sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 7. Rufina

Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e
mocidade, se lhe guardara afeição apenas pelo fato de a ter socorrido. -Há no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as pálpebras semicerradas.

..................................... un long rayon d'étoile!

Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. -Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina?

Fonte:
Domínio Público

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