quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (Um Sonho)

Ah! si jamais le ciel j'était entre mes bras
un des songes vivants attachés à mes pas
LAMARTINE, Jocelyn.

Inefável sentir, branda tristura
Oh! quero-te sozinho aqui gozar...
Eu te amo, tu não tens essa amargura
Que nos seios, a mão da desventura
Costuma derramar.
Eu te amo qual amara a melodia
De terna e melancólica canção,
Ou o raio que o sol no fim do dia
Como um beijo d'adeus, saudoso envia
À rosa da soidão...
Oh! sim, eu te amo, ó mística saudade
Vem, quero no teu seio reclinar
A minha fronte, aqui na soledade
Como o lírio a que falta a humidade...
Sim... quero aí chorar...
Quantas vezes meu espírito elevando
Ao céu em tuas asas de marfim,
Os anjos um por um me andas mostrando!
Oh! se desse gentil, celeste bando
Tivesse um junto a mim!...
Qual fonte que em deserto ressequido
Dá conforto ao exausto viajor,
Se houvesse sobre a terra um ente qu'rido
Que terno respondesse a meu gemido
Com meigo hino d'amor!..

Que vejo? as auras fendendo
Nívea pomba eis desce a mim,
Do céu à terra descendo!...
«um génio, um querubim,
Já desceu e a mim chegando,
E meu pranto contemplando,
Já me uniu ao coração...,
E dois seios se entenderam,
E dois corações bateram
Em uma só pulsação...

Virgem que à terra vieste
Lá do seio do Senhor,
Deixaste o coro celeste
Pra vir dar-me o teu amor?
Vens os prantos enxugar-me
Vens no teu sorriso dar-me
O que ainda não senti?
Vens do amor e da ternura
Receber essa flor pura
Que eu guardava para ti?

Vem; tu surges qual estrela
Que surge meiga no céu
Quando após uma procela,
Se mostra pura e sem véu;
Tu surges qual meiga aurora,
Qual ao Nauta que o implora
Surge seu berço natal;
Oh! quero pois adorar-te...
Quero só viver d'amar-te...
A vida sem ti que vale?

Sim, aqui junto ao teu seio
Tudo o mais quero esquecer...
Nada no mundo receio;
Junto a ti que hei-de temer?
Este amor puro e ardente
Só bem o conhece e sente
Quem vive do coração,..
Cá na terra não no entendem,
Só os anjos o compreendem,
Só tu tens esse condão.

Tu eras, anjo, tu eras
Quem ao mundo em vão pedi:
Oh! escuta, se souberas
Todo o pranto, que verti!...
Mas meu pranto que importava?
O coração que eu buscava
No mundo não no achei...
Era em vão que lho pedia
O que só em ti havia,
O que em ti só encontrei.

Mas nós somos tão felizes!
É tão doce este viver!...
Oh! essas falas que dizes,
Torna-as, torna-as a dizer;
Essas falas de ternura
D'inocência e de candura
Quero escutá-las sem fim...
Diz-me, virgem celeste:
Os anjos, donde vieste,
São inocentes assim?

Tu és inocente e pura
Como a cecém ao abrir
Quando a aurora na candura
Lhe vem um beijo imprimir...
Por uma manhã formosa.
Quando desabrocha a rosa,
Quando o prado rescender,
Hei-de ir em cada florinha,
Em cada tenra folhinha,
A tua inocência ler...

Mas, repara neste dia
Como é lindo o seu fulgor!
Tudo nele é alegria,
Tudo palpita d'amor...
Não vês tu a natureza
Revestida de beleza
Nosso amor a festejar?
Não vês como nos convida
A lançarmo-nos na vida,
A vivermos para amar?

Eis pois, tudo olvidemos
Vivendo juntos aqui:
Eia, nosso amor gozemos;
Sê minha, vivo pra ti...
Sim, és minha, as nossas vidas,
As nossas almas unidas,
Quem as pode separar?
Até no último suspiro,
Como um anjo em leve giro,
Hão-de ao céu juntas voar!...

Um sonho... sim, um sonho e... feliz que ele era
Porém cedo fugiu...
Ai! não sei que terror, que medo gera
Esta mudez que impera
Dês que ele se esvaiu...
Pra quem sonhou na terra um céu d'amores
É tão triste o acordar!
E, qual apaga o íris suas cores,
Qual se vêem desbotar numerosas flores
Ver o sonho expirar!...
Meu Deus! só vejo um ermo onde caminho
Sem protectora mão,
Qual triste o peregrino vê sozinho,
Longe do pátrio ninho,
Do deserto que pisa a solidão!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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