quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nilto Maciel (O Vencedor)

A plateia lotava o auditório. Estudantes, professores, curiosos em geral, além de escritores locais e de fora. Repórteres de televisão, jornal e até rádio. Iluminavam o recinto com suas luzes importunas. Mocinhas mostravam os dentes, matronas se esparramavam nas cadeiras, velhotes faziam caretas. Ninguém queria perder um só detalhe da festa. O vencedor talvez até saísse carregado nos braços da multidão, consagrado para todo o sempre.

À mesa sentaram-se altas autoridades: o governador, acadêmicos, bispos. Ao centro, o patrocinador do concurso, doutor Miro Spiegel, que abriu a solenidade com um discurso enfadonho, de tão longo, repleto de citações — de Aristóteles a Zaratustra. Aplausos não lhe faltaram, o que o fez perder o fio da meada por diversas vezes.

— Como eu dizia... quero dizer, Nietzsche escreveu...

Ao virar a enésima folha sobre a mesa, anunciou final­mente o item mais importante de sua prédica e da festa — ia revelar o nome do vencedor. A plateia subitamente emudeceu. Suspiravam os corações esperançosos. Todos os olhos miravam a boquinha miúda do discursador.

— Vou anunciar o nome do grande vitorioso — repetiu Miro.

A multidão se fez mais atenta, pescoços esticados para a frente, mãos em concha ao redor dos ouvidos, como se a voz de Miro não jorrasse dos possantes amplificadores espalhados pelo auditório.

— O título da obra é...

Miro Spiegel empalideceu, sorveu meio copo de água, esfregou o lenço na testa.

— Desculpem, estou emocionado.

Alguém gritou um desaforo. Exigia brevidade.

— A obra vitoriosa foi Ao vencedor, as batatas.

Houve palmas, muitas palmas, na plateia e na mesa. O go­vernador chegou a sorrir, acadêmicos tossiram, fungaram, pigarrearam, bispos beijaram crucifixos, e Miro Spiegel não parava de enxugar o suor do rosto. As luzes dos repórteres provocavam muito calor. E os corpos da multidão também.

Miro Spiegel, diziam seus biógrafos mais impiedosos, quer às mesas dos bares, quer às cadeiras dos lares, alimentou duran­te anos seguidos o sonho de ter editado um livro. Não numa edição qualquer, por conta própria, mas por editora de peso, que aprovasse sua obra. Escreveu desde a mais tenra barba e nunca conseguiu um só editor. Nem mesmo promessa. Participou de todos os concursos literários — nacionais, estaduais e municipais — e nunca sequer lhe devolveram os originais. Não desistia, porém, da mania de ser literato. Ou de conviver com a literatura. Daí o patrocínio do importante prêmio denominado “Machado de Assis”, para romance inédito. O ganhador teria a obra editada por qualquer das grandes editoras do país, receberia uma quantia em dinheiro equivalente ao valor de luxuoso apartamento em Copacabana e seria divulgado nacionalmente. Tudo patrocinado pelo próprio Spiegel, acionista majoritário de um conglomerado de empresas do ramo de vidros.

A festa, então, chegava ao seu clímax. A plateia inteira já conhecia o título da obra vitoriosa. Logo a imprensa divulgaria a notícia para os quatro cantos do país.

— Não sei se está escrito aqui o pseudônimo ou o nome verdadeiro do autor — retomou a palavra Miro. — Quero crer que possa se tratar de uma singela homenagem...

Quando declinou o nome do vencedor, a plateia riu, entusiasmou-se, gritou, aplaudiu. Não, talvez houvesse algum equívoco. Ou uma brincadeira de mau gosto. Sim, queriam empanar o brilho da festa. E o rosto de Spiegel encheu-se de rugas, sisudez, pavor. Como se a morte se houvesse instalado nele. Ainda assim, retomou o microfone:

— Senhor Miro Spiegel, ou quem quer que se esconda atrás deste pseudônimo, queira aproximar-se da mesa.

Os olhos de todos se esbugalharam, prontos a ver primeiro o vencedor. Quem seria o genial romancista? Quem seria o irônico criador de tão estranho pseudônimo?

E, saído do meio da plateia, de algum lugar do mundo, surgiu no corredor, entre fotógrafos e retardatários, uma figura sisuda, silenciosa, solerte, quase inerte, não fosse caminhar em direção à mesa. Pausada e misteriosamente andava, sob os olhares estupefatos da plateia e da mesa.

— Quem é ele? — murmuravam.

Ninguém parecia conhecê-lo, pois todos o olhavam como se o vissem pela primeira vez.

— Talvez não seja o vencedor.

— Algum engraçadinho.

— Um doido qualquer.

O homem aproximou-se do tablado, subiu mecanicamente os degraus, e já Miro Spiegel o esperava, de pé, pronto para os parabéns da eternidade.

Sobre a mesa brilhava uma medalha de ouro, junto a um diploma em pergaminho e um cheque milionário.

A plateia, calada, parecia encantada, como se o tempo tivesse parado, toda voltada para o instante supremo. E então o desconhecido aproximou-se mais e mais de Miro Spiegel, apertaram-se as mãos, abraçaram-se e fundiram-se num só.

Fonte:
Nilto Maciel. As Insolentes patas do Cão

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