sexta-feira, 15 de março de 2013

José Nêumanne (A volta de Quaderna, o Quixote da caatinga)

(Nêumane, Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.)
Pode até ter sido mera coincidência o escritor paraibano radicado em Recife Ariano Suassuna haver permitido, após um longo hiato de 31 anos a reedição de sua obra-prima em prosa de ficção, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, neste mesmo ano em que se comemoram os 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, a primeira novela da história da literatura mundial. Mas a verdade é que há muito mais coincidências entre a saga do cavaleiro andante e a do poeta-palhaço sertanejo que a primeira letra de seus nomes – Quixote e Quaderna.

Na nova e caprichada edição com que a José Olympio está substituindo agora, tendo afinal obtido a autorização do renitente autor, a velha, já ensebada e rara última edição ainda dos anos 70 do século passado, foi incluído o posfácio do grande escritor pernambucano infelizmente muito pouco conhecido no Sudeste Maximiano Campos (1941-1998). Em seu texto, esse expoente da Geração de 65 deu aquela que talvez seja a melhor definição do protagonista do romance: "Quaderna é um misto de Quixote e Sancho, com predominância de Quixote". Mas as semelhanças entre as duas obras não se limitam à inicial dos nomes de seus protagonistas. Assim como Cervantes glosou os romances de cavalaria na moda em seu tempo, Suassuna trabalha sua literatura no riquíssimo acervo da poesia de bancada das feiras nordestinas com conhecimento de causa e estro de poeta.

Nas veredas de Cervantes - Da mesma forma como Quixote, Quaderna é trágico e cômico, épico e picaresco. Aliás, da mesma forma como o cavaleiro da triste figura e como inúmeros heróis dos romances de cordel que ele cita ao longo do caudal de prosa poética em que o herói é criado e recriado e se mostra malcriado. Costuma-se comparar a prosa ao mesmo tempo clássica (de um classicismo de romance europeu, do qual também estão embebidos os folhetos de feira) e bárbara dessa obra-prima a dois outros momentos capitais da ficção em português das Américas: Os sertões, de Euclydes da Cunha (com ípsilon, como gosta de grafar Suassuna), e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Há com esses outros livros, sim, seminais semelhanças de porte, mas parentesco estilístico pode ser que haja mais com o primeiro que com o segundo. Como o registro da queda de Canudos, o percurso de Quaderna pelo sertão real e por seu universo de fantasia, susto e sombra se insere nas veredas, abertas por Cervantes e mapeadas por Jorge Luís Borges, da novela enciclopédica, não tanto na trilha "joyciana", preferida por Rosa nos sertões das Gerais: a da submissão da narrativa à lingüística.

Na prosa de Rosa em geral – e no "romance riverrão" em particular -, o autor pesquisa o miolo da palavra, partindo da raiz, mas buscando a universalidade em doses de erudição de laboratório. Essa foi a trilha perseguida por James Joyce na elaboração de Finnegans Wake, obra quase intraduzível em outras línguas precisamente por não pertencer apenas à original. Suassuna – mais até que em Euclydes e mesmo que em Borges, citados acima como expoentes da prosa enciclopédica – faz o trajeto oposto, partindo do ar para o substrato da língua, como o fizeram os colegas japonês Dogen Zenji (1220-1253), argentino Bartolomé Hidalgo (1788-1822), peruano César Vallejo (1892-1938) e chilenos Vicente Huidobro (1893-1948) e Pablo Neruda (1904-1973). Todos esses escritores, citados em brilhante ensaio do escritor argentino Juan José Saer, preferiram lidar com sua "língua materna" a fazê-lo com a "língua nacional". Assim como o mestre zen-budista Zenji impregnou-se de cultura chinesa, mas escreveu seus 95 sermões no próprio e tosco japonês, o irlandês (como Joyce) W. B. Yeats (1865-1939) elogiava o gaélico como língua de sua grei, mas escrevia sua poesia genial no idioma que aprendeu da mãe na infância, o inglês, e o florentino Dante Alighieri (1265-1321) inventou a poesia ocidental no grosseiro dialeto toscano, preterindo o latim que dominava muito bem, Suassuna recorreu ao ritmo, à graça e à picardia da língua que sorveu nas conversas íntimas da família, em funções de repentistas e nos romances de amor, aventura e presepadas dos heróis da cultura sebastianista medieval ibérica transportada para o sertão de origem de seu herói e pai, João Suassuna.

Colcha de retalhos - Na orelha da nova edição, Bráulio Tavares, poeta também paraibano, resumiu a escritura da obra-prima do mestre da literatura, antes consagrado e popularizado no teatro, de forma exemplar: "O Romance d’A Pedra do Reino é um livro onde o autor parece decidido a aproveitar-se de todas as liberdades concedidas hoje em dia ao gênero ‘romance’, como desaguadouro de elementos vindos da novela, do conto, do poema, do folheto de cordel, do monólogo dramático, do diálogo filosófico, da crônica de época, do memorialismo." Isso resultou, em sua opinião, numa "colcha de retalhos onde a prosa profética convive com o trocadilho, a iluminação mística é contrabalançada pelo versinho fescenino e longas citações de obras históricas são ilustradas por desenhos que lembram os ‘rébus’ ou enigmas figurados dos almanaques dos charadistas."

Ao mesmo Bráulio Tavares coube posfaciar outra obra-prima do autor, esta no teatro, O auto da Compadecida, relançada em edição comemorativa (revista pelo autor) dos 50 anos da peça pela Agir, com ilustrações não do autor (como no caso do romance), mas do filho Manuel Dantas Suassuna, além de outros textos do poeta Carlos Newton Júnior e do romancista Raimundo Carrero, ambos seguidores de Suassuna em seu Movimento Armorial, do qual o exemplo mais completo e perfeito em literatura é o Romance d’A Pedra do Reino. No posfácio Bráulio reproduziu uma anedota que o próprio Suassuna adora repetir em suas divertidíssimas aulas-espetáculo – a do crítico que lhe perguntou o que, afinal, era dele naquela peça que, conforme o próprio autor reconhecia, tinha o primeiro ato baseado no folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, o segundo inspirado no romance O Cavalo que defecava dinheiro e o terceiro em O castigo da soberba, todos compilados por Leonardo Mota em seu clássico Violeiros do Norte, cuja primeira edição data de 1925. "Oxente, eu escrevi foi a peça", respondeu-lhe o dramaturgo.

O "gênio" e o "quengo" - Se Quaderna, entre artimanhas, palhaçadas e quetais, revela seu projeto de se tornar o "gênio da raça brasileira", João Grilo, o "amarelo" do cordel tornado protagonista da peça que fez enorme sucesso no palco e, adaptada para a televisão e para o cinema, tem assegurado farto lucro para seus produtores, pode ser apontado como o protótipo do "quengo" (sinônimo de cérebro e, por extensão, de quem saiba usá-lo): o tipo covarde e desnutrido que consegue sobreviver a golpes de esperteza com os quais supera a truculência dos donos do poder no sertão sem lei.

E, por fim, para quem quiser conhecer o processo racional do qual são extraídas a prosa, a poesia e o teatro do morador do Poço da Panela a José Olympio também reeditou o livro no qual ele reuniu seus ensinamentos do curso que deu sobre Estética na Universidade Federal de Pernambuco: Iniciação à Estética. Nele trouxe para seus alunos e, depois, para seus leitores diversas visões - de Platão e Aristóteles aos escolásticos e a Kant, de Kant a Hegel e a Bérgson, entre outros pensadores - na linguagem clara, concisa e saborosa que domina como poucos. E reconhece sem disfarces sua adesão à escola da Estética filosófica pelo mesmo motivo com que colando cacos da literatura popular das feiras livres amalgama a cerâmica sofisticada de sua obra literária variada: "é a mais aberta de todas e incorpora ao estudo do campo estético as contribuições trazidas por todas as outras."

Fonte:
http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/jneumanne/jn0017.htm

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