sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte III

2.2 Sousândrade: um romântico

 Inscrito cronologicamente dentro do movimento romântico, Sousândrade não escapou plenamente desse ideário. Na concepção de Williams (1976, p. 75), “Sousândrade foi um poeta romântico, modelado e desenvolvido pelo romantismo nacional e internacional”. Se pensarmos Sousândrade pelo prisma romântico, podemos perceber em sua obra a marca de sua época. A constante aproximação do cenário exótico da “pátria” ao jardim do Éden, ponto de pureza natural presente no livro do Gêneses, leva a uma idealização tipicamente romântica, pois o território nacional é comparado a um elemento de absoluta pureza. Tal postura implica um nacionalismo latente, pois o elemento natural, visto como ponto de afirmação da individualidade, passa a ser adorado enquanto índice de brasilidade.

O Eden alli vai n’aquella errante

Ilhinha verde – portos venturosos

            Cantando á tona d’água, os tão mimosos
            Simplices corações, o amado, o amante.
Incantados lá vão, ás grandes zonas
            D’ um outro mundo, a amar, a ouvir cantando:
            Oh, ninguem sabe o incanto do Amazonas
            Ao sol, ao luar, as aguas deslumbrando!

Esta é a região das bellas aves,
            Da borboleta azul, dos reluzentes
            Tavões de oiro, e das cantilenas suaves
            Das tardes de verão mornas e olentes;
A região formosa dos amores
            Da araçaranea flor, por quem doudeia,
            Fulge ao sol o rubi dos beija-flores,
            E ao luar perfumado a ema vagueia.

(O Guesa. Canto II, p. 21)[iii]

Neste fragmento, temos uma visão idílica do espaço natural. Os elementos naturais como “borboleta azul”, “araçaranea em flor”, “beija-flores”, “ema” são aproximados a tons amenos da natureza como o entardecer, tendo ao fundo uma “cantilena”. Essa postura indica a visão do espaço natural como pólo de paz para o eu-poético. A sinestesia “luar perfumado” poderia ser citada como confirmação dessa visão idílica auferida à natureza. As riquezas “oiro” e “rubi” são derivadas de elementos naturais como o raio e os beija-flores. Tal indicação remete a uma riqueza imanente ao traço natural. Podemos falar, então, em uma supervalorização do espaço natural que, via de regra, vem envolto em um olhar deslumbrado e, portanto, nacionalista e idealizador.

No entanto, a racionalização da tradição romântica deve ser reconhecida como ponto de distinção da obra sousandradina dentro das manifestações “corriqueiras” de nosso Romantismo. Sua linguagem transborda os limites conservadores do cânone romântico consagrado no Brasil e, por isso, não seria compreendida dentro desse movimento. O próprio Sousândrade (apud WILLIAMS, 1976, p. 14) afirma: “Ouvi dizer já por duas vezes que ‘O Guesa Errante’ será lido cinqüenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinqüenta anos antes”.

Essa singularidade não leva, como já salientamos, a uma ruptura com o ideário romântico, mas sim a uma nova perspectiva em relação à heterogeneidade do movimento. Fazendo uma distinção dentro do Romantismo, Paz (1984) salienta que esse movimento apresenta duas vertentes: uma que valoriza a emotividade como elemento máximo, levando a uma espécie de supervalorização do impulso primário, revelando, assim, uma profunda impulsividade e eloqüência; e uma segunda vertente, na qual a postura emotiva aparece permeada por uma certa racionalidade que busca condensar o veio impulsivo da primeira vertente.

Segundo o crítico, foi a primeira vertente que determinou a formulação canônica consagrada no movimento romântico brasileiro. Na segunda vertente, mais racional, figurariam nomes como Nerval, Nodier, Hölderlin, poetas que souberam redefinir o veio consagrado e, por esse motivo, ficaram longo tempo à margem da valorização literária. É a essa vertente racional que aproximamos o procedimento poético sousandradino. Haroldo de Campos (1976, p. 18) toca nessa questão ao afirmar que “nosso Romantismo poético – [...] é um Romantismo defasado e epigonal, extremamente dependente dos modelos europeus, [...] principalmente, dos paradigmas ‘extrínsecos’ (a oratória hugoana, o intimismo soluçante de Musset, a religiosidade lacrimatória de Lamartine)”.

Em oposição a essa corrente epigonal, o crítico salienta a existência de um Romantismo “crítico”, baseado na apropriação crítica dos valores emotivos predominantes no Romantismo canônico.

Diante do exposto, poderíamos dizer que a obra sousandradina não pode ser entendida completamente sem levar-se em conta que o poeta distanciou-se da linha predominante em nosso Romantismo. A interposição do “externo” ao “interno” revela a consciência da diferença entre a cultura do conquistador e a cultura indígena; em outras palavras, o poeta soube manipular a tradição para atingir uma toada distinta da de seus contemporâneos e, com isso, vislumbrar uma individualidade mais próxima do elemento nativo.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

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