terça-feira, 13 de agosto de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) O Soneto

Deus de misericórdia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar de ser eu o pobre da irmandade.

Pelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três meses, calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam esses objetos de arte.

Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilidade, sem prejuízo da perfeição. Não descreio disso. Mas essa espontaneidade para fazer um soneto só se adquire depois de muito e duro labor de aprendizagem e prática do soneto. Também os ginastas fazem com a máxima facilidade e economia de esforço os mais complicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas argolas, -e isso está muito longe de provar que tais habilidades lhe sejam naturais como a nós outros o uso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bondes.

Quanto a mim, vou desistir de concorrer aos futuros florilégios. Mas, em vez de fazer como o outro, que despreza essa forma de poesia, alegando que é velha de seiscentos anos, que o mundo está cheio de sonetos, e que os sonetistas são muito mais numerosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricação deste gênero de peças é um útil e nobre exercício de engenho, além de ser o mais justificável dos quebra-cabeças.

Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo o mundo, e contarem-sepelos dedos os capazes de sobreviver, não vejo nisso razão para se condenar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada dia milhões de rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo de Malherbe, -d'un matia -isto é, três ou quatro dias; contudo, daí não se segue que a rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevidade fatal da sua melindrosa vida é um dos elementos do sutil encanto que elas desprendem, como um outro perfume.

Cosa bella e mortal...

Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá, do que armar, travar e concluir um soneto de modo que ele fique cheio e redondo como uma bola maciça. Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, é mentalmente esférico. Não tem na sua transcendente realidade, princípio nem fim: o termo aparente é que, a certa luz, se pode considerar começo, porque ninguém se inicia na compreensão justa da peça antes de ter chegado ao "final", antes de haver este lançado a projeção anímica do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro verso. Assim, todas as partes idealmente se alongam num único sentido, e repassam sobre si mesmas, girando em redor de um eixo gerador, buscando mecanicamente a esfericidade a que tendem as massas em revolução.

Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado que se saiba o que venha a ser poesia pura, é evidente que essa essência, como certas substâncias delicadas e voláteis, precisa sempre de uma liga mais ou menos grosseira para subsistir.

De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em que ela entre ou deixe de entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com uma bela teia de aranha, estendida ao sol da manhã como uma roupa de fada, para que se lhe seque o relento da noite, a mim pouco se me dá de saber se aquilo está bem construído, se não está, se o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que seja puro ou não o seja), e se a aranha devia ou não devia fazer outra coisa.

Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida de filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências noturnas, às azulejantes fluências matinais do córrego, à casca metálica dos besouros e se ela parece bulir no mato como um enxame de estrelinhas tontas, -paro, olho, sorrio, vou andando, e ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.

No soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare, a liga em que se aprisiona a essência de poesia é sutil e engenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas de engenho discursivo, tocadas de um raio de poesia. Puzzle, envernizado de sonho. Gaiolas dialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro que fugiu, - o tal pássaro fantástico da poesia verdadeira.

Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima. Também tem faltado oportunidade. Feitas as quadras no bonde, entendeu o meu subconsciente que no bonde eu havia de fabricar os tercetos.

Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro, não me acode nem fiapo de idéia; mas no bonde nem sempre consigo a calma nem os vagares indispensáveis a esta classe de serviço.

Como este mundo anda desconcertado!

Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, decerto deixariam de fazer muitas asneiras - das pequenas; mas como as premeditariam grandes e terríveis!

Hoje, depois de várias tentativas, entrei no bonde decidido a conquistar o meu sossego.

Dei logo de cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata que infesta a nossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o único money que eles têm, o tempo. Mas o Sr. Cesário não me viu, porque estava despojando a um outro. Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre uma preta de xale e um cabo de polícia.

Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e delgada de Gabriela, recordei as quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração informe.

Gabriela, como ficou assentado, era uma jovem que tinha perdido todas as ilusões, coitada! Por necessidade de rima e falta de espaço, não foi possível precisar de que ilusões se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão desempenha um papel muito sério e ninguém pode jamais gabar-se de as haver perdido por completo. Já se disse mesmo que o homem vive de ilusões. Mas essa imprecisão de idéias é muito própria da poesia; e tem a vantagem de dar largueza bastante para as imaginações se moverem ao sabor de cada temperamento.

Gabriela perdera as suas ilusões de moça ardente e sequiosa, porque se atirara aos chamarizes e às insídias do mundo com excessiva sofreguidão e nenhuma cautela. Isto ficou registado na segunda quadra.

Agora, os tercetos é que eram elas!

Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusões, a menina estava como quem tivesse perdido a túnica através de matos e pedernais, ou em luta com bichos assanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe um revestimento novo, ainda serve. As comparações poéticas essenciais, referentes às verdadeiras situações em que se pode encontrar uma alma nesta vida, são bem pouco numerosas, no fundo; e os poetas, por mais que façam, hão de sempre voltear-lhes em redor.

Hoje, aí vais....................
........... inteiramente nua

Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pauta com sílabas soltas sem significação nem consistência, só para acentuar o ritmo e provocar a idéia. Uma espécie de massagem sobre um tumor maduro.

Mas na verdade o tumor ainda estava um tanto verde. O que sobretudo me impedia de chegar a um resultado, era o final.

O soneto, hoje estou disso convencido, tem uma causa final -o fecho deve ser achado antes domais. É o verdadeiro princípio. Então, tudo para lá se encaminha, como no ovo se forma com segurança e tranquilidade o pintainho prefigurado.

Enquanto eu ia fazendo estas reflexões, o bonde se aproximava mais depressa do termo, e tive de adiar mais uma vez a conclusão da minha tarefa poética.

Mas hei de concluí-la. Tenho diante de mim todo o resto da minha vida. Tudo me indica que ainda poderei vir a ser o Arvers de um soneto, não direi tão acabado, mas pelo menos tão difícil de acabar.

Sainte-Beuve disse que il existe chez les trois quarts des hommes un poète mort jeune à qui l'homme survit. Mas isso não é um achado: a poesia sempre foi tida como particular companheira da juventude, nos homens e nos povos. O mais curioso é que muitos trazem consigo poetas que nunca chegaram a nascer e que são como revenants do futuro.

Fonte:
Domínio Público

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