sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Fernando Sabino (O Bar da Esquina)

A designação de bar sugere características que o lugar não tinha - e não tem; continua lá até hoje, na Avenida Copacabana, esquina da Francisco Sá. Embora eu já não seja assíduo, creio que nada, além dos frequentadores, haja mudado.

É um balcão semicircular ao longo da esquina, no qual se serve tudo, do café ao sanduíche de presunto, passando por um traçado para os adeptos.

Em geral não bebíamos, a não ser um raríssimo chope. Tomávamos mesmo era um cafezinho, ou vários, três, quatro, renovando o pretexto de estarmos ali de conversa noite adentro, pois nem o café era lá essas coisas. Carlos Castello Branco, Evandro Carlos de Andrade, Fernando Lara Resende, Cláudio Mello e Souza Autran Dourado, Wilson Figueiredo, Carlos Alberto Tenório, Pedro Gomes - estes e outros, não necessariamente ao mesmo tempo, faziam parte da patota do Bar Bico, aberto dia e noite. De preferência à noite, até a madrugada. Éramos quase todos homens de jornal, e os jornais naquela época fechavam tarde, nunca liberando o pessoal antes de 11 horas, meia-noite.

Ao fim de duas horas de papo, já estávamos mortos de sono, em pé "como cavalo velho de rifa em barraquinha do interior" (na imagem de Marco Aurélio Matos, também frequentador assíduo). Quando nos dispúnhamos finalmente a ir para casa, surgia outro, trazendo bagagem nova de assuntos. Não tinha cabimento passar a noite inteira de pé, conversando fiado. Concordávamos com ele, mas estávamos ali apenas por alguns minutos, não era isso mesmo? Só mais um cafezinho para virgular o papo... E íamos ficando.

Otto Lara Resende - o que mais tempo nos retinha, arrastando-nos até o sol nascer com o sortilégio da sua boa conversa. Era também o que mais reclamava contra o tardio da hora, protestando sempre que já devia estar em casa há muito tempo. Certa época chegou mesmo a estabelecer com sua mulher um sistema de multas progressivas, como nos estacionamentos rotativos; pagaria a ela uma quantia preestabelecida por toda meia hora que excedesse a meia-noite. Era o limite que impunha a si mesmo, prometendo de trinta em trinta minutos não ultrapassá-lo um minuto sequer. Antes de iniciar novo assunto, perguntava-nos as horas. Cena noite, éramos três numa daquelas conversas de nos deixar com a língua de fora, quando um vulto se deteve no meio da rua e pôs-se a gritar:

- Faltam cinco para as duas.

- Bem - conformava-se ele, com um suspiro. - Então lá se vão mais cem pratas. Mas este caso que eu vou contar vale bem outra meia hora.

Despedia-se, enfim, de todos, quando via alguém mais se aproximando - o Borjalo, que morava ali perto, ou o Armando Nogueira, ou ambos. Era Burle Marx, o paisagista, que raramente aparecia:

- Só faltava esta - lastimava-se ele. - Com esses dois eu hoje vou à falência.

Paulo Mendes Campos era outro que sempre aparecia, em geral indo para algum lugar onde se pudesse sentar e tomar coisa melhor. Segundo sustentava, não tinha cabimento passar a noite inteira de pé, conversando fiado. Concordávamos com ele, mas estávamos ali apenas por alguns minutos, não era isso mesmo? Só mais um cafezinho para virgular o papo... E íamos ficando.

Certa noite, éramos três, numa daquelas conversas de nos deixar com a língua de fora, quando um vulto se deteve no meio da rua e pôs-se a gritar:

- Paulo! Otto! Fernando! Que coisa antiga, minha Nossa Senhora!

Ficamos apreensivos, pois ali perto já funcionava uma delegacia de polícia: não fossem nos prender, por conta de semelhante atoarda com o nosso nome no silêncio da madrugada.

Era Burle Marx, o paisagista, que raramente aparecia:

- Vocês três conversando aí nessa esquina a noite toda! Há quantos anos isso, meu Deus! Vão para casa, que vocês não têm mais nada que conversar! Que coisa antiiiga!

Para Rubem Braga, entretanto, o exemplo mais acabado de dissipação era passar a noite inteira junto a um café em pé discutindo futebol com o próprio pai, como fazia o crítico de cinema Moniz Viana.

Sobre o quê conversávamos? Sobre futebol, política, literatura, anedotas, amenidades. Tudo o que pode fazer o melhor da convivência entre amigos, que é o próprio sal da terra. Uma conversa enfiada na outra, abrangendo uma generalidade de assuntos que fossem do interesse de todos.

E de todos sei o destino que tiveram. Venceram na vida, casaram e mudaram. Mas continuam meus amigos e, desafiando os prudentes conselhos de Burle Marx, que coisa antiiiga! - a conversa também continua. Não mais no Bar Bico, mas onde quer que eu os encontre hoje em dia – ainda que sejam apenas figuras nascidas da lembrança, na solidão da noite...
                                          
Fontes: 
SABINO, Fernando. A Chave do Enigma.
Imagem = http://www.allartsgallery.com

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