sábado, 28 de dezembro de 2013

Francisca Júlia (Cristais Poéticos)

DESEJO INÚTIL
(a Vicente de Carvalho)

Qualquer cousa afinal de belo escolher devo
Para em verso plasmar no esforço da obra-prima:
Flor que viceja à sombra, asa que paira em cima,
Aroma de um pomar ou de um campo de trevo.

Aroma, ou asa, ou flor... Tudo o que diga e exprima
Perde, ao moldar-se em verso, o seu próprio relevo,
Porque sinto, mau grado a glória com que escrevo,
Presa a imaginação no limite da rima.

Não val pois provocar, e sem que isto te praza,
Minh'alma, e por amor d'arte que se não doma,
A mágoa que te dói e a febre que te abrasa:

O aroma, sente! est'asa, admira! esta flor, toma!
Mas deixa continuar inexprimidas a asa,
A beleza da flor e a frescura do aroma.

A CAÇADA
(a Valentim Magalhães)

Ao mirante gentil de construção bizarra
Acabou de subir naquele mesmo instante
Em que o seu noivo foi à caça; e, palpitante,
Lá fora cuida ouvir os sons de uma fanfarra.

E, ao mesmo tempo ouvindo o selvagem descante
Que, entre as folhas, sibila a estrídula cigarra,
Ela vai ler a carta onde o seu noivo narra
A dor que há de sofrer quando estiver distante...

E dorme, vendo o sol que, através de uma escassa
Nuvem branca, ilumina as íngremes encostas
Onde aos saltos rabeia a matilha da caça;

E, bem perto, ao rumor de trompas e ladridos,
O seu noivo gentil que, de espingarda às costas,
Lhe oferta uma porção de pássaros feridos...

SONHO AFRICANO
(a João Ribeiro)

Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa
Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo;
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinábrio em torno à carapinha densa.

Estira-se no chão... Tanta fadiga e doença!
Espreguiça, boceja... O apagado cachimbo
Na boca, nessa meia escuridão de limbo,
Mole, semicerrando os dúbios olhos, pensa...

Pensa na pátria, além... As florestas gigantes
Se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa,
Vivem negros reptis e enormes elefantes...

Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranqüilos...
Desce um rio, a cantar... Coalham-se à tona d'água,
Em compacto apertão, os velhos crocodilos...

RAINHA DAS ÁGUAS
(a Alberto de Oliveira)

Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro
Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira,
Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,
Na esguia concha azul orladurada de ouro.

Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro;
Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira,
Das ondas a seguir a luminosa esteira,
Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.

Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia,
Lambem de popa à proa o casco à concha esguia,
Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana;

E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios,
Saúda esse outro sol de coruscantes raios
Que orna a cabeça real da bela soberana.

A FLORISTA

Suspensa ao braço a grávida corbelha,
Segue a passo, tranquila... O sol faísca...
Os seus carmíneos lábios de mourisca
Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha.

Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha
Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca,
O pó do chão, pertinho dela, cisca,
Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha...

Aos ouvidos lhe soa um rumor brando
De folhas... Pouco a pouco, um leve sono
Lhe vai as grandes pálpebras cerrando...

Cai-lhe de um pé o rústico tamanco...
E assim descalça, mostra, em abandono,
O vultinho de um pé macio e branco.

A UM ARTISTA

Mergulha o teu olhar de fino colarista
No azul: medita um pouco, e escreve; um nada quase:
Um trecho só de prosa, uma estrofe, uma frase
Que patenteie a mão de um requintado artista.

Escreve! Molha a pena, o leve estilo enrista!
Pinta um canto do céu, uma nuvem de gaze
Solta, brilhante ao sol; e que a alma se te vaze
Na cópia dessa luz que nos deslumbra a vista.

Escreve!... Um céu ostenta o matiz da celagem
Onde erra o sol, moroso, entre vapores brancos,
Irisando, ao de leve, o verde da paisagem...

Uma ave banha ao sol o esplêndido plumacho...
Num recanto de bosque, a lamber os barrancos,
Espumeja em cachões uma cachoeira embaixo...

OS ARGONAUTAS
 

Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano;
Os astros e o luar — amigas sentinelas —
Lançam bênçãos de cima às largas caravelas
Que rasgam fortemente a vastidão do oceano.

Ei-los que vão buscar noutras paragens belas
Infindos cabedais de algum tesouro arcano...
E o vento austral que passa, em cóleras, ufano,
Faz palpitar o bojo às retesadas velas.

Novos céus querem ver, miríficas belezas,
Querem também possuir tesouros e riquezas
Como essas naus, que têm galhardetes e mastros...

Ateiam-lhes a febre essas minas supostas...
E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas,
A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros...

DANÇA DE CENTAURAS

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica pára e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

MAHABARATA

Abre esse grande poema onde a imaginativa
De Vyasa, num fragor ecoante de cascata,
Tantas façanhas conta, e dessa estrênua e diva
Progênie de Pandu tantas glórias relata!

Ora Kansa, a suprema encarnação do Siva,
Ora os suaves perfis de Krishna e de Virata
Perpassam, como heróis, numa onda reversiva,
Nas estrofes caudais do grande Mahabarata.

Olha este incêndio e pasma; aspecto belo e triste!
Caminha agora a passo este deserto areoso...
Por cima o céu imenso onde palpitam sóis...

Corre tudo, ofegante, e, finalmente, assiste
À ascensão de Iudhishthira ao suarga luminoso
E à apoteose final dos últimos heróis.

PAISAGEM

Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim das árvores avanço.

Ao fundo do pomar, entre as folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do límpido regato.

Nenhuma ave sequer sobre a macia alfombra
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechã sob a noturna sombra.

E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas adentro entrando, a noite desce, desce...
E espalham-se no céu camândulas de estrelas...

EM SONDA

Quieta, enrolada a um tronco, ameaçadora e hedionda,
A "boa" espia... Em cima estende-se a folhagem
Que um vento manso faz oscilar, de onda em onda,
Com a sua noturna e amorosa bafagem.

Um luar mortiço banha a floresta de Sonda,
Desde a copa da faia à esplêndida pastagem;
O ofidiano, escondido, olhos abertos, sonda...
Vai passando, tranqüilo, um búfalo selvagem.

Segue o búfalo, só... mas suspende-lhe o passo
O ofidiano cruel que o ataca de repente,
E que o prende, a silvar, com suas roscas de aço.

Tenta o pobre lutar; os chavelhos enresta;
Mas tomba de cansaço e morre... Tristemente
No alto se esconde a lua, e cala-se a floresta...

A ONDINA

Rente ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina,
Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,
Pela praia passeia. A alvacenta neblina
Tem reflexos de prata à refração da lua.

Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rota, pompeia no ar a vela, que flutua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, à praia vem, recua...

E, surgindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito...

Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.

CEGA

Trôpega, os braços nus, a fronte pensa, várias
Vezes, quando no céu o louro sol desponta,
Vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta,
Despertando a mudez das vielas solitárias.

Arrimada ao bordão, lá vai... Imaginárias
Cousas pensa... Verões e invernos maus afronta...
Dores que tem sofrido a todo mundo conta
Na linguagem senil das suas velhas árias.

Cega! que negra mão, entre os negros escolhos
Do caos, foi procurar a treva, que enegrece,
Para cegar-te a vista e escurecer-te os olhos?

Cega! quanta poesia existe, amargurada,
Nesses olhos que estão sempre abertos e nesse
Olhar, que se abre para o céu, e não vê nada!...

RÚSTICA

Da casinha em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora.
Além, o seu quintal; este, o seu aposento.

Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora,
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...

E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência bóia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno.

Pegando da costura à luz da clarabóia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de jóia.

INVERNO

Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
Ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
Debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
O ar enchiam de sons e queixas misteriosas!

Tudo era vida e amor. As árvores copiosas
Mexiam-se, de manso, ao resfolego brando
Da brisa que passava em tudo derramando
O perfume sutil dos cravos e das rosas...

Mas veio o inverno; a vida e amor foram-se em breve...
O ar se encheu de rumor e de uivos desolados...
As árvores do campo, enroupadas de neve,

Sob o látego atroz da invernia que corta,
São esqueletos que, de braços levantados,
Vão pedindo socorro à primavera morta.

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