segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 44

CAPÍTULO XXII

Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regurgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.

Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: "Organização do novo gabinete conservador". E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque. O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Estava ministro.

O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.

— Teobaldo ministro! Oh! Que belo! Que belo! Ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!

E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.

André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.

— Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! Dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.

— Ora qual! Opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.

— Como por acaso?

— Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.

Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.

— Hão de ver o que vai sair dai!

— É um portento, não há dúvida!

Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.

— Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.

— É um farofa! Dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!

Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.

— Hipócrita só como ele! Segredava-se aqui.

— Homem sincero! Considerava-se ali.

— Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.

Mas a opinião geral e mais corrente a respeito do marido de Branca era-lhe de todo o ponto favorável. Davam-lhe grande talento, vasta erudição, caráter firme e sentimentos patrióticos; quer dizer: quase todos atribuíam-lhe justamente aquilo que lhe faltava, e ninguém, menos a esposa, as duas únicas qualidades intelectuais que ele tinha deveras desenvolvidas — Habilidade e bom gosto. E foi só com a sua habilidade e com o seu bom gosto que o pândego chegava àquela altura.

Todavia, o Coruja, meio atordoado pela confusão do povo e pelo desacordo das opiniões que ouvira a respeito do amigo, atravessou a chácara e subiu a escada que ia dar à sala.

— Ainda não pode entrar! Gritou-lhe asperamente um ordenança que aí se achava.

— Oh, senhor! Mas não era preciso dizer isso deste modo.

O ordenança mediu-o de alto a baixo com um gesto de superioridade e virou-lhe as costas desdenhosamente.

— Olha que impostor! Disse consigo o Coruja, e perguntou quando seria possível falar a Teobaldo.

— A quem?!

— Ao ministro.

— Ah! Logo mais! Daqui a pouco franqueia-se a casa ao povo.

— Está bom; eu espero.

— Lá embaixo! Espere lá embaixo!

Ouvia-se vir de dentro da casa um rumor alegre e quente de vozes de homens e risos de senhoras; alguma coisa que dava logo a idéia de uma existência aristocraticamente feliz. Pelo rumor daquelas vozes, pelo tilintar daquela alegria bem educada, pelo aspecto exterior da casa, com as suas cortinas muito claras, com a sua chácara e as suas escadas de pedra branca imaginava-se logo uma boa mesa servida com porcelanas e cristais de primeira ordem; imaginava-se a confortável mobília, as largas cadeiras estofadas, a voluptuosa cama de molas de aço, o banho perfumado, as roupas de linho puro.

E o Coruja, sem que aliás a menor sombra de inveja lhe entrasse no coração com a idéia de tudo isso, nunca se sentiu tão desamparado, tão só no mundo, como naquele momento.

Uma agonia surda e duvidosa apoderou-se dele. E foi com a garganta cerrada por um punho de ferro que o mísero desceu lentamente a escada, arrastando de degrau em degrau o seu pé aleijado pelo tiro.

Ao chegar embaixo reparou que um grito de aclamação partia de todos os lados; voltou-se e notou que Teobaldo acabava de assomar ao balcão da janela seguido pela esposa. E o Coruja notou igualmente que o amigo não parecia um simples ministro, mas um príncipe. Estava belo com o seu porte altivo e dominador; com o seu grande ar de fidalgo que exerce a delicadeza, não em honra da pessoa a quem se dirige, mas em sua própria honra. Iam-lhe muito bem os fios de cabelo branco que agora lhe prateavam a cabeça e a barba, dando-lhe à fisionomia uma expressão ainda mais distinta e mais nobre.

Abriram-se as portas da casa ao povo que ia cumprimentá-lo, e as salas foram invadidas, enquanto a banda de música continuava a tocar. Havia um grande número de senhoras lá dentro e, Branca, ao lado de D. Geminiana e mais do velho Hipólito, que se tinham apresentado de véspera, fazia as honras da festa, sem alterar, no meio daquela tempestade de louvor e adulação que cercava o marido, o seu frio riso de estátua. Só ela parecia não tomar parte moral no grande entusiasmo de toda aquela gente.

Coruja ouviu de fora os hurras dos brindes e os vivas levantados a Teobaldo, ao partido conservador e ao monarca; não se sentiu, porém, com ânimo de entrar e resolveu ir-se embora.

Saiu triste, profundamente triste, sem contudo saber a razão dessa tristeza. Um vago desgosto pela vida o acabrunhava e consumia; um tédio enorme, uma espécie de cansaço de ser bom, levava-o sombriamente a pensar na morte.

É que em torno de seus passos havia encontrado sempre e sempre a mesma ingratidão ou a mesma antipatia por parte de todos, ou a mesma maldade por parte de cada um. Agora daria tudo para poder cometer uma ação má, como se por essa forma o seu coração pretendesse repousar um instante. E, por todo o caminho, notou pela primeira vez os encontrões que lhe davam, as caras más que lhe faziam os transeuntes, a falta de consideração que todos lhe patenteavam.

Observou que ninguém lhe cedia a passagem na escada. Um homem em mangas de camisa dera-lhe um empurrão e, ainda por cima, lhe gritara: — "Que diabo Está bêbado?!" Um padre, querendo passar ao mesmo tempo que ele, dissera-lhe: "Arrede-se!" E um menino de jaquetinha e calça curta chegara a obrigá-lo a ceder-lhe o passo. Ao atravessar a rua, quando ia chegar à casa, uma carruagem que passava a todo trote, levantou com as rodas um jato de lama, que se foi estampar na cara dele.

Era o Afonso de Aguiar quem ia dentro desse carro. Voltara, afinal, ao Brasil. E, só aquele fato de ver o Aguiar, sempre feliz, rico, rejuvenescido com o passeio à Europa, ainda mais o fez entristecer.

Coruja recolheu-se, finalmente, foi para o seu quarto, que era o pior da casa de D. Margarida, fechou-se por dentro e deixou-se cair em uma cadeira, a soluçar como uma criança que não tem pai nem mãe.

CAPÍTULO XXIII

E de então em diante ia ficando cada vez mais triste, mais concentrado e mais esquivo de tudo e de todos. Não tinha afinal um canto seguro, no qual, fugindo aos desgostos da rua, pudesse refugiar-se com o seu tédio, porque na própria casa onde morava é que a má vontade mais se assanhava contra ele; o infeliz em troca de toda a sua dedicação pelas duas desgraçadas senhoras que tomara à sua conta, só recebia constantes e inequívocas provas de ressentimentos e até de ódio.

Ah! O Coruja estava bem convencido de que aquela gente, se não precisasse dele para não morrer de fome, também o enxotaria de junto de si, como se enxota um cão impertinente. E, pois, sem carinhos de espécie alguma, sem o menor consolo, lá ia vegetando entre aquela família, que não era sua senão no peso, e entre aquela mesquinha e perversa humanidade, que o apupava, que o insultava e que nunca lhe estendera a mão com outro fim que não fora pedir uma esmola ou dar uma bofetada.

Isto, além de o tornar mais sóbrio, afrouxava-lhe a coragem, enfraquecia-lhe o caráter, a ponto de lhe trazer um mal, que ele até ai não conhecia: a revolta contra a própria sorte e o desamor à vida. Dera para resmungão: falava só, gesticulando zangado; afetava contra seus semelhantes uma grande raiva toda de palavras, desesperando-se ainda mais por não poder deixar de ser bom, por não poder dominar o seu irresistível vício de socorrer os desgraçados e despir-se de tudo para suavizar as necessidades alheias; sofrendo por não conseguir ser mau como qualquer homem e procurando esconder da vista de todos as boas ações que praticava, como se procurasse esconder uma falta vergonhosa e humilhante.

E tal era agora o seu empenho em disfarçar a bondade que, um dia, depois de muito discutir com um taverneiro, a quem ele não pagara no prazo marcado uma velha conta de vinho, feita pelo marido de Inês, viram-no por-se a rir, estranhamente satisfeito, porque o credor lhe gritara em tom de descompostura:

— Mas eu não devia esperar outra coisa de quem aproveita a moléstia de um desgraçado para se meter com a mulher dele!

Este modo de explicar a residência de André na casa da velha Margarida não pertencia exclusivamente ao taverneiro, mas à rua inteira, e ninguém perdoava àquele a suposta concubinagem. Mas também se ele, em vez de defender-se de tais acusações, rejubilava-se com elas, mostrando-se pelos homens e seus juízos de uma indiferença de cínico!...

Agora, só um nome tinha o poder de o despertar ainda: o nome de Teobaldo. Era, porém, tão difícil chegar até Sua Excelência!... Havia sempre durante o dia na antecâmara do Sr. ministro tanta gente à espera de chegar a sua ocasião de falar com este!... E durante a noite a casa de Teobaldo tinha um tal aspecto de festa, um tal movimento de casacas e vestidos de seda, que o Coruja muito poucas vezes se animou a procurar o amigo depois da mudança.

— Mas para que iludir-se? Teobaldo não podia gostar de semelhantes visitas! E, com efeito, a presença de André o constrangia bastante.

Não que já não o estimasse de todo; ao contrário sentia prazer em vê-lo, de vez em quando, apertar-lhe a mão e trocar com ele idéias que não trocaria com ninguém; gostava ainda de arrepiar os arminhos do seu espírito roçando a lixa daquele caráter de ferro; gostava de ouvir-lhe aquelas meias palavras, sinceras e ásperas; preferia ainda um gesto de aprovação feito pelo Coruja a quantos elogios lhe fizessem os outros; gostava muito de tudo isso, mas não ali, em presença de tantas testemunhas e exposto ao ridículo.

Estimava-o, não havia dúvida que o estimava, porém sentia-se mal à vontade e aborrecido, quando o pressentia chegar pelo barulho da sua grossa bengala de coxo.

Tanto que uma ocasião, vencendo todos os escrúpulos, disse-lhe abertamente:

— Queres saber de uma coisa, André? Desconfio que estas visitas que me fazes são para ti um verdadeiro sacrifício! Acho que o melhor é procurar-te eu em tua casa, de vez em quando, hein? Que achas?!

— É! Resmungou o Coruja, abaixando a cabeça.

— Não te parece melhor?... Bem sabes que sou o mesmo; sou teu amigo e no meu conceito estás acima de todos, mas é que aqui não conseguimos nunca ficar à vontade; não podemos. conversar livremente, e deves concordar que isto para mim é nada menos que um martírio! Que diabo! Prefiro não te ver senão quando estivermos a sós, completamente a nosso gosto! Não és da mesma opinião?

Coruja mastigou algumas palavras em resposta, sem levantar os olhos, muito vermelho, e depois retirou-se, todo atrapalhado à procura do chapéu que ele aliás conservara debaixo do braço durante a visita.

E foi quase a correr que atravessou a chácara e ganhou a rua, como um criminoso que foge do lugar do delito.

Notaram em casa que ele esse dia falou e gesticulou sozinho mais do que era de costume, com a diferença que desta vez os seus solilóquios acabavam sempre em lágrimas.

Dois meses depois, em um domingo, Teobaldo fora surpreendê-lo em casa às nove horas da manhã. Ia de chapéu baixo, fato leve e bengalinha de junco. Em vez do cupê, que costumava usar com duas ordenanças, vinha de tílburi.

Entrou gritando desde a porta da rua pelo Coruja:

— Onde estava aquele malandro! Talvez ainda metido na cama!? Pois que não fosse tão epicurista e viesse cá para fora receber os amigos!

André, que trabalhava fechado no quarto, largou de mão do serviço e correu ao encontro dele; ao passo que Inês fugia para junto da mãe, muito sobressaltada por aquela voz argentina e cheia de vida, que espantava a miserável tristeza da casa com a sua risonha expressão de estroinice fidalga.

— Ora venha de lá esse abraço, mestre Coruja!

E assentando-se com desembaraço em uma cadeira da sala de jantar:

— Sabes! Vim disposto a almoçar contigo. Hoje estou perfeitamente livre; minha própria mulher supõe-me fora da cidade. Ninguém desconfia de que eu estou aqui. Ah! Eu precisava passar algumas horas completamente despreocupado, precisava descansar e então lembrei-me de fazer-te esta surpresa; cá estou!

Ergueu-se, foi até ao parapeito do quintal; esteve a olhar por algum tempo para um tanque cheio de roupa que lhe ficava defronte dos olhos e disse depois suspirando:

— Como tudo isto é bom e consolador! É como se eu voltasse ao meu passado; estou vendo o momento em que entra por aquela porta, com a sua lata na cabeça, aquele velho que nos levava todos os dias o almoço e o jantar. Como se chamava, lembras-te?

— Sebastião.

— Era isso mesmo. Sebastião. Muito fiz eu sofrer o pobre diabo! Recordar-te de uma vez em que o obriguei a improvisar um bestialógico encarapitado sobre a mesa e com uma garrafa equilibrada na cabeça? Bom tempo!

Coruja erguera-se para ir à cozinha ver o que havia para almoçar, mas o outro, percebendo-lhe a intenção, gritara:

— Olha! Vão chegar aí umas coisas que mandei vir do hotel.

— Bom, disse André, risonho como havia muito tempo não o viam, porque o nosso almoço, força é confessar, não vale dois caracóis!

— Com certeza já tivemos outros piores! Replicou Teobaldo, encaminhando-se  também para a cozinha. Deixa estar que ainda havemos de fazer aqui um jantar. Nós dois!

— Quando quiseres!

— Nós dois é um modo de dizer! Tu não entendes patavina a respeito de cozinha!

— Mas posso servir de teu ajudante.

Pouco depois chegou a encomenda do hotel. Teobaldo foi por suas próprias mãos abrir a caixa da comida e, para cada prato que tirava de dentro dela, tinha uma exclamação de afetado entusiasmo:

— Bravo! Bravo! Bolinhos de bacalhau! Costeletas de porco! Maionese de camarões! Peixe recheado! Pato assado!

E, tão à vontade se mostrava na pobre casa de D. Margarida, que ninguém diria estar ali o ministro mais amigo da etiqueta, mais apaixonado pela sua farda e pelas suas bordaduras de ouro, como por tudo aquilo que fosse brilhante, luxuoso e ofuscador.

— Como vai a velha? perguntou ele.

— Assim, respondeu Coruja. Pouco melhor.

— Ah! Está doente?...

-— Ora! Pois então não sabes? Eu já te falei nisso por mais de uma vez.

— É exato, agora me lembro.

— E a filha?

— Essa esta boa. Vou chamá-la.

— Não, deixa-a lá por ora. Virá depois. Olha. Recomenda-lhe que nos arranje o almoço, enquanto conversamos no teu quarto. Onde é?

— Aqui. Entra.

No quarto, o ministro, sem se mostrar nem de leve impressionado pelo aspecto de miséria que o cercava, tirou fora o paletó e pôs-se a examinar o que havia sobre a mesa do Coruja. O grande maço de anotações históricas, já suas conhecidas, era a coisa mais saliente entre todo aquele oceano de papéis e alfarrábios.

— Está muito adiantado? perguntou, batendo com o dedo sobre as notas.

— Pouco mais. Ultimamente não tenho podido fazer quase nada. Ainda me falta muito para concluir a obra.

— Pois é tratares de concluir, que eu te arranjarei a publicação dela à custa do governo.

— Prometes!

— Ora!

— Ah! Só assim tenho esperanças de não perder o meu trabalho, porque juro-te que já ia-me fugindo o gosto...

— Podes ficar certo que a tua história será impressa.

— Não calculas o alegrão que me dás com essas palavras!

— E então digo-te mais: a obra será adotada na Instrução Pública e transformar-se-á para ti em uma mina de ouro!

— Que felicidade!

— Hás de ver!

E na sua febre de fazer promessas agradáveis, Teobaldo perguntou a razão por que o amigo não se metia aí em qualquer repartição do Estado.

— Ora, que pergunta! Bem sabes que não é por falta de esforços da minha parte...

— Pois digo-te que agora também serás empregado. É verdade que a época não é das melhores para isso: os bons lugares estão todos preenchidos, mas.

— Não! Qualquer coisa me serve... Declarou André. Tu bem me conheces; desde que não haja necessidade de concurso...

— Que diabo! Se eu pensasse nisto há mais tempo, já podias até estar com o teu emprego.
— Olha! Vê se me arranjas alguma coisa na Biblioteca. Isso é que seria magnífico!

— Homem! E é bem lembrado. Havemos de ver.

Assim conversaram até a ocasião de irem para a mesa.

O almoço foi alegre e comido com bastante apetite. Inezinha preparou-se antes de aparecer ao senhor ministro, mas, apesar das insistências deste, não tomou lugar à mesa, para ficar servindo.

Dona Margarida, lá mesmo da cama onde continuava amarrada pelo reumatismo, dirigia o serviço, lembrando de quando em quando à filha tudo aquilo que podia ser esquecido.

— Areaste o paliteiro? Perguntava ela do quarto. Se não areaste é melhor por o outro de louça, que está na gaveta do armário.

— Já pus, sim senhora.

— Não te esqueças dos guardanapos. Os melhores são os de debrum encarnados.

— Eu sei, mamãe.

— Olha que o café esteja pronto quando eles acabarem! Mas o Sr. Teobaldo talvez prefira o chá. Pergunta-lhe.

— Café! Café! Respondeu o próprio Teobaldo, de modos a ser ouvido pela velha.

E então uma conversa de gritos se entabulou entre os dois.

—S. Exa. nos desculpe, pedia a dona da casa, bem sabe quais são as nossas circunstâncias!

— Ora, por amor de Deus, D. Margarida! Acredite que há muito tempo que eu não almoço tão bem ou pelo menos com tamanho prazer.

— Que diria se eu não estivesse presa a esta cama! Não acredito que Inês tenha dado conta do recado!

— É uma injustiça que faz á sua filha. Está tudo muito bom.

E dirigindo-se a Inês:

— Tenha a bondade de levar este cálice de vinho à senhora sua mãe que eu vou beber à saúde dela.

— Não sei se não me fará mal! Gritou logo a velha.

— Este só lhe pode fazer bem, respondeu Teobaldo, é uva pura!

Depois do café, Teobaldo esteve alguns instantes no quarto da velha, pediu-lhe licença para lhe deixar sobre a cômoda uma nota de cinqüenta mil réis, dinheiro que ele depositou ao pé de um velho oratório, dizendo:

— É para a cera dos seus santos.

A velha agradeceu muito comovida e teria contado pelo miúdo da sua história, se a visita não arranjasse meios de afastar-se, declarando que ia para o quarto do Coruja encostar um pouco a cabeça.

E Teobaldo, tendo ainda conversado com o amigo enquanto dava cabo de um charuto, estirou-se melhor no trôpego capanê em que estava e adormeceu profundamente.

Coruja veio na ponta dos pés até à sala de jantar e, concheando a mão contra a boca, disse em voz baixa:

— Agora, nada de barulho, que Teobaldo está dormindo!
–––––––––––-
continua…

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