quarta-feira, 26 de junho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 3

Entre os novos alunos, que entraram no seguinte ano para o colégio do Dr. Mosquito, vinha um, que se chamava Teobaldo Henrique de Albuquerque. Menino de doze anos, muito bonito, elegante e criado com mimo. Falava melhor o inglês e o francês do que a sua própria língua, porque estivera mais tempo em Londres do que no Brasil.

O tipo desta criança fazia um verdadeiro contraste com o do Coruja. Era débil, espigado, de uma palidez de mulher; olhos negros, pestanudos, boca fidalga e desdenhosa, principalmente quando sorria e mostrava a pérola dos dentes. Todo ele estava a respirar uma educação dispendiosa; sentia-se-lhe o dinheiro na excelência das roupas, na delicada escolha de perfumes que a família lhe dava para o cabelo e para o lenço, como em tudo de que se compunha o seu rico enxoval de pensionista.

Criança como era, já falava de coisas que o outro nem sonhava ainda; tinha já predileções e esquisitices de gosto; discutia prazeres, criticava mulheres e zombava dos professores sem que estes aliás se dessem por achados, em razão dos obséquios pecuniários que o colégio devia ao pai de Teobaldo, o Sr. Barão do Palmar. Não obstante, esses mesmos dotes e mais sua estroinice de menino caprichoso, sua altivez natural e adquirida por educação abriam em torno dele o ódio ou a inveja da maior parte dos condiscípulos. Logo ao entrar no colégio, fizera muitos inimigos e, pouco depois, era tido e julgado como o mais embirrante e o mais insuportável entre todos os alunos do Dr. Mosquito.

Não lhe perdoavam ser ao mesmo tempo tão rico, tão formoso, tão inteligente e tão gentilmente vadio. Além de tudo isso, como se tanto já não bastava, havia ainda para o fazer malquisto dos companheiros aquela escandalosa proteção que lhe votavam os professores, apesar da formidável impertinência do rapaz. Em verdade a todos falava. Teobaldo com uma sobranceria ofensiva e provocadora. No seu modo de olhar, no tom da sua voz, no desdém de seus gestos, sentia-se a uma légua de distância o hábito de mandar e ser obedecido.

Esta constante arrogância, levava ao supremo grau, afastou de junto dele todos os seus condiscípulos. Mas o orgulhoso não parecia impressionar-se com o isolamento a que o condenavam as suas maneiras, e, se o sentia, não deixava transparecer em nenhum dos gestos a menor sombra de desgosto. Ninguém o queria para amigo.

Um domingo, porém, ao terminar o almoço, ouviu dentre um certo grupo de seus colegas uma palavra de ofensa, que lhe era dirigida. Voltou-se e, apertando os olhos com um ar mais insolente que nunca, exclamou para o grupo:

— Aquele de vocês que me insultou, se não é um covarde, apresente-se! Estou disposto a dar-lhe na cara!

Ninguém respondeu.

Teobaldo franziu o lábio com tédio e, atirando ao grupo inteiro, por cima do ombro, um olhar de desprezo, afastou-se. dizendo entredentes:

— Canalha!

Mas, ao chegar pouco depois à chácara, seis meninos dos mais fortes dos que compunham o grupo, aproximaram-se dele e exigiram que Teobaldo sustentasse o que havia dito no salão.

Teobaldo virou-lhes as costas e os seis iam precipitar-se sobre ele, quando o Coruja, que tudo presenciara a certa distância, de um pulo tomou-lhes a frente e os destroçou a murros.

Acudiu o inspetor, fez cessar a briga e, tomando o Coruja pelo braço, levou-o à presença do Dr. Mosquito.

Teobaldo acompanhou-o.

Exposto o ocorrido, foi o Coruja interrogado e confessou que era tudo verdade: "Batera em alguns de seus companheiros".

— Pois então recolham-no ao quarto do castigo, disse o diretor. Passará aí o domingo, fazendo considerações sobre o inconveniente das bravatas!

— Perdão! Observou Teobaldo; quem tem de sofrer esse castigo sou eu! Fui o causador único da desordem. Este menino não tem a menor culpa!

E apontou para o Coruja.

— Ó senhores! Pois se eu o vi atracando-se aos outros, como um demônio! exclamou o inspetor.

— E ele próprio o confessa... Acrescentou o diretor. Vamos! Cumpra-se a ordem que dei!

— Nesse caso eu também serei preso, respondeu Teobaldo.

E tão resolutamente acompanhou o colega, que ninguém o deteve. Foram recolhidos à mesma prisão, e desta vez, graças à influência de Teobaldo, o outro, além de não ter de gramar o escuro, recebeu licença para levar consigo alguns livros e a flauta que lhe emprestara o Caixa-d’óculos.

Logo que os dois meninos se acharam a sós, Teobaldo foi ter com o Coruja e disse, apertando-lhe a mão:

— Obrigado.

André fez um gesto com a cabeça, equivalente a estas palavras: "Não tem que agradecer, porque o mesmo faria por qualquer criatura". Se o senhor fazia parte do grupo que insultei, volveu Teobaldo, peço-lhe desculpa.

— Não fazia, respondeu o outro, dispondo-se a entregar-se de corpo e alma à sua ingrata flauta.

Felizmente para o colega, foram interrompidos por uma pancada na porta. Teobaldo correu a receber quem batia, e soltou logo uma exclamação de prazer:

— Oh! Você, Caetano! Como estão todos lá e casa? Mamãe está melhor? E papai, papai que faz que não vem me ver, como prometeu?

Caetano, em vez de responder, pousou no chão uma cesta que trazia, e abriu os braços para o menino, deixa do correr pelo sorriso de seu rosto duas lágrimas de ternura que se lhe escapavam dos olhos.

Era um homem de meia idade, alto, magro, de cabelos grisalhos, à escovinha, cara toda raspada; e tão simpático, tão bom de fisionomia, que a gente gostava dele à primeira vista. Trajava uma libré cor de rapé, com botões de latão e alamares de veludo preto.

Caetano entrara muito criança para o serviço do avô de Teobaldo, pouco antes do nascimento do pai deste, nunca mais abandonou essa família, da qual mais adiante teremos de falar, e por onde se poderão avaliar os laços de velha amizade que ligavam aquele respeitoso criado ao neto de seu primeiro amo. Por enquanto diremos apenas que o bom Caetano. viu crescer ao seu lado o pai de Teobaldo; que o acompanhou tanto nas suas primeiras correrias de rapaz, como mais tarde nas suas aventuras políticas durante as revoluções de Minas; e que a intimidade entre esses dois companheiros por tal forma os identificou, que afinal criado era já consultado e ouvido como um verdadeiro membro e amigo da família a que se dedicara.

— Mas, Caetano, que diabo veio você fazer aqui? Perguntou Teobaldo. Há novidade lá por casa? Fale; Mamãe piorou?

— Não; graças a Deus não há novidade. A senhora baronesa não piorou, e parece até que vai melhor; o que ela tem é muitas saudades de vossemecê.

— E papai, está bom?

— Nhô-Miló (era assim que chamava o amo) está bom, graças a Deus. Foi ele quem me mandou cá. Vim trazer um dinheiro ao doutor.

— Ah! Ao diretor? Quanto foi?

— Trezentos mil réis.

— Seriam emprestados, sabes?

— Creio que sim, porque trouxe uma letra que tem de voltar assinada…

— E isso que trazes aí no cesto é para mim?

— É, sim senhor. É a senhora baronesa quem manda.

Teobaldo apressou-se a despejar a cesta. Vinham doces, queijo, nozes, figos secos, passas, amêndoas, frutas cristalizadas e uma garrafa de vinho Madeira.

— Isto é que é pouco; devia ter vindo mais... Considerou ele, pousando a garrafa no chão.

— Pois fique sabendo que, se não fosse Nhô-Miló, nem essa teria vindo... A senhora baronesa chegou a zangar-se com ele.

E, mudando de tom:

— Mas é verdade, vossemecê está preso?

— Qual! Estou aqui porque assim o quis.

Em quatro palavras Teobaldo contou o motivo da sua prisão.

— Ah! Disse o criado, vossemecê é seu pai, sem tirar nem pôr!

— Sim, mas não contes nada em casa...

— Não há novidade, não senhor!

E, depois de conversarem ainda mais alguma coisa, Caetano abraçou de novo o rapaz, despediu-se do outro e retirou-se, pretextando que não convinha demorar-se para não chegar muito tarde à fazenda.

Outra vez fechada a prisão, Teobaldo, restituído ao seu bom humor com o presente da família, voltou-se, já risonho, para o companheiro e disse, batendo-lhe no ombro:

— Ao menos temos aqui com que entreter os queixos. E, dispondo tudo sobre uma cadeira, principiou a expor o conteúdo dos pacotes e das caixinhas de doce: Felizmente a garrafa está aberta e o púcaro d’água serve para beber vinho. Não acha que isto veio a propósito?

— É, resmungou o Coruja.

— Pois então, mãos à obra! Gosta de vinho?

— Não sei…

— Como não sabe?

— Nunca provei.

— Nunca? Oh!

— É exato.

— Pois experimente. Há de gostar.

André entornou no púcaro três dedos de vinho e bebeu-o de um trago.

— Que tal? Perguntou o outro fazendo o mesmo.

— É bom! Disse Coruja a estalar a língua.

— Com um pouco de queijo e doce ainda é melhor, atire-se!

André não se fez rogado, e os dois meninos, em face um do outro, puseram-se a petiscar, como bons amigos. Teobaldo, porém, depois de repetir várias vezes a dose do vinho, precisava dar expansão ao seu gênio comentador e satírico; ao passo que o companheiro saboreava em silêncio aqueles delicados pitéus, que chamavam ao mal confortado paladar delícias inteiramente novas e desconhecidas para ele. E contentava-se a resmungar, de vez em quando:

— É muito bom? É muito bom!

— Pois eu, sempre que receber presentes lá de e prometeu o outro, hei de chamá-lo para participar deles. Está dito?

— Está.

— Você chama-se…

— André.

— De…

— Miranda.

— André Miranda.

— De Melo.

— Ah!

— E Costa.

— Não sabia. Como todos no colégio só o tratam por "Coruja"...

— É alcunha.

— Foi aqui que lha puseram?

— Foi.

— Por quê?

— Porque eu sou feio.

— E não fica zangado quando lhe chamam assim?

— Não.

— Eu também faria o mesmo, se me pusessem alguma. Os nossos colegas são todos uns pedaços dasnos, não acha?

Coruja sacudiu os ombros e Teobaldo, um pouco agitado pelo Madeira, começou a desabafar todo o ressentimento que até ai reprimia com tanto orgulho.

Falou francamente, queixou-se dos companheiros, julgou-os a um por um, provando
que eram todos aduladores e invejosos.

— Não quero saber deles para nada! Exclamou indignado. Você é o único com que me darei!

E, muito loquaz e vário, passou logo a falar dos colégios europeus, do modo pelo qual aí se tratavam entre si os estudantes, dos modos de brincar, de estudar em comum, do modo, enfim, pelo qual se protegiam e estimavam.
–––––––––-
continua…

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