domingo, 5 de maio de 2013

Tomás Antônio Gonzaga (Marília de Dirceu)

  
  É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa - 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo."

    Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : "Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores".

    Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

    A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

    Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

    Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

    Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

    A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

    Temas e formas

    I

    1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
    2  que viva de guardar alheio gado,
    3  de tosco trato, de expressões grosseiro,
    4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
   5  Tenho próprio casal e nele assisto;
    6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
    7  das brancas ovelhinhas tiro o leite
    8 e mais as finas lãs, de que me visto.

    9 Graças, Marília, bela,
    10  graças à minha estrela!
   
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
    12    dos anos inda não está cortado;
    13    Os pastores que habitam este monte
    14 respeitam o poder do meu cajado.
    15    Com tal destreza toco a sanfoninha,
    16    que inveja até me tem o próprio Alceste:
    17    ao som dela concerto a voz celeste,
    18    nem canto letra que não seja minha.

    19 graças, Marília bela,
    20   graças à minha estrela!

    Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

    1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro", “gado”, “ovelhinhas”, “fonte", “pastores”, “monte”, “cajado”.

    2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

    3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

    Que prazer não terão os pais ao verem
    Com as mães um dos filhos abraçados;
    Jogar outros a luta, outros correrem
    Nos cordeiros montados!
    Que estado de ventura!

    4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

    II

    A minha amada
    é mais formosa
    que branco lírio,
    dobrada rosa,
    que o cinamomo,
    quando matiza
    co’a folha a flor:
    Vênus não chega
    ao meu amor.

    Vasta campina,
    de trigo cheia,
    quando na sesta
    co vento ondeia,
    ao seu cabelo,
    quando flutua,
    não é igual.
    Tem a cor negra,
    mas quanto val!
    (...)

    III

    (...)

    Aqui um regato
    corria, sereno,
    por margens cobertas
    de flores e feno;
    à esquerda se erguia
    um bosque fechado;
    e o tempo apressado,
    que nada respeita,
    já tudo mudou.

    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    o mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

    6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

    IV

    Tu não verás, Marília, cem cativos
    tirarem o cascalho e a rica terra,
    ou dos cercos dos rios caudalosos,
    ou da minada serra.
    Não verás separar ao hábil negro
    do pesado esmeril a grossa areia,
    e já brilharem os granetes de oiro
    no fundo da batéia.

    Não verás derrubar os virgens matos,
    queimar as capoeiras inda novas,
    servir de adubo à terra a fértil cinza,
    lançar os grãos nas covas.
    Não verás enrolar negros pacotes
    das secas folhas do cheiroso fumo;
    nem espremer entre as dentadas rodas
    da doce cana o sumo.

    (...)

      V

    Com os anos, Marília, o gosto falta,
    e se entorpece o corpo já cansado:
    triste, o velho cordeiro está deitado,
    e o leve filho, sempre alegre, salta.
    A mesma formosura
    é dote que só goza a mocidade:
    rugam-se as faces, o cabelo alveja,
    mal chega a longa idade.

    Que havemos de esperar Marília bela?
    que vão passando os florescentes dias?
    As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
    e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
    Ah! não, minha Marília,
    aproveite-se o tempo, antes que faça
    o estrago de roubar ao corpo as forças,
    e ao semblante a graça!

    7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

    8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

       VI

    Porém se os justos céus, por fins ocultos,
    em tão tirano mal me não socorrem,
    verás então que os sábios,
    bem como vivem, morrem.
    Eu tenho um coração maior que o mundo,
    tu, formosa Marília, bem o sabes:
    um coração, e basta,
    onde tu mesma cabes.

    9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

    Aqui Marília tem cabelos pretos:

    VII

    (...)

    Os seus compridos cabelos,
    que sobre as costas ondeiam,
    são que os de ApoIo mais belos,
    mas de loura cor não são.
    Têm a cor da negra noite,
    e com o branco do rosto
    fazem, Marília, um composto
    da mais formosa união.

    (...)

    Aqui tem cabelos loiros:

    VIII

    (...)

    Os teus olhos espalham luz divina,
    a quem a luz do sol em vão se atreve;
    papoila ou rosa delicada e fina
    te cobre as faces, que são cor da neve.
    Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
    teu lindo corpo bálsamos vapora.
    (...)

    Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

    IX

    Ama a gente assisada  (1)
    a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
    que ponha uma ação destas (2)
    nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3)
    E quando a comissão lhe confiasse,
    não tinha pobre soma,
    que por paga ou esmola lhe mandasse?

    X

    O mesmo autor do insulto
    mais a riso do que a terror me move;
    deu-lhe nesta loucura,
    podia-se fazer Netuno ou Jove.
    A prudência é tratá-lo por demente;
    ou prendê-lo, ou entregá-lo,
    para dele zombar a moça gente.

NOTAS:
(1) ajuizada
(2) a Inconfidência
(3) Tiradentes

Fonte:
Passeiweb

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