segunda-feira, 29 de abril de 2013

Autor Persa Anônimo (O Primeiro Impulso)

Tooriri era um cidadão rico de Bagdá, universalmente famoso por suas virtudes. Não se limitava a assistir aos pobres a ponto de, em vez de levar uma existência das mais luxuosas, viver apenas confortavelmente; escutava com a mais delicada paciência as queixas de todos os sofredores que o procuravam, consolava-os com palavras carinhosas e ajudava-os de todas as maneiras possíveis.

Suportava com resignação as mil e uma pequenas misérias que constituem a maior parte da vida humana. Tolerante em alto grau, não se aborrecia se os outros não lhe partilhavam as opiniões — virtude difícil e rara, pois o desejo secreto de cada homem é que o resto da humanidade lhe seja inferior e, ao mesmo tempo, semelhante.

Casado com uma megera, mantinha-se-lhe fiel, perdoava-lhe o mau gênio, e jamais a fazia sentir que não era nem moça nem bonita. Prosador e poeta, regozijava-se com o êxito dos rivais e manifestava-lhes benevolência e amizade em expressões corteses e sinceras.

Numa palavra, sua vida era toda caridade, gentileza, lealdade e altruísmo, e consideravam-no, ao mesmo tempo, um santo e um perfeito cavalheiro.

Ao seu semblante, porém, faltava a serenidade que por via de regra caracteriza as feições de um santo. Parecia o de uma pessoa agitada por paixões violentas ou roída de secreta angústia. Não raro o viam estacar e baixar os olhos para recobrar o domínio de si mesmo e impedir que lhe adivinhassem os pensamentos. Mas ninguém prestava a isso a menor atenção.

Não longe de Bagdá vivia um eremita por nome Maitreya, autor de numerosos milagres, cuja morada era objeto da veneração de muitos peregrinos. Tendo-se posto acima das contingências do comum da humanidade, Maitreya conservava-se em tamanha imobilidade que as andorinhas vinham a construíam ninhos em seus ombros. A barba, espessa como a cauda das vacas sagradas, chegava-lhe à cintura, e o seu corpo semelhava um tronco de árvore. Vivia assim desde uns noventa anos, pois era este o seu ideal.

Certo dia um peregrino disse na sua presença:
— Tooriri, de tão bom, parece uma encarnação de Ormuzd. Sem dúvida todo o sofrimento desapareceria da face da Terra se um homem destes pudesse fazer tudo quanto quisesse.

Ainda mais rígida se fez a imobilidade de Maitreya. Evidentemente o santo homem entrara em comunicação direta com o próprio Ormuzd. Depois de pensar uns instantes, respondeu ao peregrino:
— Não me é possível alcançar que Ormuzd conceda a Tooriri o poder de realizar todos os seus desejos, pois assim ele se tornaria um deus. No entanto, Ormuzd, em sua bondade, permite que, de amanhã por diante, o primeiro impulso deste santo homem, em todas as circunstâncias de sua vida, se transforme em realidade.
— É quase a mesma coisa! — exclamou o peregrino. — O primeiro impulso de Tooriri, como todos os seus desejos, será generoso e caridoso. Venerável Maitreya, acabais de me anunciar uma nova que há de trazer a ventura a muita gente, e eu vos agradeço.

Se a barba de Maitreya fosse menos impenetrável, poderia o peregrino ter vislumbrado a sombra de um sorriso em seus lábios empedernidos. Mas logo depois ele voltou a abismar-se nas suas eternas cismas.

Tornou à cidade o peregrino, regozijando-se de antemão com os muitos atos de caridade em que se havia de patentear no dia seguinte o poder do sábio Tooriri.

No dia seguinte, Tooriri despertou antes da mulher e fitou-a por um momento. Movida por força misteriosa, ela se levantou, dirigiu-se à janela, galgou o peitoril a precipitou-se, rachando a cabeça no pavimento da rua.

Ao sair de casa, aproximou-se dele um grupo de mendigos a pedir esmola. Não lhes disse nenhuma palavra dura, e automaticamente a sua mão se encaminhou à bolsa; mas, antes de alcançá-la, todos os mendigos lhe caíram mortos aos pés.

Adiante, encontrou a linda Mandaniki, e ele, o sábio, o virtuoso Tooriri, inclinou-se diante dela e acompanhou-a a casa. Ali, a mulher, enquanto lhe contava a história da própria vida e ele a apertava com ternura ao próprio coração, expirou-lhe nos braços.

Mal deixou a residência de Mandaniki, ficou detido numa encruzilhada por certo número de veículos que obstruíam a passagem, e começou a perder a paciência. Nisto, todos os cocheiros caíram das respectivas boléias e todos os cavalos tiveram os tendões cortados como por invisível foice.

À noite foi ele ao teatro, e pôs-se a discutir com o erudito Sarvilaka acerca de um verso atribuído por este a Nizami, e que Tooriri julgava escrito por Saadi, o poeta das rosas. De súbito, o letrado deixou-se cair na sua poltrona e vomitou uma golfada de sangue negro. A comédia representada naquela noite obteve grande êxito, sendo os atores unanimemente aplaudidos. Porém, poucos minutos antes que Tooriri resolvesse aderir ao reconhecimento do mérito do autor, este rendeu a alma ao Criador de maneira total­mente inesperada.

Tooriri voltou para casa horrorizado daquela mortandade geral. Desesperado, incapaz de compreender a razão de tudo aquilo, matou-se, atravessando o coração com um punhal.

Na mesma noite morreu também o santo eremita Maitreya.

Compareceram os dois ao mesmo tempo perante o sábio Ormuzd. O eremita pensava: "Não me seria nada desagradável assistir ao merecido castigo desse falso santo, cuja virtude foi por tanto tempo admirada pelos persas, mas que, num único dia em que pôde mostrar-se tal qual era na realidade, se cobriu de inúmeros pecados e crimes".

Porém o sábio Ormuzd falou assim:

— Virtuoso Tooriri, homem realmente generoso e bom, meu leal e fiel servidor, vem, entra na paz eterna.

— Boa bola! — exclamou o eremita.

— Em momento algum de minha vida falei mais sério — replicou Ormuzd. — Tooriri, desejaste o aniquilamento de tua esposa porque não era bondosa e já não tinha beleza; quiseste a morte dos mendigos porque te importunaram, e seu aspecto era hediondo; a de tua amante, porque era uma tola; o fim dos cocheiros e o extermínio dos cavalos, porque te forçaram a esperar quando tinhas pressa; o desaparecimento do letrado Sarvilaka, porque professava opinião diferente da tua; a do autor da comédia, porque obtivera aplausos maiores que os alcançados por ti. Todos esses desejos eram perfeitamente naturais. Os assassínios de que Maitreya te acusa foram, à tua revelia, efeitos do teu primeiro impulso, porquanto ninguém pode conter o seu primeiro impulso e desejo. Um homem odeia inevitavelmente o que o tolhe, e não menos inevitavelmente deseja o aniquilamento daquilo que odeia. A natureza é egoísta, e o nome do egoísmo é destruição. O mais virtuoso dos homens é, antes de tudo, no íntimo da alma, um patife; e se lhe fosse concedido transformar em realidade o seu primeiro desejo, impulsivo e involuntário, dentro em pouco a Terra se transformaria num deserto, sem nenhum ser humano a habitá-la. Foi o que eu pretendi mostrar, Tooriri, com o teu exemplo: o homem é julgado pelo seu segundo desejo, pois que este depende da sua vontade. Não fora o dom misterioso que, a teu pesar, tornou o teu último dia tão mortífero, tua vida teria continuado virtuosa e caridosa. O que devo considerar em ti não é a tua natureza, mas a tua vontade, que sempre tendeu para o bem e procurou sempre corrigir a tua natureza e aperfeiçoar a minha obra imperfeita. Eis por que, meu colaborador querido, eu hoje escancaro diante de ti a porta do meu paraíso.

— Essa é boa! — exclamou Maitreya. — Que fareis, então, por mim? Que recompensa me reservastes?

— A mesma — replicou Ormuzd —, embora só a tenhas merecido imperfeitamente. Foste um santo, mas, se em tudo deixaste de ser humano, humano foste no teu orgulho. Conseguiste a supressão do primeiro impulso; mas, se todos os homens fossem viver como tu, a humanidade desapareceria da face da Terra ainda mais depressa do que se cada homem possuísse o poder maravilhoso que por um dia infligi a este meu fiel servo. Ora, a mim me convém que a humanidade continue, porque isto me diverte e porque o espetáculo que me oferece chega a ser, às vezes, sublime. O teu esforço, mísero asceta, não era de todo desprovido de certa espécie de beleza, e por isso te perdôo o teu erro crasso. Numa palavra: a Tooriri abro as portas do Paraíso e o acolho em meu seio, porque sou justo; a ti, Maitreya, permito que entres, porque sou generoso.

— Mas... — disse Maitreya.

E Ormuzd, erguendo o austero semblante:

— Tenho dito.

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de Histórias. vol.5. RJ: Nova Fronteira.

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