sábado, 21 de setembro de 2013

Ezequiel Theodoro da Silva (A Formação do Leitor no Brasil: o novo/velho desafio)

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se a formação de leitores maduros, com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita.

No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal, vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo. Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas, não vêm sendo enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o "tempo perdido". Sabe-se, por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor; entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica
para depois, fazendo com que o "provisório" ou, pior, o "inexistente" seja reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história.

A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros.' De fato, a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes, substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo, destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização.

No que se refere ao condutor do processo de ensino, o professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional, revelada principalmente por salários vergonhosos, vem acontecendo no país desde o início da década de 70. A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma, ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor - esse espectro do "espelho quebrado" - raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma significação para os estudantes.

Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A "crise da leitura" no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo.

As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas, revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas, configurando um círculo vicioso de dificil combate. O provisório se eterniza; o inexistente se cristaliza ao longo dos anos.

No quadro das velhas - e perniciosas - tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as manobras exercidas em direção ao livro didático "descartável", a "disneylândia pedagógica", etc... - tudo isso revela uma ação vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo. Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado!

Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se toma dificil, neste momento, saber por onde começar os projetos e programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra escrita. Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o abastecimento de livros, etc...) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.

A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal... e a sociedade está pior ainda: desemprego, dependência, criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário.

O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por exemplo, de que "Pensar a leitura como formação implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor: não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos (...) como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos." ?
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NOTAS

(1) A expressão "O livro é livresco, mas sem livros" é de João Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes, 1988, p.IX-XIII). Ele assim a caracteriza: "Sem livros, pratica-se no Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário, mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura, obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis; nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar, mastigar, degustar - a papa está pronta ".


(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi, através de vários estudos, também revela as nossas carências de infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade, incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura. Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora Laertes, 1996, p. 16.


Fonte:
Jason Prado e Paulo Condini. A Formação do Leitor: pontos de vista. RJ: Argus, 1999.

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