sábado, 13 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 6

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro em pouco, penetravam todos na sala de jantar. A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento abrira-lhe o gosto pelos objetos do luxo asiático e trouxera-lhe uma riquíssima coleção de louças, de sedas e cachemiras, charões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias de sândalo e tartaruga, e tudo mais que era de costume nesse tempo introduzirem no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

Viam-se ai também, pelas paredes, quadros antigos, de santos, alguns dos quais haviam pertencido a D. João VI, e das mãos deste passado às do avô de Teobaldo. Viam-se igualmente estalados retratos de damas e cavalheiros da corte de D. José e D. Maria I, detestavelmente pintados, nas suas pitorescas vestimentas do século XVIII e defronte de cujas telas inutilizadas e ressequidas pelo antiaristocrático sol brasileiro, habituara-se o velho Caetano a possuir-se de todo o respeito, porque lhe contava que entre aqueles figurões havia parentes do seu rico amo. E, ao lado da mobília, relativamente nova, descobriam-se clássicas peças de madeira preta, que juntavam ao aspecto daquelas salas uma nota religiosa e grave. Na biblioteca, aliás bem guarnecida, destacavam--se, por entre as estantes, antigas armas portuguesas, dispostas em simetria e caprichosamente entrelaçadas por arcos e flechas do Brasil. Na sala de jantar, dominando a larga e longa mesa da comida, havia um grande retrato de Cromwell, representado na ocasião em que ele invadiu o parlamento inglês de chicote em punho.

O Coruja passou por tudo isso, às cegas, sem ânimo de olhar para coisa alguma. O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda muito mais desagradável do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e concluiu afinal o seu julgamento franzindo os cantos da boca em um trejeito de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e, segundo o costume, conversava com ele, como se estivesse defronte de um homem. Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar suas ordens para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse. Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto.

Já vais? Perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família, a conversar por algum tempo, veio o Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor do colégio, e Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser tão desengraçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.

CAPÍTULO VIII

Ninguém seria capaz de descrever a comoção que se apoderou do Coruja na sua primeira manhã daquelas férias. Ergueu-se antes do despontar do sol, vestiu uma roupa de Teobaldo, que lhe mandaram pôr ao lado da cama, e, com as calças e as mangas dobradas, saiu mais o companheiro ao encontro do barão, que já esperava por eles à margem de um rio, situado a cinqüenta passos do fundo da casa. Era aí que Emílio dava ao filho as suas lições de natação. Mas não houve meio de conseguir que o Coruja se despisse na presença dos outros. Já em casa do padre, e também no colégio, observava-se a mesma coisa; tinha o Coruja um pudor exageradíssimo, uma invencível vergonha da nudez; não podia admitir que ninguém lhe visse a pele do corpo. E só depois que o barão e o filho se banharam, consentiu ele, bem certo de que não era espiado, em meter-se n’água.

Sem dar demonstração, o Coruja estava maravilhado com tudo que ia se patenteando em torno dele. Seu coração puro e compassivo, abria-se para receber amplamente aquela grande paz do campo tão simpática às precoces melancolias de sua pobre alma. E as castas propensões do Coruja, os gostos imaculados que dormiam a sono solto dentro dele, tudo isso acordou alegremente aos primeiros rumores da floresta e as primeiras irradiações da aurora como um bando de pássaros quando vai amanhecendo.

Nunca se julgou assim feliz. Todas aquelas, vozes da natureza. todo aquele aspecto tranqüilo das matas e das montanhas, tudo o fascinava secretamente, como se ele tivera nascido ali, entre aquelas coisas tão calmas, tão boas, tão comunicativas. Os currais, os trabalhos agrícolas, o gado grosso e o gado miúdo, a criação dos animais domésticos, a cultura dos legumes e hortaliças, tudo isso tinha para ele um encanto muito particular e muito suave.

— Então? Que tal achas isto aqui? Perguntou-lhe Teobaldo, depois de mostrar ao amigo as benfeitorias da fazenda.

— Tudo muito bom, respondeu ele.

— E o velho? Que tal!

— Bom, muito bom.

— E Santa?

— Uma Santa.

— E a tia Gemi?

— Não é má.

— Um pouquinho resingueira, não e verdade? Mas não faças caso, que ela se chegará as boas. Olha! Se a quiseres agradar, faze-te devoto; reza-lhe dois padre-nossos e tê-la-ás conquistado.

E mudando logo de tom;

— Depois do almoço temos um passeio com o velho. Vais ver o que é bom! Sabes montar a cavalo?

— Não, mas aprendo. Onde é o passeio?

— À fazenda, do Hipólito. Não é longe.

— Que Hipólito?

— Um vizinho nosso, amigo do velho e pretendente à mão da tia Gemi.

— Ah!

— Vem comigo à estrebaria.

Defronte dos animais, Teobaldo chamou a atenção do amigo para um belo cavalo alazão, meio sangue, que o pai lhe havia comprado ainda o ano passado.

— Eu preferia aquele burro... Disse o Coruja, depois de examinar minuciosamente as bestas.

— Quê? Pois preferes o jumento àquele belo alazão?...

— Decerto.

— Mas, por quê?

— Não sei: gosto mais do burro que do cavalo.

— Que gosto! Antes andar a pé.

E acrescentou ainda apontando para o alazão:

— Olha só para aquilo! É um animal nobre! Parece que tem consciência do seu valor!

Terminado o almoço e vestido o Coruja pelo melhor que se pôde arranjar, o barão, os dois meninos e o velho Caetano abandonaram a casa e encaminharam-se para a estrebaria.

— Sabes, papai? O André prefere ir no burro.

— Porque não é cavaleiro. O burro com efeito é muito menos perigoso para ele. Anda com isso, ó Caetano.

Prontos os animais, o velho criado ajudou Coruja a cavalgar o burro.

— Não tenha medo! Gritou-lhe, a segurar a brida. Esta besta é mais mansa do que uma pomba!

André, todo vergado sobre o peito e a segurar as rédeas com ambas as mãos, não conseguia endireitar-se na sela do animal, por mais que o amigo lhe gritasse.

— Espicha as pernas, rapaz! Levanta a cabeça! Pareces um macaco!

O barão e o filho, uma vez montados, meteram entre os seus cavalos o jumento em que ia o Coruja, e puseram-se a caminho, seguidos a certa distância pelo criado, cuja libré dava à modesta cavalgata um ligeiro colorido de aristocracia. Os primeiros minutos do passeio foram todos gastos com André, que, diga-se  a verdade, fazia o possível para bem aproveitar as lições.

— Assim! Assim! Gritou-lhe Teobaldo, metendo as esporas no animal; afrouxa um pouco mais a rédea e mete-lhe o chicote com vontade! Não tenhas medo! Coruja foi pôr em prática esta ordem, mas com tal precipitação o fez que o burro se espantou e, dando um salto, cuspiu-o por terra.

— Ó diabo! Exclamou Emílio, fazendo parar o seu cavalo.

— Ficaste magoado? Perguntou Teobaldo ao amigo.

— Foi nada! Disse o Coruja, erguendo-se a segurar o asno pela rédea, e, antes que lhe pusessem embargos, tomou o estribo, galgou de um pulo a sela e, tocando o animal com certa energia, gritou aos companheiros:

— Vamos adiante!

E às quatro da tarde, sem nenhum outro incidente desagradável, voltavam à fazenda, trazendo consigo o tal Hipólito, que parecia embirrar com o Coruja ainda mais do que a própria noiva.

Mas com quem não embirraria aquele demônio de barbas pretas e cabelo ruivo, eterno maldizente, capaz de encontrar pontos de censura na vida de Santa Maria e nas de S. José?

O barão suportava-o, tão somente para não prejudicar a trintona cunhada, que arriscava-se a ficar solteira se lhe escapasse ocasião de ter marido. Hipólito era já um bom arranjo, tinha algum dinheiro e prometia ir muito mais longe com o seu sistema de economia que orçava sensivelmente pela avareza.

A política era talvez a sua paixão dominante; ele, porém, a disfarçava quanto possível e não se metia com os partidos, receoso de gastar alguma coisa. Aparecia freqüentemente na fazenda de Emílio e estava sempre a criticar, em segredo com a noiva, a educação que davam a Teobaldo.

— Deus queira que não venham a amargar mais tarde! Dizia Hipólito, cheio de repreensão. Nunca vi em dias de minha vida semelhante gênero de ensino! Pois se até o fedelho trata aos pais por tu, como se estivesse a falar com os negros! Enfim cada um faz o que entende; eu, porém, tenho o direito de achar bom ou mau.

 Outro pretexto constante para a sua indignação era a vida dispendiosa de Emílio.

— Para que tanta prosápia e tanta galanice? Resmungava frenético. Ora eu, que sei perfeitamente com que linhas ele se cose, não posso ver isto a sangue frio!  As conseqüências deste esbanjamento bem sei eu quais são: os parentes que se apertem! Mas, não há de ser comigo que ninguém se arranjará: Cá sei quanto me custa a conservar o que tenho! E já não é pouco!

Que importava, porém, a mastigação do serrazina, se ela ficava sepultada nas discretas orelhas de D. Geminiana? Não seria por isso que as matilhas do Sr. Barão deixariam de acordar as florestas com seus latidos, à madrugada, em busca de anta ou do porco bravo; não seria por isso que a mesa do fidalgo seria menos farta. os seus cavalos menos de raça e os seus vinhos menos escolhidos e generosos.

Assim se abria para o Coruja uma existência completamente nova e imprevista, mas muito ao sabor do seu gênio rústico e simples. A certos divertimentos ia entretanto só pela satisfação de acompanhar o amigo, porque, à medida que ele se familiarizava com o campo, acentuavam-lhe os gostos e as preferências. Não trocaria, por exemplo, a mais modesta pescaria pela melhor caçada; desagradava-lhe o alvoroço, o grito dos batedores, o barulho dos cães e não gostava de ver cair ao tiro das escopetas a pobre besta foragida e tonta de terror.

A pesca, sim, era um prazer afinado pelo seu temperamento calmo e silencioso; passava horas esquecidas, de caniço em punho, à espera que se chimpasse um peixe no anzol. Teobaldo às vezes o acompanhava ao rio por condescendência, mas levava sempre consigo uma espingarda passarinheira. Era interessante de ver aqueles dois meninos tão contrários e tão unidos, partirem de madrugada para o mato, onde passavam quase sempre as melhores horas do dia. André carregava consigo os utensílios da pesca e raro dizia uma palavra enquanto matejava; o outro, com a sua passarinheira a tiracolo, falava por si e por ele, descrevendo entusiasmado as façanhas do pai ou do avô, que muitas vezes, em noite de invernada, ouvira da boca do velho Caetano.

Todavia, um adorava o sossego, a doce e morna tranqüilidade dos vales ou as margens frondosas e sombreadas do rio, para onde levava os seus livros favoritos, entre os quais Robinson Crusoé tinha o primeiro lugar; o outro, não; o outro só queria da floresta aquilo que ela lhe pudesse dar de imprevisto e aventuroso: queria a sensação, o perigo, o romanesco e o transcendente.

Às vezes, enquanto o Coruja lia ou pescava à beira d’água, Teobaldo, ao seu lado, deitado sobre a relva, olhos fitos na verde-negra cúpula das árvores, sonhava-se herói de mil conquistas, cada uma do seu gênero; tão depressa se via um grande poeta, como um político inexcedível ou um divino orador. Idealizava-se em toda as atitudes gloriosas dos grandes vultos; não lhe passava pela vista a biografia de qualquer celebridade, fosse esta conquistada pelo talento, pela energia, pela fortuna, pela intrepidez ou pela grandeza d’alma, que ele não descobrisse logo em si muitos pontos de contato com o biografado.

Teobaldo não amava o campo, aceitava-o apenas como um fundo pitoresco em que devia destacar-se maravilhosamente a sua "extraordinária figura", aceitava-o como simples acessório das suas fantasias. Nunca lhe compreendera as vozes misteriosas nem jamais comunicara a sua alma com a dele. Tanta assim que naqueles passeios, o que mais o preocupava não era a contemplação da natureza e sim os pequenos detalhes elegantes que diziam respeito particularmente à sua pessoa, como a roupa, o aspecto do animal que montava e a distinção do exercício que escolhia.

Ele nunca saía a passear sem as suas trabalhadas botas de polimento, sem o seu calção de flanela, a sua blusa abotoada até ao pescoço e cingida ao estômago por um cinturão com fivela de prata; não saía sem o seu chapéu de pluma, a sua bolsa de caça, o seu polvarinho, o seu chumbeiro e, ainda que tivesse a certeza de não precisar da espingarda, levava-a, porque a espingarda fazia parte do figurino.

Um dia exigiu que o pai lhe desse uma pistola e um punhal.

– Para que diabo queres tu todo esse armamento? Perguntou-lhe o barão, sem poder deixar de rir.

— Para o que der e vier...

— Descansa, que por aqui não terás necessidade disso.

— Mas eu queria...

— Pois bem, havemos de ver.

E, para não contrariar de todo o filho, o que não estava em suas mãos, Albuquerque estabeleceu nos fundos da casa um tirocínio de pontaria ao alvo e consentiu que o rapaz nos seus passeios à mata trouxesse à cinta um rico punhal de ouro e prata que pertencera ao avô.

— Tu não queres também uma arma? Perguntou Teobaldo ao Coruja.

— Não; só se fosse um facão para cortar mato.

— Ora, vocês não querem também uma peça de artilharia? Exclamou o barão, quando o filho lhe foi pedir o que desejava o amigo.

Enquanto Teobaldo fazia tanta questão das aparências e das exterioridades, André, enfronhado em um fato de ordinária ganga amarela, que nem era dele, com um grande chapéu de palha na cabeça e às vezes descalço, comprazia-se em percorrer a fazenda, não em busca de aventuras como o amigo, mas de alguém que lhe ensinasse o nome de cada árvore, a utilidade e a serventia de todas elas, assim como o processo empregado na cultura de tais e tais plantações, o modo de semear e colher este ou aqueles cereais; qual a época para isto qual a época para aquilo; queria que lhe explicassem tudo! Uma de suas mais arraigadas preocupações era a obscura existência dos insetos; interessava-se principalmente pelos alados, procurando acompanhar-lhes as metamorfoses, desde o estado de larva à mariposa.

Se lhe despejassem as algibeiras, haviam de encontrar aí várias crisálidas, besouros e cigarras secas, como encontrariam igualmente vários caroços de fruta e pedrinhas de todos os feitios.

Algumas semanas depois de sua estada na fazenda era ele quem mais se desvelava pelos carneiros e pelos porcos e quem ia dar quase sempre a ração aos cavalos. E, quando havia uma ferradura a pregar ou qualquer tratamento a fazer nos animais, mostrava-se tão afoito que parecia o único responsável por isso.

No fim do primeiro mês das férias já o Coruja sabia nadar, correr a cavalo, atirar ao alvo e, por tal forma havia-se familiarizado com a vegetação, com a terra viva, com o sol e com a chuva, que parecia não ter tido nunca outro meio que não fosse aquele.

Em geral acordava muito mais cedo que o amigo e ainda dormia este a sono solto, já andava ele a dar uma vista d’olhos pelo serviço das hortas e dos currais.
––––––––-
continua…

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