senhor de bastantes haveres e traficante até das galeras que iam buscar o negro ao vasto deserto branco das plagas africanas.

Enriquecera principalmente depois da chegada de d. João VI, quando a real comitiva de fidalgos se derramara pela velha cidade de Mem de Sá, com uma enorme praga de orgias e depredações. Fazia-se modesto, rindo com bom sorriso galhofeiro, quando alguém alevantava o valor de suas fazendas. Dizia que não! que mais luzia do que havia!

Mas não andava disposto para as longas vigílias da taverna no serviço de borrachos retardados. E, naquela noite, já por três vezes tentara despedir a freguesia. Os fregueses bebiam, monossílabos raros e sonolentos ouviam-se apenas de espaço a espaço. E o barulho contínuo da água, regular e metódico na tristeza da noite.

O Trancoso principiava a cochilar, quando a porta se abriu de repente: uma lufada sacudiu violentamente os velhos candieiros, que rangeram nas correntes de ferro. E leve, rápido como o vento que o trouxera, d. Álvaro Bias saltou no meio da sala, gotejante como uma biqueira de telhado.

Saltou, parou, e mirou-se. No chão, em roda dos sapatos puídos de d. Bias, formou-se logo uma poça d'água. D. Bias, magro e esgalgado, no velho gibão de veludo sem pêlo, parecia um guarda-chuva fechado, depois de um aguaceiro formidável.

D. Bias, fidalgo espanhol da mais pura linhagem, perseguido pelos credores e pelos alguazis em todas as bodegas das margens dos Mansanares, pulou um dia a fronteira e foi tentar a vida em Portugal. Não houve serão de convento que não procurasse - em vão! - saciar-lhe a fome secular: o primeiro avô conhecido de d. Bias era tenente de Cid Campeador, e entrava em combate com um alforje às costas, carregado de olla podrida. A família de d. Bias não era uma família: era a arvore genealógica da fome.

Em Portugal, d. Bias comeu, d. Bias bebeu. Com esses predicados, ganhou as boas graças de d. João VI, que em 1808 o trouxe com sua corte para o Brasil.

Este D. Bias, segundo reza a crônica, logo que chegou de Lisboa, foi morar na rua do Lavradio, na casa hoje no 40, pertencente a Antônio José Viana, à razão de 8$ por mês, cujo aluguel nunca pagou. E tais tratantices fez, combinado com o desembargador - ouvidor Francisco Alves de Andrade, que se ficou com o prédio e terrenos.

O mesmo praticou com o carpinteiro Custódio Pinto de Oliveira, que lhe não querendo vender dous lotes de terrenos contíguos e que fazem face com a rua, de acordo com a mulher deste Custódio, formou-lhe culpa de mancebia e meteu-o na cadeia em princípio do ano de 1811. D. Bias se ficou com a mulher e a filha de Custódio, e na posse dos bens deste depois do desquite.

Custódio, sem sua mulher e filha, e seus bens, foi viver do jornal que lhe dava o célebre escultor Ângelo Pallingrini, por alcunha o Satanás.

O Trancoso rosnou uma praga, quando o fidalgo lhe apareceu. Mas d. Bias enganchou-se num banco. E, uma vez servido, pôs-se a beber fidalgamente a sua zurrapa, levantando os braços para não emporcalhar na mesa os seus manguitos sujos. A sala recaiu no silêncio. A água continuou a bater, os fregueses continuaram a bebei; o Trancoso continuou a cochilar, e d. Bias, esgotado o pichel, cravou dous olhos compridos e sôfregos no gordo chouriço que fulgurava no balcão.

- Traga outra medida, gritou a voz avinhada de um sujeitinho baixo e gordo, tão baixo que tinha as pernas a oscilar dependuradas do mocho, e tão gordo que parecia um tonel cuidadosamente suspenso do chão para não se estragar com a umidade.

O Trancoso remexeu os ombros num esgar sonolento de desprezo.

- Melhor fariam vocês todos em limpar-me a casa de suas borracheiras! disse. E, depois de uma pausa, acrescentou:

- Demais, por estas horas tardias da noite, eu não vendo mais fiado! Ponham dinheiro no balcão se querem a boa da pinga! Súcia de malandros que a polícia d'el-rei bem devia vir buscar para uma dormida na rua da Vala!

Um belo movimento de solidariedade fez-se então entre toda aquela gente que o Trancoso assim maltratava com o desplante dos homens fortes e enriquecidos pela canalha miúda dos pobretões de gibão esburacado.

E o Carniça - um mulato esguio e de maus bofes, que vivia de sovar os negros nas casas de família - saiu à frente das reclamações.

- Que assim não se tratava à gente séria! gritou esmurrando a mesa onde as garrafas e os copos dançaram.

- Ninguém se teme da polícia d'el-rei! fez d. Bias, fanfarrão, saltando para o meio da bodega com a mão nos copos da espada e um largo gesto arrogante.

- Qual el-rei, nem pêra el-rei! vociferou o Carniça, pondo-se também de pé, muito avinhado e bêbado. - Nós aqui já estamos fartos de aturar toda essa corja portuguesa! Eu cá não faço mistério para gritar: Viva o príncipe regente!

E gritou, com e feito, o grito revolucionário daquele tempo, num grande berreiro forte de convicção popular.

Os outros entreolharam-se, já desarmonizados em pensamento. A questão deslocara-se. Já não era a rusga de uns fregueses retardatários contra um dono de taverna que queria fechar a casa, e não fiava mais. A luz baça e fedorenta dos candieiros que rangiam nas correntes, ofegava agora o hálito quente das revoluções.

- Qual d. Pedro! Mandam as cortes. E ele há de partir para abater a cerviz de vocês outros, canalhas de brasileiros! rosnou o homem-pipa que dera origem à contenda.

Os fregueses dividiram-se em dous grupos. De um para outro voaram imediatamente os copos e as garrafas. E d. Bias, que se ficara no mesmo lugar, entre os contendores, levou o melhor do primeiro arremesso. Rolou até pelo chão quando o Carniça investiu manhoso para tomar-lhe a durindana. E lá do balcão, o Trancoso, abrindo uma larga e forte navalha catalã, veio para o meio do barulho numa neutralidade agressiva de quem queria pôr no olho da rua toda aquela comitiva brigalhona de ébrios esbodegados.

- Que fossem se haver lá para a lama do Piolho!

Nisto, veio de lá de fora um retinir de armas. Ouviu-se um grito de agonia, e mais outro, e mais outro ainda. Correram todos para a porta. Matava-se ali por perto.

E d. Bias, muito lambuzado de poeira e vinho no seu roupão de veludo sem pêlo, ergueu-se e foi para o fundo da casa, aproveitando a confusão do momento para esconder o chouriço por debaixo da camisa.

A porta, todos alongaram os olhos pela noite escura. A chuva estiara um pouco. Sem iluminação, a rua do Piolho desenhava indecisamente os seus perfis de casas baixas. E a alguma distância da taverna, via-se redemoinhar um grupo confuso de homens que se batiam. Mais alto que o tinir das espadas soavam as pragas dos combatentes.

Era positivo que um dos combatentes se defendia de todos os outros, com uma coragem de leão.

Os fregueses do Trancoso ficaram sem movimento contemplando a luta. E Trancoso encolheu os ombros e voltou para seu posto no balcão, rosnando entre dentes que melhor que se matassem todos uns aos outros aqueles vagabundos que tiravam a espada por qualquer patifaria.

Os outros ficaram sem intervir. O Carniça entusiasmou-se: um dos combatentes acabava de cair varado por um bote do que se defendia. E o mulato, diante daquele espetáculo delicioso para seu temperamento de galo de briga, berrou, batendo palmas:

- Aí, bravo!

Os dous agressores perdiam terreno. A espada do desconhecido girava multiplicando os botes, e pondo-lhe diante do peito um muro de aço em que vinham bater inofensivas as armas dos outros dous. Mais um ferido. E o último rodou sobre os calcanhares, fugindo, seguido de perto pelo inimigo.

Nesse momento, d. Bias indignou-se da covardia em que estavam todos, vendo um bater-se com tantos.

- Caramba! não se dirá que um fidalgo de Espanha deixou de ir em auxilio de um fraco!

E abalou de durindana em punho para o lado em que o desconhecido perseguia o fugitivo. Mas o fidalgo viu a sua bravura sem proveito. O desconhecido já vinha de volta, e daí a pouco, quando entrou na tasca, o Trancoso, ao ver-lhe a fisionomia, acercou-se dele com um ar de respeito e carinho. Os fregueses cumprimentaram-no também. Sentou-se a um mocho, e atirando a espada ensangüentada sobre o balcão, ordenou ao taverneiro:

- Limpa isto e dá-me vinho!
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continua