quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) XI

foi mantida a grafia original.
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NOS CAMPOS

A fragrância do trevo e das flores selvagens
Da noite embalsamava as tépidas bafagens:
Ao longe os astros bons olhavam-nos dos céus.
O mundo era um altar; as serras grandes aras;
E os cânticos da paz corriam nas searas
Em honra do bom Deus.

No solene silêncio imersa ia minha alma
Em tranquila mudez; naquela doce calma
Que sente germinar os frescos vegetais.
De súbito uma voz deixou-me um pouco extático:
Detive-me um momento; olhei: — era o viático!


De noite a horas tais,
Que andava Deus fazendo, assim, pela campina,
Trazido pela mão dum padre sem batina
Roubado às sensações dum longo ressonar?
Fui seguindo o cortejo até que numa choça
O Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se a rezar.

Nos restos duma enxerga, ali, no vil casebre,
Um pobre cavador, mordido pela febre,
Torcia as grossas mãos nas ânsias do estertor;
E os filhos seminus sentindo a pena ignota
Tentavam-se esconder na velha saia rota
Da mãe louca de dor!

A voz do sacerdote a custo ressoava.
A palavra de amor que ali se precisava,
Não posso dizer bem se acaso ele a soltou.
Falava o Deus severo e forte dos castigos,
Ou esse bom Jesus que aos pés dalguns mendigos
Um dia ajoelhou?

Do padre tinham medo os trémulos pequenos.
Os magros cães fiéis erguendo-se dos fenos
Latiam tristemente em volta do casal:
E o levita lançava àquela noite escura
A bênção derradeira, erguendo a mão segura,
Num gesto maquinal!

Depois transpondo, à pressa, a porta da cabana,
Saía sem deixar da sã verdade humana
O bálsamo suave, o dom consolador!
Oh, decerto o Jesus de que nos falam tanto
Não era o que deixava ali, naquele canto
Sozinha a mesma dor!

Sorria Deus, no entanto, em toda a natureza!
Nas florestas, no vaia, nas serras, na devesa,
Nas moitas dos rosais, no movediço mar!
O constelado azul dir-se-ia um santuário!
Havia aquele albergue apenas solitário,
E frio o pobre lar!

E o rude agonizante, o triste moribundo
Que em breve ia partir; abandonar o mundo;
Os seus deixando sós, na terra, sem ninguém,
Talvez ao pressentir o fim da insana lida
Soltasse maldições, ainda, contra a vida
E contra nós também!

E eu lembrei-me então daqueles bons valentes
Que lutam todo o dia e vão morrer contentes
À noite, ao pé dos seus, depondo os vãos lauréis;
E daqueles, também, de frontes requeimadas
Que pela causa santa, em pé, nas barricadas,
Se batem contra os reis!

Lembraram-me os heróis, serenos, bons, austeros,
Que sagram toda a vida aos ideais severos
Da justiça e do bem; caindo com valor,
Sem que a dextra cruel dos déspotas os dome
Nas batalhas da ideia; opressos pela fome,
Varados pela dor!

Ó pobres multidões! As grandes noites frias
Não cessam de morder, famintas e sombrias,
Num banquete nefando os Vossos corpos nus!
E o lírio da justiça, a grande flor sagrada,
Nem sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada,
As pétalas de luz!

Eu quando porém lanço as vistas ao futuro
E vejo dia a dia a despontar mais puro
O grande sol da ideia, em rúbidos clarões,
Recordo-me que sois a produtiva leiva
Aonde já circula uma opulenta seiva,
De grandes criações!

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