quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Guilherme de Azevedo (A Alma Nova)

Obs: - o significado de algumas palavras (que possuem asterisco ao lado)  foram colocadas ao final da postagem, sob o título notas. 
- foi mantida a grafia original do poeta português.
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INTRODUÇÃO

Eu poucas vezes canto os casos melancólicos,
Os letargos* gentis, os êxtases bucólicos
E as desditas cruéis do próprio coração;
Mas não celebro o vício e odeio o desalinho
Da musa sem pudor que mostra no caminho
A liga à multidão.

A sagrada poesia, a peregrina eterna,
Ouvi dizer que sofre uma afeção moderna,
Uns fastios* sem nome, uns tédios ideais;
Que ensaia, presumida, o gesto romanesco
E, vaidosa de si, no colo ebúrneo* e fresco,
Põe cremes triviais!

Oh, pensam mal de ti, da tua castidade!
Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade,
Os falsos ouropéis* das cortesãs gentis,
E julgam já tocar-te as roçagantes* vestes
Ó deusa virginal das cóleras celestes,
Das graças juvenis!

Retine a cançoneta alegre das bacantes*,
Saudadas nos vagões, nos cais, nos restaurantes,
Visões de olhar travesso e provocantes pés,
E julgam já escutar a voz do paraíso,
Amando o que há de falso e torpe no sorriso
Das musas dos cafés!

Oh, tu não és, decerto, a virgem quebradiça
Estiolada* e gentil, que vem depois da missa
Mostrar pela cidade o seu fino desdém,
Nem a fada que sente um vaporoso tédio
Enquanto vai sonhando um noivo rico e nédio*
Que a possa pagar bem!

Nem posso mesmo crer, arcanjo, que tu sejas
A menina gentil que às portas das igrejas
Enquanto a multidão galante adora a cruz,
A bem do pobre enfermo à turba pede esmola
Nas pampas ideais da moda, que a consola
Das mágoas de Jesus!

E nas horas de luta enquanto os povos choram
E a guerra tudo mata e os reis tudo devoram,
Não posso dizer bem se acaso tu serás
A senhora que espalha os lânguidos fastios*
Nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios
À viva luz do gás!

Tu és a aparição gentil, meia selvagem,
De olhar profundo e bom, de cândida roupagem,
De fronte imaculada e seios virginais,
Que desenha no espaço o límpido contorno
E cinge na cabeça o virginal adorno
De folhas naturais.

Teus a linha ideal das cândidas figuras;
As curvas divinais; as tintas sãs e puras
Da austera virgindade; as belas correções;
E segues majestosa em teu longo caminho
Deixando flutuar a túnica de linho
Às frescas virações!

Quando trava batalha a tua irmã Justiça
Acodes ao combate e apontas sobre a liça
Uma espada de luz ao Mal dominador:
E pensas na beleza harmónica das cousas
Sentindo que se move um mundo sob as lousas
No gérmen duma flor!

Num sorriso cruel, pungente de ironia,
Também sabes vibrar, serena, altiva e fria,
O látego febril das grandes punições;
E vendo-te sorrir, a geração doente,
Sentir cuida, talvez, a nota decadente,
Das mórbidas canções!

Oh, voa sem cessar traçando nos teus ombros
O manto constelado, ó deusa dos assombros,
Até chegar um dia às regiões de luz,
Aonde, na poeira aurífera dos astros,
Contrito, Satanás enxugará de rastos,
As chagas de Jesus!

Lugar à minha fada ó lânguidas senhoras!
E vós que amais do circo as noites tentadoras,
Os flutuantes véus, os gestos divinais,
Podeis vê-la passar num turbilhão fantástico,
Voando no corcel febril, nervoso, elástico,
Dos novos ideais!

Eu vi passar, além, vogando sobre os mares
O cadáver de Ofélia: a espuma da voragem
E as algas naturais serviam de roupagem
À triste aparição das noites seculares!

Seguia tristemente às regiões polares
Nos limos das marés; e a rija cartilagem
Sustinha-lhe tremendo aos hálitos da aragem,
No peito carcomido, uns grandes nenúfares*!

Oh! Lembro-me que tu, minha alma, em certos dias
Sorriste já, também, nas vagas harmonias
Das cousas ideais! Mas boje à luz mortiça

Dos astros, caminhando; apenas as ruínas
Das tuas criações fantásticas, divinas,
De pasto vão servindo aos lírios da justiça!

VELHA FARSA

Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco
Dum mundo que desaba; aí vai tudo em tropel!
Vão ver passar na rua um velho saltimbanco
E uma fera que dança atada a um cordel.

Ó funâmbulos* vis, comediantes rotos,
O vosso riso alvar agrada à multidão!
E quando vós passais o arcanjo dos esgotos
Atira-vos a flor que mais encontra à mão!

Lá vai tudo a correr: são as grotescas danças
Duns velhos animais que já foram cruéis
E agora vão sofrendo os risos das crianças
E os apupos da turba a troco de dez réis.

Conta um velho histrião*, descabelado e pálido,
Da fera sanguinária o instinto vil e mau,
E vai chicoteando um urso meio inválido
Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de pau.

Depois inclina a face e obriga a que lha beije
A fera legendária olhada com pavor:
E uma deusa gentil, vestida de barege*,
Anuncia o prodígio a rufo de tambor!

E as mães erguem ao colo uns filhos enfezados
Que nunca tinham visto a luz dos ouropéis*:
E acresce à multidão a turba dos soldados,
— ao hilota* da cidade o escravo dos quartéis.

E o funâmbulo* grita; impõe qual evangelho
À turba extasiada a grande narração.
E sobre um cão enfermo um orangotango velho
Passeia nobremente os gestos de truão*.

Correi de toda a parte, aligeirai o passo,
Deixai a grande lida e vinde à rua ver
As prendas duma fera, as galas dum palhaço,
E um arcanjo que sua e pede de beber!

A tua imagem tens, ó povo legendário
No cómico festim que mal podes pagar,
Pois tu ainda és no mundo o velho dromedário
Que a vara do histrião* nas praças faz dançar.
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Notas:
Bacantes = (Fig)Mulher sem pudor, de costumes dissolutos
Barege = tecido fino de lã combinada com seda ou algodão, usado no vestuário feminino
Ebúrneo = Que é branco e/ou liso como o marfim
Estiolada = enfraquecida, debilitada
Fastio = falta de apetite, enfado, aborrecimento
Funâmbulo = indivíduo que muda facilmente de opinião ou partido
Hilota = em Esparta, escravo que cultivava o campo; pessoa de ínfima condição social ou que foi reduzida ao grau extremo da miséria, da servilidade ou da ignorância
Histrião = bufão, comediante
Letargo = que possui incapacidade de reagir e de expressar emoções; apatia, inércia e/ou desinteresse
Nédio = brilhante
Nenúfar = lótus
Ouropéis = Lâminas de metal amarelo que imitam o ouro
Roçagante = se arrasta pelo chão
Truão = pessoa que diverte as outras; palhaço, saltimbanco

Fontes:
http://luso-livros.net/
Dicionário Caudas Aulete. Aulete Digital.

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