sábado, 23 de novembro de 2013

John Banville (O Mar)

O escritor e crítico literário irlandês John Banville, 61 anos, é quase um desconhecido do público brasileiro. O que não chega a ser surpresa: ele também não goza lá de grande fama entre os leitores anglófonos. Considerado um autor “difícil” por sua prosa poeticamente trabalhada e pelo ritmo lento de suas narrativas, Banville nunca teve vendas além de uns poucos milhares de exemplares – tiragem de ficcionista brasileiro – até ganhar o Booker Prize de 2005, e com ele uma avalanche de manchetes, por este “O mar”. O romance é narrado de forma não linear por um crítico de arte de meia-idade que, tentando se recuperar da morte da mulher, retorna à cidadezinha praiana onde passava férias na infância e mergulha num mar de memórias dolorosas. A maior parte da crítica internacional saudou o livro como a obra-prima de Banville, e os elogios, embora eu ainda esteja no início da leitura, me parecem fundados.

A sinopse do livro nos conta o seguinte: "Neste romance, John Banville constrói uma narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. Em 'O mar', Banville conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante presença da morte."

Banville constrói sua narrativa com idas e vindas em seu passado, presente e por assim dizer a projeção do futuro. Narrativa entrecortada, mas que com as palavras certas, e um certo tom irônico e às vezes cômico, nos leva a participar da história, da sua dor, da construção da sua vida e dos momentos por vezes imaginário.

Lidar com perdas, com dor, não é tarefa simples, mas não o torna um livro pesado e arrastado, pelo contrário, apesar de ter deixado em mim algumas marcas, é uma narrativa que nos faz pensar em algumas coisas sim, acerca da vida e da morte.

Em alguns trechos do livro, nos identificamos, pois a linguagem simples e clara do autor, nos leva a essa imediata empatia.

A beleza hipnótica de sua prosa, conservada pela tradução, brilha no trecho abaixo, que abre o livro:

Os deuses partiram no dia daquela maré estranha. Durante toda a manhã, sob um céu leitoso, as águas da baía foram subindo, subindo, atingindo alturas inauditas, com pequenas ondas lambendo a areia ressecada que, por anos a fio, não soube o que era umidade, a não ser pela chuva, e chegando até a base das dunas. Os despojos enferrujados do velho navio encalhado lá na entrada da barra, e que, para qualquer um de nós, estavam naquele lugar desde sempre, devem ter achado que tinha chegado a hora de voltar a navegar. Depois daquele dia, nunca mais nadei. As aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente. Naquele dia, os pássaros estavam mais brancos, com uma cor nada natural. As ondas iam deixando uma faixa de espuma amarelada na areia. Nenhuma vela manchava a linha do horizonte. Não, não voltei a nadar depois desse dia. Nunca mais.

Acabou de passar alguém sobre o meu túmulo. Alguém.

A casa se chama Os Cedros, como antigamente. Um punhado eriçado dessas árvores, de um marrom cor-de-macaco, um cheiro rançoso de resina e os troncos assustadoramente retorcidos, ainda cresce à esquerda da casa, diante de um gramado maltratado que fica defronte da grande janela abaulada do cômodo que era a sala de visitas, mas que Miss Vavasour, como boa profissional do ramo, preferia chamar de saguão. A porta da frente fica do outro lado, dando para um pátio quadrado, recoberto de cascalho manchado de óleo, logo depois do portão ainda pintado de verde, embora a ferrugem tenha reduzido aquela pomposa grade a uma frágil filigrana. Fiquei impressionado ao ver como tudo mudou tão pouco nos mais de cinqüenta anos que se passaram desde que estive aqui pela última vez. Impressionado, e desapontado. Diria até horrorizado, por razões que não consigo descobrir; afinal, por que eu desejaria que as coisas houvessem mudado, logo eu, que voltei a viver em meio aos escombros do passado?

Não sei por que a casa foi construída desse jeito, de lado, com uma parede branca e sem janelas virada para a rua; talvez, em outros tempos, antes da construção da estrada de ferro, o traçado da rua também fosse diferente, passando bem diante da porta da frente. Tudo é possível… Miss V. é bastante vaga quanto a datas, mas acha que, de início, construíram ali uma casinha pequena, em princípios do século passado, quero dizer, do anterior, estou perdendo a noção dos milênios, e, depois, foram fazendo obras e aumentando a casa meio aleatoriamente ao longo dos anos. Isso explicaria o ar caótico daquela construção, com salinhas que dão passagem para outras salas maiores, janelas que se abrem para paredes cegas, e tetos baixos de ponta a ponta da casa. O assoalho de pinho dá um toque náutico ao local, assim como a minha cadeira de rodinhas, com encosto de ripas de madeira. Posso até imaginar um velho lobo-do-mar, cochilando ao pé da lareira, finalmente assentado em terra firme, e o vento do inverno fazendo as janelas baterem. Ah, ser esse marinheiro… Ter sido ele…

Quando estive aqui tantos anos atrás, no tempo dos deuses, Os Cedros era uma casa de veraneio, alugada por quinzena ou por mês. Todo ano, em junho, um médico rico e sua família estridente infestavam o lugar — não gostávamos dos seus filhos esganiçados, que riam de nós e ficavam nos atirando pedras, protegidos pela barreira impenetrável do portão. Depois deles, vinha um casal misterioso, de meia-idade, que não falava com ninguém e quase toda manhã levava, sempre de cara amarrada, o cachorro salsicha para passear, descendo a Station Road até a praia. Para nós, agosto era o mês mais interessante naquela casa. A cada ano, havia inquilinos diferentes, gente da Inglaterra ou do Continente; uns casais esquisitos em lua-de-mel, que ficávamos tentando espionar, e, certa vez, veio inclusive uma trupe de teatro ambulante que estava se apresentando na matinê do cinema do vilarejo, com o seu telhado de zinco. E, então, naquele ano, veio a família Grace.

"Há momentos em que o passado tem tanta força que parece que vamos ser aniquilados por ele.
" página 43

E mais um trecho que faz pensar bastante:

"Os últimos raios de luz do dia, que eu podia ver em parte pela metade superior da janela do bar que não era pintada, tinham aquela tonalidade raivosa de um marrom-arroxeado que acho comovente, mas, ao mesmo tempo, perturbadora, e que é a própria cor do inverno. Não que eu tenha algo contra o inverno; na verdade, é a minha estação favorita, juntamente com o outono; mas, este ano, esse brilho de novembro parecia o presságio de algo mais do que o inverno, e mergulhei num clima de amarga melancolia." página 212

Os livros nos escolhem e sempre nos impregnam com suas linhas e palavras, para mim é mágico, por vezes curativo, por vezes arrebatador e também serve de alerta.

Fontes:
Letícia Alves in  http://www.minhastempestades.com.br/2013/04/o-mar-john-banville.html
Sérgio Rodrigues in http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/primeira-mao/john-banville-o-mar/

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