sábado, 16 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte IV

2.3 Romantismo críticoÉ justamente por essa postura consciente em relação ao cânone tradicional de seu tempo que se pode ligar Sousândrade a um romantismo crítico ou titânico. Segundo Vizzioli (1993, p. 154), o romantismo titânico foi marcado por uma profunda racionalização do ímpeto emotivo primário dos românticos, o que levou muitos autores a imprimirem ao sentimentalismo característico dessa escola um tom racional que, em alguns aspectos, vale-se de procedimentos clássicos, caracterizando um romantismo mais lúcido e racional. Tal postura, segundo o crítico, não implicou uma negação dos preceitos emotivos do Romantismo, antes, formulou-se como uma “das contradições intrínsecas da própria dinâmica do Romantismo”.

Conforme já mencionado, a vertente titânica pressupõe uma postura consciente em relação ao fazer poético, levando a uma modulação da emotividade através do trabalho racional com a linguagem. Em Sousândrade, essa racionalização do ímpeto emotivo é percebida quando o poeta apresenta o elemento natural contaminado pela figura do colonizador e não como a projeção equilibrada desse paradigma.

Outra forma de percebermos a racionalidade do discurso sousandradino é a manipulação da tradição literária dentro de sua obra, pois é comum observarmos no interior dO Guesa um constante diálogo intertextual com obras como A Odisséia de Homero, Eneida de Virgílio, Fausto de Goethe, Os Lusíadas de Camões, entre outras.

Oh, podeis, cortezãos, aperfeiçoando,
            O prémio de ter das ‘ilhas dos amores!’’
            E os lares de Penelope bordando,
            São sós os que honram aos navegadores.
– E onde existe Camões? E aonde Homero?
            Aquelle, em Portugal; e á humanidade
            Este eterno guiando, que primeiro
            As virtudes ensina da amizade,
 (O Guesa. Canto VI, p. 137)


Evidencia-se, nessa passagem, a adoração ao clássico como modelo estético a ser seguido, já que autores e obras consagrados são evocados como referência para a produção poética sousandradina. O aperfeiçoar em busca do prêmio dado aos portugueses, na “Ilha dos amores”, bem como a indicação de que Homero guia os passos do poeta mostram que Sousândrade tem uma certa predileção por esses autores e pela arte que eles representam, ou seja, o discurso clássico. Ao longo do poema as interferências clássicas se fazem presentes como pontos intertextuais. O eu-poético de O Guesa vislumbra um equilíbrio idílico nessas obras e, por isso, coloca-as como prolongamento da pacificação do sujeito. Nos versos que seguem, temos uma visão desse processo:

Vê do arrependimento o incanto adeante
E ouve do amor-primeiro esse murmúro
D’alvoradas de Anninhas; e a que o Dante
Sentia o grande amor, o amor venturo.

– Chega odysseu viajor: para ele correm
A mulher nobre, a muito amada filha,
Os contentes escravos, que não morrem
Já tendo protector. E ao da familia
Doce quadro, risonho qual um sonho,

Parado estava o jovem peregrino
E eu aos olhos de vós, sem arte o ponho,
Que vejais ser da terra o que é divino.

(O Guesa. Canto VI, p. 145)


O eu-poético projeta uma paz na indicação da chegada de Odisseu a sua pátria. O poeta associa a essa personagem, também em périplo, à situação de O Guesa, que vaga pela América em busca da paz.

Nessa medida, cria-se, por meio da consciência crítica, uma linguagem que relaciona a tradição poética à emotividade romântica. A linguagem passa por uma racionalização do traço emotivo. Prova disso é a rigidez formal observável no poema. Na maior parte de O Guesa temos uma métrica regular em quartetos decassílabos, o que remete a uma reminiscência épica no interior do poema. Mesmo nos momentos de irrupção inovadora, encontrados em Tatuturema e Inferno de Wall Street, contidos nos Cantos II e X, respectivamente, é perceptível uma estrutura regular, sendo as estrofes estruturadas de maneira a resguardar a homogeneidade do restante do texto.

Nessa tentativa de racionalizar o impulso emotivo, o poeta maranhense atinge a modernidade uma vez que se posiciona criticamente face à tradição para criar sua maneira romântica de trabalhar o discurso. É bom ressaltar que a modernidade concretiza-se na manipulação consciente da tradição para a instauração do novo, ou seja, o moderno pode ser entendido como um constante questionamento da tradição. Assim, o próprio Romantismo pode ser entendido como um ponto de partida rumo à modernidade.

Na busca dessa racionalidade, o poeta maranhense, muitas vezes, vai da ironia à sátira em uma velocidade vertiginosa e conturbada. Daí dizermos que a ironia sousandradina materializa-se na dilaceração do veio romântico “epigonal” e na exposição lúcida de uma sociedade corrompida pela cobiça. No fragmento que segue podemos observar um exemplo desse comportamento na inusitada poética sousandradina.

(Xèques surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-managers, Stockjobbers, Pimpbrokers, etc., etc., apregoando:)
– Hárlem! Erie! Central! Pennsylvania!
= Milhão! cem milhões!! mil milhões!!!
– Young é Grant! Jackson,
                            Atkinson!
Vanderbilts, Jay Goulds, anões!

(O Guesa, Canto X, p.231)


Neste excerto, a equiparação dos substantivos próprios por meio do uso do verbo ser – único verbo da estrofe – liga os termos e pressupõe uma gradação, expressa pelos dois versos iniciais. Essa gradação, fundamentada pela cobiça, faz com que as personagens citadas, resumidas ironicamente ao termo “anões”, prolonguem uma atitude depreciativa em relação à realidade, que aparece degradada. Cantada nessa estrofe, a contaminação da pureza pela negatividade estabelece a tensão entre os termos que passam a ser vistos negativamente.

Esse posicionamento crítico revela um olhar distinto face ao elemento natural. O Romantismo epigonal, como vimos, tende a ver positivamente a relação homem/natureza. O índio (elemento de brasilidade) e o branco são aproximados e, às vezes, identificados. Essa visão pode ser observada na obra de José de Alencar quando este coloca em pé de igualdade o branco colonizador e o índio Peri.

Em O Guesa o espaço natural, impregnado pelo elemento externo, degrada o equilíbrio e contamina a essência nacionalista tão valorizada pelo Romantismo. A ironia sousandradina advém da consciência da degradação, imposta ao elemento de brasilidade: “Tangendo o boi do arado. O povo infante/ O coração ao estupro abre ignorante” (Canto II, p.21). Desse modo, o natural serve ao poeta como instrumento de crítica, pois revela a contaminação dos valores inerentes à cultura brasileira, que incorpora os traços civilizados e, nesse processo, corrompe o veio genuinamente nacional.

A constatação dessa situação cria uma aversão ao colonizador, visto como responsável pela degradação:

 (MUXURANA histórica)

– Os primeiros fizeram
As escravas de nós;
Nossas filhas roubavam,
Logravam
E vendiam após.
(O Guesa, Canto II, p. 25)

Os “primeiros”, entendidos como os europeus, agem negativamente sobre o traço nacional, sendo caracterizados como ladrões e aproveitadores. O uso de “vendiam” traz à cena a exposição dos fins mercantilistas que moviam a ação do colonizador.

O olhar crítico em relação ao elemento natural revela uma espécie de inversão de papéis, observada no fragmento abaixo:

(Escravos açoitando ás milagrosas imagens:)

– Só já são senhôzinhos
Netos d’imperadô:
Tudo preto tá fôrro;
            Cachorro
Tudo branco ficou!
(O Guesa. Canto II, p. 28)


No excerto acima, a inversão pode ser verificada na rubrica “Escravos açoitando ás milagrosas imagens”. O verso “tudo preto tá fôrro” remete a uma possibilidade de liberdade; a ação de açoitar indica, no entanto, uma prisão cultural. Ao usar um instrumento de punição contra a própria cultura civilizada, iconizada pelas “milagrosas imagens”, o escravo incorpora a perspectiva do branco, perdendo suas particularidades culturais, tornando-se, assim, uma projeção degradada do homem civilizado.

Observa-se ainda em algumas passagens de O Guesa uma postura melancólica do enunciador-poético não apenas diante do passado, como também de uma conseqüente perda das “origens”:

Mas o egoismo, a indifferença, estendem
            As éras do gentio; e dos passados
            Perdendo á origem chara estes coitados,
            Restos de um mundo, os dias tristes rendem.

Quanta degradação! Razão tiveram
            Vendo, os filhos de Roma, todos barbaros
Os que na patria os olhos não ergueram,
Nem marcharam á sombra dos seus labaros.

O estrangeiro passa: que lhe importa
A magnolia murchar, se elle carece
Tão só d’algumas flores?... Anoitece
N’um somno afflicto a natureza morta!

[...]

Selvagens – mas tão bellos, que se sente
Um barbaro prazer n’essa memoria
Dos grandes tempos, recordando a história
Dos formosos guerreiros reluzentes:

[...]

Selvagens, sim; porém tendo uma crença;
De erros ou bôa, acreditando n’ella:
Hoje, se riem com fatal descrença
E a luz apagam de Tupana-estrella..
(O Guesa, Canto II, p. 21-2)


Nessa passagem, as “éras” do gentio figuram como ponto de constatação de uma descaracterização da pureza primitiva em contato com o traço europeu. Numa inversão de valores, os brancos, “os filhos de Roma”, os detentores da cultura (supostamente civilizados) são “bárbaros” que agridem e destroem o espaço natural. A expressão “anoitece”, associada à “morte da natureza”, parece remeter à participação dos nativos no processo de degradação. Estes, por sua vez, “não erguem os olhos”, negligenciando sua própria natureza primitiva, tornando-se, assim, agentes de sua destruição.

Nesse sentido, é a morte cultural que determina a melancolia do discurso que, por esse motivo, torna-se um grito pela efetiva distinção de nossa realidade frente ao externo. Sousândrade, diferentemente de sua geração, enquadra-se na visada nacionalista menos por cantar o espaço interno recheado de beleza e plenitude, do que por revelar conscientemente a situação degradada de nossa cultura face ao externo.

(Viola rindo:)

– D’este mundo do diabo
Dom Cabral se apossou,
E esta noite d’Arabia
            Astrolabia
Desde então se bailou.
(O Guesa, Canto II, p.30)


Daí termos, na poética do maranhense, um posicionamento distinto em relação ao “ufanismo” romântico. Sousândrade busca o desnudamento da artificialidade desse movimento e, por esse motivo, pode ser entendido como um romântico titânico. Esse desnudamento é perceptível quando o poeta introduz, em um tom de galhofa e ridicularização, no Canto II de O Guesa, poetas como Vitor Hugo, Byron, Lamartine, além de poetas de nosso Romantismo como Gonçalves Dias, Magalhães, entre outros:

(Beatos pasmadores)

–  Branca estatua de Byron
Faz cegueira de luz?
== Breu e brocha á criada!
            E borrada:
Ô, ô, ô, Ferraguz!             (Risadas)
            (Pasmadores impios)

Lamartine é sagrado?
== Se não tem maracás,
Ô, ô, ô,! – vibram arcos
Macacos,
Tatús-Tupinambás.
(O Guesa. Canto II, p.36)


A crítica ao discurso corriqueiro do Romantismo fica evidente pela incorporação do elemento “maracás” (instrumento musical utilizado em rituais indígenas) que, associado à interrogação e a uma “cegueira de luz”, remete diretamente à artificialidade do discurso romântico. A ridicularização de Byron e Lamartine, perceptível pela sonoridade em eco do fonema /o/ e pelas risadas aproximadas ao termo “macacos”, indica a dominação do traço nacional, metaforizado no elemento “Tatú-Tupinambá”.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

Nenhum comentário: