terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia VII)


Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Obs.: Publicado pela primeira vez in Presença, números 41-42, Coimbra, maio de 1934. Acerca da epígrafe que encabeça este poema diz o próprio autor a uma interrogação levantada pelo crítico A. Casais Monteiro, em carta a este último:

A citação, epígrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente - o que é fato - que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho [In VO/II.]

ESQUEÇO-ME DAS HORAS TRANSVIADAS

Esqueço-me das horas transviadas
O Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco...  Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

ESTA ESPÉCIE DE LOUCURA

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há

FELIZ DIA PARA QUEM É

Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia !

Azul do céu faz pena a quem 
Não pode ser
Na alma um azul do céu também 
Com que viver

Ah, e se o verde com que estão 
Os montes quedos
Pudesse haver no coração 
E em seus segredos !

Mas vejo quem devia estar 
Igual do dia
Insciente e sem querer passar. 
Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu 
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu 
A alma p’ra os ter !

FLOR QUE NÃO DURA

Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi 
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi

Onde não sou senão a terra e o céu.

FOI UM MOMENTO

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.

Senti ou não ?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste

A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve !...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando 
A tua mão
Senti pousando 
'Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco, 
No coração,
Não houve um ritmo 
Novo no espaço ? 
Como se tu,

Sem o querer, 
Em mim tocasses 
Para dizer 
Qualquer mistério, 
Súbito e etéreo,

Que nem soubesses 
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

FOSSE EU APENAS, NÃO SEI ONDE OU COMO

Fosse eu apenas, não sei onde ou como, 
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....

Fada maliciosa ou incerto gnomo 
Fadado houvesse de não pertencer 
Meu intuito gloríola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente 
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, 
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...

FRESTA

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

FÚRIA NAS TREVAS O VENTO

Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar.

Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, 
sem identificação do autor.

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