domingo, 17 de novembro de 2013

Alexandre O`Neill (Poesias Avulsas)

Albertina

"Albertina" ou "O inseto-insulto" ou "O quotidiano recebido como mosca"


O poeta está só, completamente só.
Do nariz vai tirando alguns minutos
De abstração, alguns minutos
Do nariz para o chão
Ou colados sob o tampo da mesa
Onde o poeta é todo cotovelos
E espera um minuto de beleza.
Mas o poeta é aos novelos;
Mas o poeta já não tem a certeza
De segurar a musa, aquela
que tantas vezes, arrastou pelos cabelos...
A mosca Albertina, que ele domesticava,
Vem agora ao papel, como um inseto-insulto,
Mas fingindo que o poeta a esperava ...

Quase mulher e muito mosca,
Albertina quer o poeta para si,
Quer sem versos o poeta.
Por isso fica, mosca-mulher, por ali...

- Albertina!, deixa-me em paz, consente
Que eu falhe neste papel tão branco e insolente
Onde belo e ausente um verso eu sei que está!

- Albertina! eu quero um verso que não há!...

Conjugal, provocante, moreno e azulado,
O inseto levanta, revoluteia, desce
E, em lugar do verso que não aparece,
No papel se demora como um insulto alado.

E o poeta sai de chôfre, por uns tempos desalmado …

O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar…

Cão

Cão passageiro, cão estrito,
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara-lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado,
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
De remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, cão tétrico, maldito,
A desfazer-se num ganido,
A refazer-se num latido,
Cão disparado: cão aqui,
Cão além, e sempre cão.
Cão amarrado, preso a um fio de cheiro,
Cão a esburgar o osso
Essencial do dia a dia,
Cão estouvado de alegria,
Cão formal de poesia,
Cão-sonêto de ão-ão bem martelado,
Cão moldo de pancada
E condoído do dono,
Cão: esfera do sono,
Cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
Cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
Cão de olhos que afligem,
Cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

A central das frases

... já te disse que são os do primeiro...
... e afinal não pudémos telefonar...
... ai nem queira saber o engenheiro...
... se me dão licença eu vou contar...

... penses nisso era só o que faltava...
... não as outras duas é que são as tais...
... mas o senhor presidente autorizava...
... na avenida centenas de pardais...

... de facto muito inteligente...
... ó filha por aqui fazes favor...
... que veio ontem para falar com a gente...
... é mesmo lá ao fim do corredor…

Fala

Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.

Inventário

Um dente d'ouro a rir dos panfletos
Um marido afinal ignorante
Dois corvos mesmo muito pretos
Um polícia que diz que garante

A costureira muito desgraçada
Uma máquina infernal de fazer fumo
Um professor que não sabe quase nada
Um colossalmente bom aluno

Um revolver já desiludido
Uma criança doida de alegria
Um imenso tempo perdido
Um adepto da simetria

Um conde que cora ao ser condecorado
Um homem que ri de tristeza
Um amante perdido encontrado
Um gafanhoto chamado surpresa

O desertor cantando no coreto
Um malandrão que vem pe-ante-pé
Um senhor vestidíssimo de preto
Um organista que perde a fé

Um sujeito enganando os amorosos
Um cachimbo cantando a marselhesa
Dois detidos de fato perigosos
Um instantinho de beleza

Um octogenário divertido
Um menino colecionando estampas
Um congressista que diz Eu não prossigo
Uma velha que morre a páginas tantas

Poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos Sim
a ratos

Um adeus português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensangüentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Velha fábula em bossa nova

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora
não querer.

(- Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)

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