domingo, 24 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 13. Um Romance

Entre os passageiros com os quais frequentemente me encontro, pela manhã, há uma bonita mulata, não de olhar azougado, mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam notícias de família. Veste-se com decência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe. Tem as mãos lisas e mórbidas, os dedos compridos e afusados; as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de couro, sob a massa movediça das saias, têm uma graça hesitante de pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?

Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, a constância dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntário de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade familiar com o condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres brancas e chiques de braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive umas informações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático de farmácia, o homem do Infinito, ouvi dele a informação cabal.

"Pois não a conhece? Não conhece, deveras, a Florinda?" -Contou-me toda a história de Florinda, a mesma história de tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: "Hoje, uma senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora de casa. É companheira de um empregado aposentado dos correios, um casca, velho, reumático, bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irmã de caridade, de cozinheira, de mãe e de filha. E até de armazém de pancadas."

É aquilo de Amiel: Pas um brin d'herbe qui n'ait une histoire à raconter, pas un coeur qui n'ait son roman..., que é aquilo mesmo de Emerson: "Todo indivíduo tem uma história que valeria a pena conhecer, se ele pudesse contá-la, ou se nós lha pudéssemos arrancar". -Cada um carrega em si um epítome do drama humanal, tecido de trevas e de lumes. E cada um nos dá uma sensação de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo.

Fonte:
Domínio Público

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