domingo, 22 de dezembro de 2013

Airton Monte (Velho ao Telescópio)

Do sobrado via-se o quintal: verde, ondulado mar de goiabeiras, figueiras, bananeiras e o gorjeio dos pássaros ao fundo reinventando Bach. Os óculos na ponta do nariz dão-lhe um ar de velho carpinteiro. Falta-lhe apenas Pinóquio para ser Gepeto.

No centro do terraço, um pouco elevado em relação ao resto do sobrado, repousa um telescópio coberto por uma capa de lona. Todo o universo gira em torno desse objeto mágico, principalmente o telescópio, autor de maravilhosas alquimias: sonhos cansados de um homem velho que vai morrendo aos poucos envolto em estranho brilho.

A vida resume-se em atos tão simples como comer, dormir (não, não pode comer muito, o velho estômago ranzinza rezinga em demasia), sentar-se ao telescópio e ver os mundos.

Sim, por certo ver os mundos. Não somente olhar como se olha o sujo no canto da unha, o nó da gravata, a poeira que sobe do chão cheirando a chuva e abre os dedos magros no ar.

Isso passara a vida aprendendo. Tudo que lhe restara fazer. Mais nada antes ou depois. Quanto mais agora, que se achava prestes a despedir-se. Pensava com seus rotineiros botões: não sabia contar histórias. Fazer histórias era ocupação mais tola que não lhe cativava. Também, pra que criar, contar histórias? Não tinha netos a quem contá-las. O único filho há muito engolido pelo mundo sem qualquer notícia todos esses tristes, longos anos.

A mulher, coitadinha, quase cega pela catarata, caduca, pernas entrevadas, o dia inteiro na cama, as mãos desenrolando fios pesados do passado do carretel de lã jogado no assoalho.

O telescópio comprara faz trinta anos, na primeira e última viagem feita à capital. Mas o sobrado já existia há tanto, tanto, tanto tempo. Nele nascera e dentro do sombrio e austero casarão, criança ainda, vira morrer os pais no mesmo quarto onde alguns anos mais tarde juntara o corpo em frêmito ao de Cândida, então bonita e tão cheia de pudor. Ela atendia pelo doce apelido de Candinha e não tinha os dedos engrossados pelo reumatismo. A pinta negrazulada no ombro esquerdo que a camisola de branca renda realçava não era esta verruga eriçada de pêlos negros como o dorso de uma caranguejeira.

Onde depositar seu beijo mais doce? Sua carícia mais suave, louca fragrância perdida, delírio manso? Cotovelos no balaústre o olhar se aperta, a boca se franze num sorriso murcho quando lembra o filho miúdo, monstrinho enrugado, cara chocha, sumida entre as cobertas bordadas, o rosto cansado de Candinha banhado de felicidade naquela madrugada. Um filho, emoção mais súbita, brusca torrente solta pelo peito na alegria acesa das brasas dos charutos, no brilho borbulhante da champanha.

Depois, já homem feito, alto, magro, belo, Gonçalvinho indo estudar na capital, o trem desenrolando o futuro nos trilhos batidos de sol. Um belo dia a notícia: Gonçalvinho preso. O telegrama tremia-lhe nas mãos. Passou em claro toda a noite. Os dois, pois Candinha desfiou quilômetros de orações no rosário prateado, um com medo de olhar pro outro, Candinha rezando o terço em voz contrita.

Bem que avisara. Lendo todos aqueles livros de língua enrolada, os amigos esquisitos de ocultas conversas deslizando pelos botequins, pelos bares, pelos redutos das sofridas repúblicas de estudantes.

A longa peregrinação pelos amigos influentes, estendendo a mão num apelo mudo, o coração de pai exposto à piedade dos coronéis, deputados, até o filho ser solto finalmente. Vinha mais magro de volta do trem. Olheiras profundas, chega quase não se podia ver os olhos azuis. Mas, o brilho de seu olhar era o mesmo, a mesma fala apaixonada tentando explicar-lhe coisas que não compreendia muito bem, mas sentia o coração encolher, encolher até que não havia mais coração nem nada e no vazio do peito opresso medrava o fruto áspero do medo.

Súbito, o sumiço. Rápido, brutal, sem palavras, sem abraço último, beijo derradeiro na face barbada. Seis meses depois, chegou a carta com endereço de Paris. Breves palavras de um carinho vago e a sentença cortante:

“Pai, tudo bem comigo. Vou pra Espanha lutar pela liberdade. Não me queiram mal. Sua bênção. Do filho que muito lhe ama”.

A vida foi só isso. Dez palavras numa carta em papel azul que Dona Candinha trazia sempre fechada no cofre de pinho junto às poucas joias da família: colar de pérola, brincos de diamante, uma pulseira de prata mexicana.

No quarto ouve a tosse seca da mulher. De quando em quando um suspiro comprido, frase solta, gemido. Hoje os pardais estão tardando. Não gosta de sabiás. Lembra o filho pequeno armando arapucas na sombra da velha mangueira. No bolso do pijama o pão desfeito em migalhas tão inúteis na tarde. Por que não vêm os pardais? Foram pra Espanha também?

A frieza da tarde embaça os óculos. A mão trêmula esfrega lentamente o vidro espesso da janela. Não tem pressa. Não precisa ter pressa. Não tem nenhuma razão pra ter pressa. Portanto, apenas move lentamente os olhos circunvagando o espaço em volta. O telescópio no terraço. Céu bonito em volta. Pode ser que chova. Há pouco ouviu o grito das marrecas. Não gosta de chuva. As estrelas somem e ele fica preso no sem mundos, cada vez mais só.

Se o filho tivesse pelo menos na lua. Aguçando a vista um pouco quem sabe não divisava seu vulto entre os buracos do queijo? Diabo é que a Espanha é longe, do outro lado do mundo. A Espanha é muito mais longe que a lua. Dona Cândida conversa sozinha com seus fantasmas. Feliz dela, de nunca estar sozinha.

Muitas vezes ficara matutando, olho grudado na Ursa Maior; quem irá primeiro? Melhor que seja ela, pobrezinha. Assim não sofreria tanto. Se for ele primeiro, quem vai cuidá-la de noite? Fechar a janela se o frio aumentar? Lembrar do xarope pra tosse, do remédio pra asma? O chá de erva-doce, doces, tenros peitinhos de frango boiando na canja dada de colherinha na boca de menina velha? Quem lhe ouvirá as histórias mais bobas? Quem lhe trará a lã vermelha para o eterno sapatinho do filho?

A morte é uma coisa muito engraçada. Depois que a gente se acostuma com a ideia tudo fica mais fácil, indolor, destituído de mistério. Até o medo vai encolhendo, ficando do tamanho daquele sujo de mosca na vidraça.

Morrer deve ser bom. Quem sabe não vira pardal, pedaço de cometa, luz de meteoro, quinta ponta de uma estrela? Mas, quando não houver mais Dr. Gonçalves neste mundo de meu Deus, o que será do telescópio? Quem untará, numa carícia de noivo, suas juntas entorpecidas de animal mitológico, raspando a ferrugem com punhados de bombril? Que olho substituirá seu olho por trás da lente arranhada? Ou simplesmente não haverá mais pupilas sonhadoras rastreando mundos no fim de cada tarde?

Podem até demolir o casarão, vender o telescópio como ferro velho, objeto de antiquário, ou simplesmente deixá-lo apodrecer em qualquer sótão, esquecido, vazio de mundos, coberto de sujo, o tripé de madeira trabalhada todo roído pelo dente fino dos ratos.

Ergue a lona devagar como se despisse uma mulher. Como se trocasse as fraldas, madrugadinha, de um bebê. A primeira gota cai na ponta do nariz. É enorme e brilha nas sete cores do arco-íris. Repõe a lona depressa com cuidados de mãe. Ri do pensamento avariado. Pode pegar um resfriado. Resfriado. Como se telescópio fosse capaz de sentir essas tais coisas frágeis de gente humana. Telescópio não é besta não. Não é à toa que ele sempre vê mais longe, vencendo o olho humano.

Entra, corre a porta de vidro e fica olhando a chuva cair, monótona e dolorida.

– É, com esse tempo assim pesado, bem capaz de não vir nenhum pardal.

 (Airton Monte, Homem Não Chora)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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