quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (Agar)

De Bersabé nos areais ardentes
O desmaiado sol ia esconder-se,
E Agar, a expulsa Agar, gemendo aflita,
Unia ao peito o moribundo filho.
O vaso d'água que lhe dera o esposo
Esgotara-se em breve, e no deserto
Com seu pobre Ismael não descobrira,
Desde o romper do dia, a ansiada fonte.
O dia declinava: eis que o infante,
Que pela mão a acompanhava exausto,
Ardendo em sede lhe sucumbe às plantas.
Ela vê-o cair, ela estremece,
E, os olhos turvos em redor lançando,
Aqui e ali correndo busca ainda,
Mas debalde, um frescor. Enfim, cansada,
Ela mesma também, eis volve ao filho,
Prostra-se, abraça-o, com maternos beijos
Tenta ansiosa prolongar-lhe a vida.

«Filho, meu filho – murmurava a triste –
«À sede vais morrer! Oh! se o pudesse
«Adivinhar teu pai, cruel não fora;
«E Sara, a própria Sara, enternecida
«Emudecera seus fatais ciúmes.
«Oh! não gemas, não gemas, que debalde
«Invocas tua mãe. Ela te escuta,
«Mas não pode salvar-te: dentro em pouco
«Em seu regaço exalarás a vida.
«E hei-de eu ver-te expirar? ver nesses olhos
«Sumir-se a luz do dia? e nessas faces,
«Que tantas vezes me sorriram ledas,
«Ver as ânsias da morte? Oh! não, não posso
«Ver morrer o meu filho». Disse, e ao tronco
Duma árvore vizinha o recostava;
Depois, com tristes, vagarosos passos,
Foi noutros sítios aguardar a morte.
Ali, ao ver o sol que esmorecia,
Desatou a chorar, e estes queixumes
Em voz convulsa murmurou ainda:

«Sol do deserto, que o meu pobre filho
«Vês expirando na soidão além,
«Com teu suave, derradeiro brilho
«Beijar-lhe a face carinhoso vem!
«Oh! vem, que eu triste nessa face pura
«Materno beijo nunca mais darei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Quando o teu facho ressurgir do oriente,
«Tudo na terra sentirá prazer;
« E lá nos campos de Mambré virente
«Mais bela a rosa te verá nascer:
«Só ele em sombras duma noite escura
«Adormecido ficará, bem sei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Por mim não choro, que infeliz escrava
«Meus tristes dias findarei aqui:
«Ai! choro aquele que no mundo amava,
«Choro meu filho, que expirando vi.
«Maternos mimos, filial ternura,
«Lembrai-me os tempos que feliz gozei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Oh! quem dissera nos passados dias
«Em que ao meu colo te cerquei d'amor,
«Oh! quem dissera que a morrer virias
«Neste deserto sem achar frescor?
«Emurcheceste, já não tens verdura,
«Mimoso arbusto que gentil criei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerara
«Na escrava humilde, findarão assim.
«Foi mais feliz a geração de Sara:
«Cruel destino só me coube a mim.
«Em vão, em vão me prometeu futura
«Longa progénie: sem ninguém fiquei,
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Aves agrestes que me ouvis as queixas,
«Com tristes vozes o seu fim chorai!
«Brisas do ermo, suspirai-lhe endeixas!
«Astros da noite, seu dormir velai!
«Velai-o todos, que a final ventura
«Que vos reservo nem sequer terei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

Mas Deus! que via ela,
Que um ai desprendeu?
Que pomba tão bela
No manto do céu!
Que penas de prata,
D'azul, d'escarlata,
O espaço retrata
Sereno, sem véu!

É anjo voando!
Que brilho que tem!
Que véus ondulando
De pura cecém!
Que anéis de cabelo
Nos ombros de gelo,
No colo tão belo
Caindo ao desdém!

Descendo, descendo,
Já perto chegou;
E a pobre tremendo
Calada ficou;
E o anjo sorria
Com doce magia,
E à terra descia,
Na terra pousou.

E em roda mil lumes
De brilho sem fim
Lançava, e perfumes
De nardo e jasmim;
E a voz argentina,
Suave, divina,
Soltou peregrina
Falando-lhe assim:

«O que fazes, Agar, porque choras?
«Nada temas, não tens que temer;
«Se o teu filho perdido deploras,
«Esses prantos converte em prazer.

«Do deserto chegou seu gemido
«Às alturas que habita o Senhor:
«Surge, surge, e teu filho querido
«Vai ao longe buscar sem temor!

«Surge, surge, recobra a esperança
«Que as promessas cumpridas serão!
«O teu filho, o Senhor to afiança,
«Será pai duma grande nação.
 
«Glória a Deus, que no céu ouve as mágoas
«De quem sofre na terra a carpir!
«Eis um jorro de límpidas águas:
«Ide nelas a sede extinguir!»

E, assim dizendo, lhe mostrava perto
Uma fonte escondida entre verduras,
Como nunca se vira no deserto,
De tão grato frescor, d'águas tão puras.

Depois, batendo as esmaltadas penas,
Deixou na terra um luminoso traço;
E, agitando seu manto d'açucenas,
Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.

Erguendo aos céus a radiosa fronte,
A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;
E, enchendo o vaso no cristal da fonte,
Com ele ao filho a salvação levava.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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