terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 9. A Roupa e o Gesto


Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras. 

Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas, -o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. -Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último. 

Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais. 

Apesar de preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente gravata de listras amarelas e filetes encarnados. 

Não. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam de vícios ou maroteiras. Propendo até a perdoar mais facilmente a exibição de roupas, que não é assim tão idiota como inculcam os que não a podem pagar. 

Ter vaidade de uma farpela bonita é geralmente uma falta venial e, por assim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaidade da boa ação destrói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura de heroísmo, que é o seu único valor, -o imponderável que a análise não pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detém, enquanto faísca no olho implacável do operador uma centelha de humana emoção. 

É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial de piedade e de energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular, são na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas, -são tranqueiras e circunvalações defensivas que a mulher estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar. 

Não, a indumentária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me, luxuosamente, como a coisa designada) a indumentária não me influiu na resolução de ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto, sim. -De onde infiro que devíamos usar mais freqüentemente de roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente de roupa nova. 

Se todos vivêssemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte, de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e o concerto das relações entre os homens. Um indivíduo rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outra elegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga. 

Homens há que são relembórios por teima, por descaso, por sistematização inconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que são assim por vontade e que vão executando um programa bem meditado. Dão-se ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade é que são às vezes sinceros. Mas como se iludem! 

O indivíduo mais sinceramente lavado de vaidades decorativas não pode, quando menos, quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepância em que se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitude interior de dissidência, não pode evitar a necessidade de pensar nisso, de fazer reflexões que deixam forçosamente um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos com que esbarrou. Sendo assim, onde está a liberdade interior que ele pretende prezar acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e todas as suas conseqüências -a liberdade de Diógenes ou de Francisco de Assis. Sem isso não é liberdade: é um simulacro, um escamoteio, um sofisma em ação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra. 

Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria e mantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia de força. Excelente esporte para a alma, que se modela à feição do corpo. -As atitudes e movimentos da alma são atitudes e movimentos corporais: a alma põe-se de pé, acocora-se, desliza, descai, ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas as posições de luta, desde a de um calmo e melódico guerreiro de Fídias até à de um torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmente pronto para a rasteira ou para a fuga. 

Nas aulas de educação moral e cívica devia-se ensinar, antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça, de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente lhe modifica a personalidade, por via de ressonâncias que se vão convertendo em movimentos interiores habituais. -Inversamente, para convencer uma menina de que ela deve ser boazinha, não há como convencê-la de que assim se torna mais bonita. Há muito menina grande que faz toda a força do seu domínio interior com a simples preocupação de não ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamação das pálpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava de assistir com olhos secos a uma comovedora representação teatral: "Eu choraria; mas é que tenho de cear na cidade". 

Compreende-se bem a confusão que de ordinário se faz entre o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas aparências externas. Este pratica uma ação honrada, não por esta ou aquela razão abstrata, mas para poder andar "de cabeça erguida"; aquele, para poder "dar uma...", isto é, fazer um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que, dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Não é lá tanto pela religião, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso; mas é cá por uma birra, - é um couce que eu prego ao Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de réis e disso se pavoneia." 

A metáfora é mais do que um artifício pitural, é a gesticulação das almas. 

Somos bonecos à procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora de nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos vasos e canais que a contêm e lhe dão forma, como a água passa pelos acidentes da própria correnteza e do próprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suas espumas e cachões. 

Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria música, que espontaneamente se resolve em desenhos cinéticos de uma aérea e fulmínea expressividade. 

Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estão, em parte, incorporados às roupas distintas, como um forro invisível. O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por uma tela espiritual, fabricada por duas tecelãs incansáveis, a Humanidade e a Natureza. 

Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria um frade de São Francisco sem o seu hábito! O hábito só não faz o monge quando esse está de tal maneira conformado pela vestimenta, que já pode impunemente despi-la, sem de fato arrancá-la toda do corpo. 

A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas. De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o caráter daquela gente estrepitosa e derramada. 

Por uma razão semelhante, as estátuas clássicas (isto me parece que foi dito por Alam) são formas imperecíveis de idealidade ética, formas que precedem e sobrevivem ao conteúdo ideal que nelas vão sucessivamente vazando as gerações. 

A roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo quanto em nós representa idéia, pensamento, espirito, são expressões que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz e de ordem no caos de que brotaram -como esses deuses barbáricos e frustes que nasceram da pedra informe, das águas indeterminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma organização do mundo. 

Fonte:
Domínio Público

Nenhum comentário: