domingo, 7 de abril de 2013

Aparecido Raimundo de Souza (Vendedor de Ilusões)

Aparecido é natural do Paraná, radicado no Espírito Santo
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Eutanasio Boa Morte era o que poderia ser chamado, sem sombra de dúvidas, de vendedor nato. Seria capaz de negociar, num abrir e piscar de olhos, a própria mãe, e o fazia, pelo preço de um relógio de pulso, desses bem vagabundos, ou barganhava a irmã  mais nova, pelo equivalente a uma botija de gás vazia. Trocava, permutava, emprestava, doava, liquidava, enfim, o que pintasse, entrava no jogo, e o que adviesse dessas transações, ia direto para os bolsos, como lucro.

Alguns dias atrás, na Praça da Sé, no coração de São Paulo, aos pés das escadarias que dão acesso à Catedral, assisti o sujeito empurrar vários aparelhos de rádio importados (da zona franca de Manaus), em um bando de coitados. Segundo ele, os tais aparelhos foram fabricados nos “States”. “Coisa de primeiro mundo. Tecnologia de ponta”. Bradava, bem alto e, em bom som, para que todos que passassem dessem uma paradinha, ainda que a título de curiosidade.

Para participar das demonstrações, o publico formava uma espécie de ciranda em derredor de sua banquinha improvisada. Os radinhos possuíam vinte e duas faixas de ondas, além das conhecidas ondas curtas, médias e ligeiras. Também transmitia em quarenta e sessenta metros, sem contar que trazia um dispositivo na parte de trás, que permitia mudar as faixas de AM, para FM, e conseqüentemente, de PM, para TVM. Os compradores se mostravam, realmente, entusiasmados e eufóricos. Via-se, pelos rostos alegres, pela atenção que dispensavam, e, pelos olhos arregalados. Alguns, com certeza, se tivessem dinheiro, levariam, pelo menos, uma meia dúzia, para presentearem os amigos mais chegados, familiares e até as namoradas.

De repente, apareceu um infeliz, com aparência de roceiro lá do mato. Passou, reparou, bisbilhotou, foi lá, voltou cá, tornou a ir, e a dar meia volta. Finalmente criou coragem e se aproximou disposto:

—Moço, eu sei que existe rádio com até vinte e uma faixas. Esse seu pelo que entendi, pega uma a mais. Qual é essa faixa?

Eutanásio Boa Morte, sempre de bom humor, e sem perder o controle, ou a esportiva, explicava, com a maior paciência desse mundo:

— Essa faixa é inédita. É a chamada onda de além mar. Aqui o senhor encontrará um botãozinho, como pode ver, amarelo, — me dá aqui o seu dedinho, por favor, pronto, — com ele o senhor conectará o estrangeiro...

— Mas não sei nadinha de inglês.

— Meu amigo, não seja essa a sua preocupação maior. Este produto, graças a um chip ultramoderno, possui um programa que traduz qualquer idioma existente na face da terra ou que o cidadão vier a imaginar, para o português. Se o prezado ligar num programa francês, por exemplo, e o cara estiver falando francês, claro, a tradução virá em seguida, em tempo real.

Eutanásio continuou enumerando as comodidades que o aparelho poderia proporcionar. Parecia, na verdade, um papagaio bêbado, mal conseguindo se equilibrar, a língua solta e sem controle. Falava pelos cotovelos, tinha resposta para todas as perguntas e jamais caia em contradição. De cada dez pessoas que cruzavam a praça, fosse entrando ou saindo da estação do metrô, pelo menos sete, paravam para apreciar as fantásticas funções do tal radinho – “coisa de outro planeta” e, no geral, cinco acabavam metendo as mãos nos bolsos. Detalhe: nenhuma loja na cidade comercializava. Só ele detinha a exclusividade direta do fabricante. Sem mencionar o Certificado de garantia, com validade até a Copa do Mundo de 2050.

Os radinhos do Eutanásio possuíam dezenas de outras funções importantes: além da conversão da pilha para luz, o elemento poderia falar diretamente com o locutor de uma emissora de sua preferência, pedir uma música sem usar o telefone e, em programas esportivos, dar palpites para os jogos de futebol, e ainda, ganhar um prêmio pela participação.

Enquanto estive a observar o Eutanásio, ele vendeu uns trinta aparelhos, senão mais. Para agradar aos clientes, o jovem acondicionava tudo numa caixinha, embrulhava direitinho e, ainda dava, de lambuja, seis pilhas zeradas. Qualquer reclamação bastava botar a boca no trombone que ele, “apreciador das coisas honestas, jamais aplicara golpe em quem quer que fosse”, prontamente substituiria a mercadoria, ou se o cliente quisesse, devolveria o valor correspondente e fim de papo. Seu lema, uma espécie de jargão do tempo em que se pegava mosca com açúcar, chamava a atenção, infundia respeito e passava credibilidade: “cliente satisfeito ou o dinheiro de volta, garantido, tudo justo e perfeito”.

Pelo tempo em que circulei ali pelas imediações da Praça da Sé, nos dias subsequentes, nem sombra do paradeiro do Eutanásio. Topei, contudo, com uma pá de gente ensandecida (os receptores mudos, em sacolas de supermercados), querendo reaver o rico dinheirinho empatado. Sem falar naqueles mais incontrolados, que queriam arrancar o coração da criatura e assar na ponta de um espeto de churrasco.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011

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