terça-feira, 19 de novembro de 2013

Jair Ferreira dos Santos (Justiça eleitoral)

A crônica de Monte Castelo registra pelo menos um original, ou figuraça, se preferirem, gente aliás que parece viver conforme a divisa da coroa inglesa: jamais reclamar, jamais explicar. Boanerges, o Boina não reclamava da sua magreza espigada e soturna, que o obrigava a andar quase lento, meio encurvado nem das suas inesperadas crises de asma, assim como nunca explicou porque usava direto, o tempo todo e em toda parte, aquela boina azul ou grená ou bege ou preta, num lugar onde o vento era, para dizer o mínimo, calamitoso.

Seus amigos no bocha implicavam calados, porque embora no verão o suor lhe descesse da testa para o rosto, o pescoço, queriam jogar em paz. Na Varig, onde emitia passagens ou empatava as horas, em silêncio, desenhando pássaros no verso dos conhecimentos, os colegas desistiram de questionar, se acostumaram à bizarrice. Até mesmo padre Schneider, um alemão grosso como um toco de açougue, se curvou à sua vontade, pois o autorizou a comungar emboinado. A qualquer pergunta sobre, respondia apenas: "foro íntimo".

Tão íntimo quanto impecável. As boinas, que a rigor ninguém sabia de onde vinham, se materializavam na sua cabeça sempre perfeitas e mesmo, se diria até, espiritadas. Fosse a mais comum, a azul, com uns pespontos brancos na bainha, ou a preta, militar, com ilhoses por dentro mas sem as fitinhas de luto, ou ainda a grená, quadrangular como o barrete dos cardeais, de pingente cortado elas nunca estavam amassadas nem frouxas no lugar, e punham-lhe às vezes uma incerta inspiração, algo entre o poeta e o biruta.

Além da boina havia Marieva, a polaquinha que visitava na zona uma vez por mês. Soube-se - ela deu o serviço - que trepar de boina e a posição cata-cavaco no escuro não estavam incluídas no preço, saíam por fora Mas Boanerges tinha ainda outra mania: eleições. Não política, eleições. Ele gostava a valer do foguetório, das intrigas das faixas e bandeirolas das churrascadas, dos últimos comícios.

Porque, afinal, tudo isso culminava na 7ª seção instalada no clube Kai-kan, dos japoneses, que ele com seu terno cinza, sua borboleta verde, presidia ereto na cadeira, os braços estendidos sobre a mesa como um patriarca. Ali seu rosto alongado perdia a dispersão do palerma para se estreitar numa crispação fanática. Ali ele era a lei e a ordem, ou melhor, a única lei e ordem. Ali não havia cabala nem repeteco nem morto-de-repente-vivo votando. Ali a vigilância não matava a paciência – o Boina era sempre solícito ao orientar os eleitores. Mas sobretudo, se ali estava ele, era também para saborear as caras insatisfeitas, vingativas, traidoras, vitoriosas, endomorfas (aquelas como que tragadas por um segredo) ao saírem da cabine, para mais tarde, reservadamente, acertar com porcentual altíssimo em quem sicrano ou beltrano haviam votado. Para rematar, depois, no escrutínio, a cada eleição engrossava a sua já famosa coleção de cédulas anuladas com dizeres tipo "Judas" "Pelé", "Você me paga", "corno", "safado" e o infalível "Peço-lhe em casamento”.

Deu-se então que a segunda e a terceira manias de Boanerges se cruzaram numa votação no início dos anos 1960. Dona Rosita, a louraça parruda mulher do atacadista Leonel Farinha, o vice-prefeito, achou pouco decente que Marieva fumasse cigarrilhas Talvis justo na sua frente, na fila para votar, pesteando o ar. O “te-deum” não prosperou. O presidente da mesa, o código eleitoral todinho no coco, veio e decidiu a favor de Marieva, informando não haver parágrafo nem inciso que proibisse ao eleitor acender cigarros ou cigarrilhas na fila.

Quanto à primeira mania, a boina, dois anos depois ela repicou em cima do seu destino. Reunidos os mesários no fórum para que o juiz os orientasse quanto a uma nova eleição, Boanerges soube que estava fora do pleito. Exatamente nisso, alguém escancarou as portas do salão e um pé-de-vento moleque lhe tirou a boina, que rodopiou no ar nuns volteios loucos e felizes até rolar pelo chão.

Em Boanerges o que se viu, na calva, foi um afundamento escabroso na crista, de onde emergia aquela calosidade igual a um dedo que se alteava, na frente, num talo de boa polegada salpicado de verruguetas. Foi Salvador, um espírito coxo, quem quebrou o pasmo gritando: "curuquerê, curuquerê"; a calosidade lembrava a lagarta que comia as folhas do algodão. Não se sabe que horrores relampejaram na mente do Boina, mas o fato é que o homem foi salvo do vexame pela asma. Uma crise de sufocação acabou com os risos, mandando-o na maca para a Santa Casa.

Bem, ele nunca mais usou boina. Nem votou. Passeava sua deformidade pelas ruas como um escárnio que maltratava a compaixão. Havia raiva e desgosto na pena que provocava. Ele desaforava os munícipes, disse um. A Varig o demitiu. Beatas se persignavam ao cruzar com ele. O padre Schneider e vários médicos tentaram convencê-lo a se operar. Ele perguntou: qual é o pó? Políticos vieram prometer-lhe a 7a seção de volta; se recusou a recebê-los. A teimosia em não tirar a boina, e agora o entesamento em não usá-la foram postos na conta da toleima; com o tempo seu defeito se tornou uma desaparição, um fantasma negativo nas pessoas, esse jeito de esquecer com os olhos.

Passaram-se duas décadas. Boanerges, o Curuquerê, aposentou-se nas lojas Hermes Macedo, onde um maçom havia lhe arranjado colocação na conferência de estoque. Comprou uma lambreta. Lia Allan Kardec mas continuava comungando. E matriculou-se de repente no curso de pintura acrílica no Sesc, o único homem entre doze mulheres. O velho fórum foi então reformado para se transformar em centro cultural. E o que fez o Boina na inauguração? Mandou Salvador, agora o briago dos briagos na cidade, entregar seu quadro "Justiça Eleitoral" durante a solenidade de abertura, quando se aceitariam doações, viajando para o sul em visita a parentes que nunca o visitavam. A pintura, em estilo ingênuo, tons fortes, apresentava uma vista aérea de Monte Castelo dividida em duas partes: numa havia gente normal nas ruas e casas, na outra, à direita, rastejavam curuquerês, pulgões, lacraias, ácaros, larvas, aranhas, gafanhotos, brocas todos com rostos de antigos ou atuais moradores desafetos seus, Leonel Farinha semitransfigurado em carrapato; sobre eles um teco-teco despejava nuvens de pesticida. Enquanto isso, no canto superior à esquerda, Boanerges, emboinado, borboletado, tronava numa mesa com seu terno cinza

Na briga entre a arte e o acinte venceu a conveniência. O quadro está numa sala remota do centro cultural. Ainda hoje existem cidadãos pró e contra. De todo modo, comentou-se na época, esta era a terceira derrota que o Boina infligia a Monte Castelo. Nunca tirou a boina, nunca mais usou a boina, emplacou o seu quadro-sarcasmo. Surgiram boatos desencontrados sobre suas depois repetidas viagens ao sul. Um deles dizia que Boanerges fora visto na Confeitaria das Famílias, em Curitiba, todo emperucado, a conversar animadamente com uma senhora a cara e as nádegas de dona Rosita - troço absurdo. Quando no bar do Sinésio alguém lhe perguntou na bucha se isso era verdade, se o boato tinha fundamento, seus olhos cresceram como se despertasse de um longo sonho acordado. E em vez do "foro íntimo", ouviu-se o homem dizer, braços abertos, a palma das mãos para cima, desbritanizando-se num sorriso maroto: "claro, oras, mais justiça eleitoral".

 Fontes:
http://www.quemtemsedevenha.com.br
Imagem = http://orodaviva.blogspot.com

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