quinta-feira, 30 de maio de 2013

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n.162 - junho de 2013)

I

Se acaso eu fosse rainha,
dava a você meu reinado;
e, se fosse uma andorinha,
o meu ninho no telhado.
Colombina

A esperança, na viagem,
é ter a felicidade
de chegar junto à miragem,
e a miragem ser verdade.
Élton Carvalho

Muita gente que eu não gabo
lembra a pipa colorida:
– quanto mais comprido o rabo
mais alto sobe na vida!...
Joubert de Araújo e Silva

Os bons vi sempre passar
no mundo graves momentos;
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Luís de Camões

Desconfio que a saudade
não gosta de ti, meu bem.
Quando tu vens, ela vai...
quando tu vais, ela vem...
Luiz Otávio

Isto é próprio das mulheres,
não tem quase nem talvez:
– Nem dizes que não me queres
nem me queres de uma vez...
Luiz Rabelo
 
Do cigarro, a xepa fria
atira com precisão.
Mostra boa pontaria,
mas bem pouca educação.
Adélia Woellner – PR

É sovina a minha amiga:
se vai à feira gastar,
não compra nem uma briga
sem primeiro pechinchar!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Vovó, num desejo enorme
de um milagre conseguir,
por teimosia, não dorme
nem deixa vovô dormir!...
Edmar Japiassú Maia – RJ

Quando, dengosa, tu piscas
os teus olhinhos assim,
não precisas de outras iscas,
esse anzol cuida de mim...
Nélio Bessant – SP
 
O presente desatina
quem cai no conto falaz:
trocar voto por botina
leva sempre um pé por trás.
João B. X. Oliveira – SP

O carro virou paçoca
num acidente invulgar...
– Socorro!, grita a dondoca,
salvem o meu celular!
Maria Ignez Pereira – SP

Tem, por sorte, a fofoqueira
o noivo que lhe interessa:
– é de família açougueira,
e de “língua” entende à beça.
Osvaldo Reis – PR
 
Na noite do seu casório,
sendo um noivo muito antigo,
usou até suspensório,
mas não sustentou o artigo...
Wanda Mourthé – MG
 
Dê-se ao jovem liberdade
para sem medo ele ousar.
– É no ardor da mocidade
que o sonho aprende a voar!
A. A. de Assis – PR

A arte da dança é linda
quando fazemos brilhar
nos passos a graça infinda
de amar quem nos faz sonhar.
Agostinho Rodrigues – RJ

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que as coisas sem valor
pareçam mais do que são.
Amilton Maciel – SP

Tudo acabou em quimera
na tarde chuvosa e fria
e a grande perda me espera
dentro da casa vazia...
Angélica Villela Santos – SP

Paixão, doação, entrega,
cada um sabe da sua;
ninguém vê como se apega,
mas vai pro mundo da lua.
Antonio Cabral Filho – RJ

Vês as ondas deste mar
enormes e violentas?
Igual meu jeito de amar
que com o teu apascentas.
Benedita de Azevedo – RJ

Sempre acolho de mãos postas
e humilde tento aceitar
o silêncio das respostas
que a vida não sabe dar.
Carolina Ramos – SP

Sei quando vais demorar...
Mesmo assim tudo ofereço:
quem espera para amar
paga ao tempo qualquer preço!
Clenir Neves Ribeiro – Austrália
 

A neve nos pinheirais,
nestas paragens do Sul,
forma brincos de cristais
na terra da gralha azul.B
Cônego Telles – PR

Quiero siempre despertar
con trinos por la ventana,
que las aves saben dar
con fervor cada mañana.
Cristina Oliveira Chávez – USA

Não ligo às perdas e danos
que o destino impõe, porque
podem passar dez mil anos
que eu hei de esperar você!
Dáguima Verônica – MG

Anunciou a partida,
dizendo: – “É melhor assim”!
E saiu da minha vida,
levando o melhor de mim...
Darly O. Barros – SP
 

A mensagem foi pequena:
– Não me esperes, por favor!
Não chorei. Não vale a pena
chorar por um falso amor!
Delcy Canalles – RS

Tantos anos, e eu daqui,
cuidei da vida lá fora;
fiquei moço, envelheci...
– Mas estou voltando agora!
Diamantino Ferreira – RJ

Com as “notas” da alegria,
ou “dissonância” sofrida,
Deus compõe a melodia
da partitura da vida.
Domitilla B. Beltrame – SP

Velho tronco, na queimada,
em dolorosa utopia,
sonha ouvir a passarada
que em vida abrigou... um dia.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Bendito seja o sujeito
que, traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Às suas falas dispense
o respeito mais profundo,
que o silêncio nos pertence
mas a palavra é do mundo.
Élbea Priscila – SP

Voa, passarinho, voa,
que gaiola é só maldade.
Livre, lá nos céus entoa
o cantar da liberdade.
Eliana Jimenez – SC

Eu não me prendo à verdade
e à razão sempre me imponho,
porque toda a realidade
antes de tudo foi sonho!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Para amainar meus cansaços,
num fim de tarde que tranço,
busco a rede dos teus braços
meigos laços... meu descanso!
Flávio Stefani – RS

Porteira velha, o gemido
dessa dor que te corrói...
é o teu passado esquecido
que em teu presente inda dói!
Francisco Garcia – RN

Velho – carrego esperanças,
adubando a vida em flor:
quem não cultiva as lembranças
mata as raízes do Amor.
Gabriel Bicalho – MG

Dei-lhe asas de querubim
e as penas do meu penar!...
– Meu coração mesmo assim,
não aprendeu a voar!...
Gisela Sinfrónio – Portugal

Não lembro de ti, passado,
pois consegui te esquecer;
agora só tenho ao lado
os sonhos que vou viver!
Gislaine Canales – SC

Não haverá sociedade
que possa ser construída
sem a fé na humanidade
e o respeito pela vida.
J. B. Xavier – SP

Meu otimismo teimoso
faz-me ver em cada irmão
o seu lado esplendoroso,
em permanente ascensão.
Jeanette De Cnop – PR

No meu sonho mais profundo,
em pensamentos imerso,
eu fui além do meu mundo,
viajei pelo universo.
Jessé Nascimento – RJ

O saber é consagrado,
tem mais valor do que o ter;
o ter pode ser roubado,
mas nunca roubam saber.
João Medeiros – RN

Tanto mal nós infligimos
a um alguém que bem nos queira,
que o perdão que lhe pedimos
é uma nuvem passageira.
José Feldman – PR
 

Sei que deste mundo lindo
vou sair, só não sei quando,
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando.
José Lucas de Barros – RN

Em rondas, meu coração,
tropeçando, aqui e ali,
bate em busca da ilusão
que nem sei onde perdi !
José Messias Braz – MG

Quando se tem por escopo
o trabalho e a persistência,
marcar presença no topo
deixa de ser coincidência!
José Ouverney – SP

Sendo a vida a maior graça
que do bom Deus recebemos,
ergamos a nossa taça
enquanto vida nós temos.
José Reinaldo – AL

Se a roseira tem espinho,
para que se aborrecer?
Nada resiste ao carinho,
mesmo podendo sofrer...
José Roberto P. de Souza – SP

Todo homem tem na mulher
um mistério a desvendar:
– sempre ela sabe o que quer,
mas nem sempre quer falar!...
Lucília Decarli – PR
 

Na tessitura do sonho,
vou cortar, sem mais tardança,
esse nó górdio que imponho
a um amor sem esperança.
Luiz Carlos Abritta – MG

Pode ir embora, querida...
Que eu guardo a dor compulsória
de ter que arrancar da vida
quem tatuei na memória.
Manoel Cavalcante – RN

Tem seu momento assinado,
desde o ventre, o filho arteiro:
um gol à vida marcado,
naquele chute primeiro!
Mª da Conceição Fagundes – PR

Ao clamor da liberdade,
tremem os reis e as nações,
porque a força da verdade
tem mais força que os canhões!
Mª Lúcia Daloce – PR

Na travessia das águas
ronda a grande solidão...
Não há sorrisos nem mágoas,
o que me ronda é a paixão.
Mª Luíza Walendowsky – SC

Pela ambição desmedida,
fiz da vida uma procela,
até descobrir que a vida,
quanto mais simples, mais bela.
Mª Madalena Ferreira – RJ

Quando você me critica
e aos amigos faz venenos,
o seu próprio gesto indica
qual de nós dois vale menos.
Maria Nascimento – RJ

Se de novo o amor palpita,
o velho se faz criança...
E como a vida é bonita
no retorno da esperança!
Mª Thereza Cavalheiro – SP
 

Sobre as vagas do oceano,
voando num céu de anil,
sinto alegria e me ufano
de estar voltando ao Brasil!
Marina Valente – SP

Já chorei demais por ela
sem que tenha merecido...
Hoje as lágrimas são dela
por eu já tê-la esquecido.
Maurício Cavalheiro – SP

Beijando, a brisa, meu rosto,
meiga, me faz relembrar,
com saudade e muito gosto,
o amor que pude lhe dar.
Maurício Friedrich – PR

Viajei pelo mundo inteiro
e nunca mais pude achar
o que no instante primeiro
encontrei no seu olhar.
Olga Agulhon – PR

Tua imagem refletida
no espelho de nosso quarto
mostra a saudade sentida,
que só contigo eu reparto...
Olga Ferreira – RS

Se todos fossem iguais,
o que seria da gente?
– Eu posso ser um a mais,
mas você é diferente
Raymundo Salles Brasil – BA

Sob a chuva ou sol, que abrasa,
como nos tempos antigos,
o portão da minha casa
não se fecha aos meus amigos!
Renato Alves – RJ

Um coração congelado
pega fogo, de repente,
quando o amor – fósforo alado,
risca faíscas na gente!....
Roza de Oliveira – PR

De manhã sou funcionária,
à tarde mãe e chofer,
cozinheira, secretária...
À noite, enfim, sou mulher!
Selma Patti Spinelli – SP

Do sonho compartilhado,
agora, somente resta
um convite, amarelado,
marcando o dia da festa...
Sérgio Ferreira da Silva – SP

Não me culpe se a partilha
da sorte lhe foi mesquinha.
Se a sua estrela não brilha,
não tente apagar a minha.
Thalma Tavares – SP

Este amor que, em vão, mascaro,
pois o estampo em rosto mudo,
em silêncio eu te declaro...
Sem palavras, digo tudo!
Thereza Costa Val – MG

A travessia é mais triste
se, no meio do caminho,
nossa esperança desiste
e a gente segue sozinho.
Therezinha Brisolla – SP

Causador da minha insônia,
motivo do meu sorriso,
sem nenhuma cerimônia
me transporta ao paraíso!
Vânia Ennes – PR

O homem vai, sem detença;
rompe os ares, vence espaços!...
A esperança é que ele vença
o desamor em seus passos.
Wagner Marques Lopes – MG

O tempo passou... e agora
já é mais que entardecer,
mas tua presença é aurora
na noite do meu viver.
Zeni de Barros Lana – MG

domingo, 19 de maio de 2013

XXVI Jogos Florais de Ribeirão Preto (Nacional - Resultado Final)

TEMA NACIONAL: MURALHA

CATEGORIA: VENCEDOR
(Troféu)


1º LUGAR

O meu bom senso não cede
a um desejo extravasado...
É a muralha que me impede
seguir um caminho errado!
MARILÚCIA REZENDE
São Paulo/SP

2º LUGAR

Ante os revezes da estrada,
eu só permaneço em pé,
por ter a vida cercada
pela muralha da fé.
MAURICIO CAVALHEIRO
Pindamonhangaba/ SP

3º LUGAR

É muito triste esta vida
de quem implora por pão
e enfrenta a muralha erguida
por quem não tem coração...
IZO GOLDMAN
São Paulo/ SP

4º LUGAR

Para acabar com a guerra,
que traz luto aos corações,
basta que caía por terra
a muralha entre as nações.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/ MG

5º LUGAR

Devemos manter vigília
contra o mal aliciador
blindando nossa família
com a muralha do amor.
MAURICIO CAVALHEIRO
Pindamonhangaba/ SP

CATEGORIA: MENÇÃO HONROSA
(Medalha Dourada)

1º LUGAR

Para vencer a batalha,
por um viver mais profundo,
se há de transpor a muralha,
dos desenganos do mundo...
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY
Natal/ RN

2º LUGAR

Esta muralha que ergueste,
depois de acabado o amor,
sem querer me ofereceste
um mundo cheio de cor!...
MARICLAIRE REZENDE MITNE
Londrina/ PR

3º LUGAR

Ante a muralha não paro
e com fé transponho o muro;
na vida só chega ao claro
quem não tem medo do escuro.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/ MG

4º LUGAR

A “muralha” mais temida
é o desprezo que se tem
desgastando a nossa vida
pelos caprichos de alguém.
RUTH FARAH NACIF LUTTERBACK
Cantagalo/ RJ

5º LUGAR

Seja alegre ou seja triste,
a saudade, simplesmente,
quebra a muralha que existe
entre o passado e o presente!
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

CATEGORIA: MENÇÃO ESPECIAL
(Medalha Prateada)


1º LUGAR

Eu não temo o que amealha
as pedras do ódio e rancor,
por crer que qualquer muralha
cede... ante a força do amor!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

2º LUGAR

Enfim eu pude transpor,
até com certa altivez,
essa muralha no amor
que se chama timidez.
ANTONIO CARLOS RODRIGUES
Rio de Janeiro/RJ

3º LUGAR

Teu abraço me agasalha
com carinho tão profundo...
sinto em volta uma muralha,
separando-nos do mundo!...
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo/SP

4º LUGAR

Vence sempre quem labuta.
um mais tarde, outro mais cedo,
e este é o que, antes de ir à luta,
vence a muralha do medo.
JAIME PINA DA SILVEIRA
São Paulo/SP

5º LUGAR

Há, na vida, uma batalha
- parece-me sem igual –
É verdadeira muralha:
a “batalha conjugal”.
DJALDA WINTER SANTOS
Rio de Janeiro/RJ

TROVAS HUMORÍSTICAS

TEMA: CERCA

VENCEDORES (troféu)


1. lugar 

Na cerca ficou provado,
o adultério de Rosinha,
ficou no arame farpado
um pedaço da calcinha.
LUIZ HENRIQUE DOS SANTOS
Pindamonhangaba/SP.

2. lugar

Pular cerca é mau caminho
mas é coisa prazerosa,
pois a fruta do vizinho
sempre é muito mais gostosa.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/MG.

3. lugar

A cerca sempre pulando
e a esposa nada falava,
acabou desconfiando...
viu que ela também pulava.
FLAVIO FERREIRA DA SILVA
Nova Friburgo/RJ

4. lugar

Ao dar tudo o que ela quer,
a evitar que o amor se perca,
o corno cerca a mulher
mas a mulher pula a cerca.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/ MG

5. lugar

Sem que nada mais se perca,
nosso amor não tem futuro:
Ela vai pulando a cerca
e eu venho pulando o muro...
SÉRGIO FONSECA
Mesquita/ RJ.

MENÇÕES HONROSAS

1. lugar

Manter a mulher fechada
para que ela não se perca,
não vai adiantar de nada,
pois pode pular a cerca!
JOSÉ MARQUES
Bauru/ SP

2. lugar
“Pular cerca? Isso eu não faço!”
e a vizinha, em ato esperto,
aumenta seu embraço,
deixando o portão... aberto!
JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba/ SP

3. lugar

Vendo a vizinha chegar,
ouvindo a porta bater,
Meu amigo, sem pensar,
pulou a cerca e foi ver...
DARI PEREIRA
Maringá/ PR

4. lugar

Ao ver, na cerca, a viuvinha
usando roupa sumária,
diz o esposo da vizinha:
-Que mulher extra...ordinária!!!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

5. lugar

Desde jovem, muito afoita,
com um, não se contentava;
Já casada, mas na moita,
Sempre ela a cerca pulava.
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/ RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

Pra que a filha não se “perca”,
meu vizinho fica alerta...
De que vale “fazer cerca”
pra quem tem porteira aberta?!
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo/ SP

Em lugar de dar vexame
sobre a cerca do rival,
melhor reforçar o arame
da cerca do teu quintal...
ANTÔNIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/ PR

No carnaval, animada,
pulou a cerca e assumiu,
deu uma sorte danada,
“Tava” escuro... ninguém viu.
DENISE CATALDI
Condominio Maravista/ RJ

Pulou a cerca a Maria,
mas foi um caso bem sério
Porque ela não sabia
Que ia dar no cemitério
MARINA DE OLIVEIRA DIAS
São Gonçalo/ RJ

Fonte:
Nilton Manoel

sábado, 18 de maio de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Reticências


Encontrei-me hoje no bonde, depois do almoço, com o Nicolau Coelho. Como eu lhe dissesse, um dia, que lera com prazer a sua crônica sobre finados, desse dia em diante se aproximou de mim, e não me vê sem que me venha apertar a mão. Ainda hoje pagou a minha passagem. 

Conheço Nicolau desde menino, fui amigo de seu pai, professor gratuito de um dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar de cortesias comigo. Passei a ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei uma crônica, a ele que tantas e tão aplaudidas tem escrito, a ele carregado de glórias. 

Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e desfechou-se de lá. Sacou de cinco tiras de papel e disse, com modéstia: 

-"Isto é curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opinião." 

Fixei os meus olhos nos seus. 

-"Precisa da minha opinião?" 

-"Sim pois..." 

-"Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião vale?" 

-"Muito." 

-"Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atenção." 

-"Mas, eu tenho de levar o original à folha. É curtinho. Lerá num momento." 

Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável e constante, harmonia de forma, harmonia de fundo, feitas de pequenas audácias de pensamento e de expressão, difíceis de orquestrar. Notei apenas um exagero de sinais sintáticos, travessões, virgulas, pontos-e vírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências. 

O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não ser quando entram, num sistema personalíssimo de notações, compreensível em certos indivíduos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessárias para indicar suspensão ou transição inesperada. Mas este costume de derramar ao pé de cada período uma série de pontinhos, para denotar que a frase é aguda, que ali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundidade 

-não, não. 


O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe deixar o gosto de descobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores velados. E depois o autor acaba por botar reticências em tudo, porque é difícil que um autor não veja coisas a realçar em cada um dos seus períodos. Afinal, a função dos pontinhos desaparece, e onde eles não estão é que a gente vai ver se desentoca o melhor. 

A mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio pensamento. Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da claridade e da justeza, lá vem o prazer vicioso do equívoco, do ambíguo, do flutuante. 

Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes pois uma boa forma de notação, hoje indispensável. Mas o fato é que a estreiteza do sistema de suplementares da palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os recursos únicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez de pôr um sinal de ironia tinham de açacalar a ironia através da rede dos períodos. Em vez de indicar com que óculos cinzentos ou vermelhos se havia de ler o capítulo ou a página, davam à página ou ao capitulo a tonalidade sentimental ou mental conveniente. Era o processo direto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo. 

Podiam falecer-lhe a este as flexibilidades e esfumaturas da sensibilidade moderna, mas ainda isso era uma vantagem, porque era uma disciplina. O escritor havia de se resignar, por muito indeciso e ondulante que tivesse o espírito, ao freio de um métier e havia de viver perpetuamente em busca do límpido, do incisivo, do luminoso. Nunca se entregava senão a construções de pensamento com uma classificação e um fim. Toda a sua aspiração era fabricar obras acabadas, portáteis, que representavam aquisições (como diz Emerson a propósito já não lembra de que autor) coisas que se poderiam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa como um utensílio, como uma jóia, como uma fruta. 

Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo valor não deixei de tomar para estribilho. Guardou os originais, acendeu um cigarro e perguntou, com um sorriso reticente: 

-"Então, só um excesso de... pontinhos?" 

"Só, Nicolau, só. Mas isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo! é talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo um desses escritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo seguido de uma secreção de pontinhos, tenho logo a idéia de uma desfilada de cabritos. 

"Mas, pensando bem, penso que um escritor moço precisa de ter certa porção de cacoetes e singularidades, até de erros, dentro de certo limite porque tudo isto serve exatamente de lhe dar um ar de viçoso verdor e de divinatória inexperiência, a graça do gênio ainda ignorante de si próprio, todo em flor e esperança. 

"As pequenas carepas envolvem uma promessa festiva de aperfeiçoamento ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperidades da superfície, deixa ver melhor as imperfeições essenciais da matéria e da construção. 

"Esses cacoetes, essas singularidades, esses descuidos constituem uma garantia para o escritor. Ninguém suspeita nele um gramático, um espírito peco e miúdo, preocupado com a língua e outras superfluídades peróbicas. Perdoam-lhe por simpatia, numa absolvição geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a perpetrar. Ao passo que os escritores corretos dão ganas a todo o mundo de lhes descobrir trincas e manchas. 

E isto sempre se consegue: a correção é uma zona ideal de equilíbrio instável..." 

Ia eu assim dissertando, alheio ao bonde e ao tempo, quando uma brecada instantânea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bonde havia pegado uma carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seus dois animais, a três metros de distância. 

A carroça adernara, com uma das rodas meio fora do eixo, e os burros, presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, com estremeções espaçados de toda a courama. 

O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão, raspara a poeira e se estatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as mãos meio enclavinhadas, o peito a arquejar sob a camisa aberta. 

Magotes de curiosos iam e vinham enquanto dois homens de maior iniciativa tratavam de recolher a vítima a uma casa próxima e de levantar os animais. 

Válidos, prestantes bons homens! Surgiram de repente da massa amorfa, como os que sabemquerer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestável distraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas uma humilhação! 

Depois, que, vinda a polícia e o carro da assistência, o bonde pôde continuar a viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido, explicavam o desastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto, com a visão pasmada daquele homem caído no chão, a derramar sangue na poeira, e do triste do motorista que parecia fulminado de estupor, na balorda prostração do animal tocado de raio. 

Nicolau catucou-me de repente no braço. Voltei-me para ele como quem despertava. 

-"Mas!... quer que lhe diga?" (recomeçou) "não estou de acordo com o senhor." 

E tinha um arzinho entre provocador e mofento. 

-"Comigo?! Em que?!..." 

- "Nesse negócio de reticências. A mim me parecem indispensáveis. A questão está naquilo que se pretende dizer ou sugerir." 

E por aí foi, a traçar com o indicador o desenho dos argumentos. Dei-lhe sempre razão até o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim, sim!" 

Afinal, disse um adeus veloz a esse espírito gentil e corri a um café, onde fui tomar a minha xícara em silêncio e em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meu perene diálogo comigo mesmo -com o único indivíduo que não se aborrece quando o contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando o não quero contrariar. 

Alcântara Machado (Carmela)


Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.

 A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.

 - Espia se ele está na esquina.

 - Não está.

 - Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.

 - Que fiteiro!

 O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.

 - Ai que rico corpinho!

 - Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!

 Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.

 Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira. 

 - Olha o automóvel do outro dia.

 - O caixa-d'óculos?

 - Com uma bruta luva vermelha.

 O caixa-d'óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.

 - Pode passar.

 - Muito obrigada.

 Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.

 - Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!

 Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.

 - O Ângelo!

 - Dê o fora.

 Bianca retarda o passo.

 Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.

 - Já acabou o romance?

 - A madama não deixa a gente ler na oficina.

 - É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.

 - Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!

 - Enjoada!

 Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.

 - Quem é aquele cara?

 - Como é que eu hei de saber?

 - Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!

 Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.

 - Boa tarde, belezinha...

 - Quem? Eu?

 - Por que não? Você mesma...

 Bianca rói as unhas com apetite.

 - Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?

 - Ao lado de minha casa.

 - Onde é sua casa?

 - Não é de sua conta.

 O caixa-d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.

 - Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.

 - Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4. Carmela mora com a família dela no 5.

 - Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?

 Bianca rói as unhas.

 - Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... na.... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.

 - Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!

 - É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as oito horas, atrás da igreja.

 - Vá saindo que pode vir gente conhecida.

 Também o grilo já havia apitado.

 - Ele falou com você. Pensa que eu não vi?

 O Ângelo também viu. Ficou danado.

 - Que me importa? O caixa-d'óculos disse que espera você amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.

 - Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!

 - Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.

 - Ele disse?

 - Gosta pra burro.

 - Não vou na onda.

 - Que fingida que você é!

 - Ciao.

 - Ciao.

 Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2.0

 Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.

 Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:

 - Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!

 E - raatá! - uma cusparada daquelas.

 - Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.

 - Trouxa. Que tem?

 No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d'óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:

 - Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba aqui.

 Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.

 - Só com a Bianca...

 - Não. Para quê? Venha você sozinha.

 - Sem a Bianca não vou.

 - Está bem. Não vale a pena brigar por isso.

 - Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.

 - Mas cinco minutos só. O senhor falou...

 - Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.

 Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.

 Só pára no Jardim América.

 Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.

 - Xi, quanta cousa pra ficar bonita!

 - Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.

 - Que é?

 - Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.

 - Pirata!

 - Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.

 - É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.

 - Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.

 - Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.

 Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.

 - Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?

 - Andiamo.

 Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.

 Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.

 - E o Ângelo, Bianca?

 - O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.

 - Há!…

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Manuel Alegre (Caravela da Poesia)

Manuel Alegre de Melo Duarte (Águeda/ Portugal, 12 de Maio de 1936)

AS MÃOS

 Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
 Com mãos tudo se faz e se desfaz.
 Com mãos se faz o poema - e são de terra.
 Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
 Não são de pedras estas casas, mas
 de mãos. E estão no fruto e na palavra
 as mãos que são o canto e são as armas.

 E cravam-se no tempo como farpas
 as mãos que vês nas coisas transformadas.
 Folhas que vão no vento: verdes harpas.

 De mãos é cada flor, cada cidade.
 Ninguém pode vencer estas espadas:
 nas tuas mãos começa a liberdade.

O PRIMEIRO SONETO DO PORTUGUÊS ERRANTE

Eu sou o solitário o estrangeirado
o que tem uma pátria que já foi
e a que não é. Eu sou o exilado
de um país que não há e que me dói.

Sou o ausente mesmo se presente
o sedentário que partiu em viagem
eu sou o inconformado o renitente
o que ficando fica de passagem.

Eu sou o que pertence a um só lugar
perdido como o grego em outra ilíada.
Eu sou este partir este ficar.

E a nau que me levou não voltará.
Eu sou talvez o último lusíada
em demanda do porto que não há.

ÚLTIMA PÁGINA

Vou deixar este livro. Adeus.
Aqui morei nas ruas infinitas.
Adeus meu bairro página branca
onde morri onde nasci algumas vezes.

Adeus palavras comboios
adeus navio. De ti povo
não me despeço. Vou contigo.
Adeus meu bairro versos ventos.

Não voltarei a Nambuangongo
onde tu meu amor não viste nada. Adeus
camaradas dos campos de batalha.
Parto sem ti Pedro Soldado.

Tu Rapariga do País de Abril
tu vens comigo. Não te esqueças
da primavera. Vamos soltar
a primavera no País de Abril.

Livro: meu suor meu sangue
aqui te deixo no cimo da pátria
Meto a viola debaixo do braço
e viro a página. Adeus.

SOBRE UM MOTE DE CAMÕES

Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.

Deixo a dor de te deixar
na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.

Nem amor pode ser livre
se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.

E levo a terra que deixo
onde deixo a dor que tive.
Na que levar levarei
este amor que é livre livre.

ILHA DE COS

Eu sabia que tinha de haver um sítio
Onde o humano e o divino se tocassem
Não propriamente a terra do sagrado
Mas uma terra para o homem e para os deuses
Feitos à sua imagem e semelhança
Um lugar de harmonia
Com sua tragédia é certo
Mas onde a luz incita à busca da verdade
E onde o homem não tem outros limites
Senão os da sua própria liberdade

AS MÃOS

 Com mãos se faz a paz se faz guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

 E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

 De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

O HOMEM SENTADO À MESA
 
Eis o homem sentado à mesa
Diante da folha branca.
Um longo, longo caminho,
Da vida para a palavra.

Decantação, purificação
Para chegar ao pássaro.

O homem que está à mesa
Atravessou muitos desertos
Virou do avesso a certeza
Naufragou nos mares do sul.

Entre ditongo e ditongo
Para chegar ao pássaro
Tu próprio terás de ser
Cada vez mais substantivo.

Irás de sílaba em sílaba
Ferido por sete espadas
Diante da folha branca
Serás fome e serás sede
Como o homem que está à mesa,

O homem tão despojado
Que a si mesmo se transforma
No pássaro que busca a forma.

Este é tempo do homem
perdido na multidão
Como ser desintegrado
Na folha branca da cidade.

Tempo do homem sentado
À mesa da solidão.

Há palavras como asas,
outras mais como raízes

O pássaro voa por dentro
Do homem sentado à mesa.
Vai de fonema em fonema
Sobre as cordas dos sentidos.
 
Se vires o homem que passa
Como se fosse no ar
Já sabes: é o homem que está
Diante da folha branca.
 
Às vezes levanta vôo
Para outro espaço, outro azul
E deixa dentro das sílabas
Um rastro como de sul.
 
Quando recordas,
Quando a tristeza
toca demais as cordas do coração
 
Quando um ritmo começa
Dentro das palavras,
 
Um sapateado inconfundível
(Malagueña, malagueña!)
E a folha branca é uma Espanha
Para cantar, para dançar
Para morrer entre sol e sombra
Às cinco em sangue...
 
Então verás chegar
O homem sentado à mesa
Às cinco en sombra de la tarde
Malagueña, Malagueña!
Diante da folha branca
Como por terras de Espanha.
 
Nos descampados deste tempo
Nos aeroportos auto-estradas
Nos anúncios sob as pontes
Talvez no marco geodésico
 
No fumo do lixo ardendo
No cheiro do alcatrão
Nos dejectos de lata e plástico
Nos jornais amarrotados
Nas barracas sobre a encosta
Na estrutura de betão
Sobre o gasóleo e a tristeza
Sobre a grande poluição
Onde nem folha ou erva cresce
 
Seco, duro, estéril tempo
Diante da folha branca
Da solidão suburbana
Onde a multidão se perde
Entre tristeza e tristeza
 
Às vezes um coração:
Talvez um pássaro verde
Ou talvez só a canção
Do homem sentado à mesa
 
O homem que está à mesa
Tem qualquer coisa que escapa
Qualquer coisa que o faz ser
Ausente quando presente
 
Às vezes como de mar
Às vezes como de sul
 
Um certo modo de olhar
Como atravessando as coisas
Um certo jeito de quem
Está sempre para partir.
 
O homem sentado à mesa
Não está sentado: caminha
Navega por sobre os mares
Ou por dentro de si mesmo.
 
Vem de longe para longe
Do passado para agora
De agora para amanhã
Está no avesso da hora!
 
Solta o pássaro, não pára,
Tem outro espaço, outro azul
Às vezes como de mar
Às vezes como de azul
 
E não se tem a certeza se está do lado de cá
Ou se está do outro lado, deste lado onde não está.
Mesmo se sentado à mesa
Não é possível detê-lo
O homem que tem um pássaro
É sempre um homem que passa.
 
Tem qualquer coisa que nem se sabe
O quê nem de quem
 
É talvez um mais além
Algo que sobe e que voa
Entre o Aqui e o Ali
Algo que não se perdoa
Ao homem quando ele tem
Um pássaro dentro de si...
 
Há um tocador a tocar
As harpas de cada sílaba
 
Diante da folha branca
Tudo é guitarra e surpresa.
 
Escutai o pássaro e o canto
Do homem sentado à mesa!

TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/portugal/manoel_alegre.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/alegre.html
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/alegre.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 31. Um Fio de Cabelo

Aquela moça espigada que entrou no bonde com o ímpeto ágil de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível de uma pequena tragédia.

Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe de mim que sentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como um cacho de flores de resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta de uma girl esportiva e a despachada simplicidade de um rapaz. Tirou a espécie de boina que trazia na cabeça, agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, de leve, como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro salto de gafanhotinho brincalhão.

Jeunesse de visage et jeunesse de coeur!

Quando cheguei a casa, tinha no ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia deixá-lo cair quando eu, não me podendo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicação. Não lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha de Cádis, para não lhe deixar a impressão de estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.

Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicácia, de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de reflexão em reflexão achei-me de repente imerso, mal sustendo a cabeça de fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia humana.

E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que deixa cair, não esteve longe de ser causa de um desaguisado doméstico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de mãos e numa dança de dedos leve e aérea como um gorjeio, poderia estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca longínqua.

Ai! por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios que ela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir.

Não há pior acidente do que ocupar um lugar no espaço. Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguém como o raio destruidor partindo do punho de Arimã. Vivemos assim uma eterna e terrível mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia do terror difuso e permanente.

Fonte:
Domínio Público

Charles Dickens (Horácio Sparkins) Parte II, final

- Faltam cinco para as cinco - disse o Sr. Malderton consultando o relógio. - Espero que ele não nos desiluda.

 - Ei-lo! - exclamou a Senhorita Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.

 Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.

 A porta da sala abriu-se.

 - O Sr. Barton - anunciou a criada.

 - Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?

 - De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!

 - Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela - num formidável cavalo preto!

 Lá vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O Sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do Sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidades. O Sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.

 - É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o Sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.

 - Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade - , não precisamente.

 - Quem é, então?

 - Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.

 Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.

 - Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton - queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.

 Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o Sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.

 O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Senhorita Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o Sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensões de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".

 - Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.

 - Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.

 - Ah espero que S. Exa. esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.

 Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.

 - bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.

 - Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.

 Era tocar em assunto perigoso.

 - Por falar em negócios - interveio o Sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...

 - Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.

 - Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...

 - Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.

 - Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira - , sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!

 - Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - um copo de vinho?

 - Com o maior prazer, meu senhor.

 - O prazer é todo meu.

 - Obrigado.

 - Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado - uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.

 - E a mim também - disse o Sr. Frederico.

 Horácio inclinou a cabeça graciosamente.

 - Por favor, Sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.

 As moças sorriam tolamente.

 - O homem - respondeu Horácio - , o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical - , o homem sem a mulher, estaria sozinho.

 - Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.

 - Eu também - acrescentou a Senhorita Teresa.

 Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.

 - Pois bem, na minha opinião... - disse o Sr. Barton.

 - Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente - e discordo de você.

 - Como? - perguntou o comerciante, espantado.

 - Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor - mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.

 - Mas eu queria dizer...

 - Você nunca poderá me convencer - afirmou o Sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.

 - Pois eu - disse o Sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do Sr. Sparkins.

 - Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?

 - Aí está - disse Flamwell.

 - Sem dúvida - concordou o Sr. Malderton.

 - Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.

 - Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.

 - Pelo menos esta dedução me parece lógica e justa.

 - Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.

 - Talvez esteja - disse o Sr. Frederico. - Não o percebi logo.

 - Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante - , mas suponho que tudo esteja certo.

 - Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.

 - É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.

 Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o Sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.

 - Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade - suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.

 - N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.

 - Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.

 - Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.

 Assim, a questão estava resolvida no espírito do Sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.

 - Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.

 Ninguém respondeu.

 - Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.

 - Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.

 - Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.

 - Bem, Tom - disse o tio bondoso - , não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.

 O Sr. Malderton tossiu com violência. O Sr. Barton quis concluir:

 - Pois se um homem está acima dos seus negócios...

 A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.

 - Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga - conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?

 - Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.

 - O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.

 Depois, murmurou confidencialmente ao Sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:

 - Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.

 - Não há dúvida.

 O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o Sr. Barton caído em sono profundo, o Sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.

 A Senhorita Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o Sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo Sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o Sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.

 Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O Sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote 48.

 - Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Senhorita Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o Sr. Malderton.

 - É dia de vencimento - sussurrou.

 No dia seguinte a carruagem encontrava-se às doze horas na porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins & Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o Sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setas com minúsculos "três quartos de pêni" ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; "cinqüenta mil e trezentos estolas de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e toda espécie de mercadorias a cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.

 - Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Senhorita Teresa. - Que diria o Sr. Sparkins se nos visse?

 - Com efeito, que diria! - concordou a Senhorita Mariana, horrorizada com a idéia.

 - Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.

 - Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.

 - Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?

 - Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.

 - Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.

 Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Senhorita Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!

 "Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subseqüente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver - transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de três semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.
FIM