segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Carlos Emílio Corrêa Lima

Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima (Fortaleza, 1956) foi um dos fundadores da revista O Saco Cultural. Publicou os livros de contos Ofos (Fortaleza: Ed. Nação Cariri, 1984) e O Romance que Explodiu (Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 2006); os romances A Cachoeira das Eras (São Paulo: Ed. Moderna, 1979), Além, Jericoacoara (Fortaleza: SECULT, 1982) e Pedaços da História mais Longe (Rio de Janeiro: Ed. Impressões do Brasil, 1997); além do livro de ensaio Virgílio Várzea: os olhos de paisagem do cineasta do Parnaso (Fortaleza/Florianópolis: Edições UFC/FCSC, 2003), tese de mestrado em literatura brasileira, na Universidade Federal do Ceará. Participa das antologias: Queda de Braço: uma antologia do conto marginal, org. Glauco Matoso e Nilto Maciel (Rio de Janeiro: Club dos Amigos do Marsaninho, 1977) e Uma Antologia do Conto Fantástico, org. Bráulio Tavares (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003). Criou a revista Arraia Pajeurbe (Fundação Cultural de Fortaleza) e as Rodas de Poesias, recitais no Centro Cultural Dragão do Mar. Tem contos no Almanaque de Contos Cearenses, org. Pedro Salgueiro (Recife: Ed. Bagaço, 1997) e na revista Caos Portátil: um almanaque de contos.

Carlos Emílio é daqueles criadores para quem a folha de papel em branco diante dele deve causar angústia, por ser tão pequena, limitada. Ele precisaria de uma parede, um painel, onde pudesse escrever à vontade, assim como alguns pintores necessitam de murais amplos. Talvez uma parede lhe fosse ainda limitada e o melhor fosse um muro sem limites, onde pudesse escrever ilimitadamente. Seus romances e contos são longas caminhadas não por veredas, mas por largos caminhos. Longos passeios de barco não por igarapés, riachos, mas pelo Amazonas. Carlos Emílio não se contenta com um só drama, uma única célula dramática. O drama de seus contos e romances é cheio de tentáculos ou ramificações. Mas, apesar de à primeira vista pareceram dramas insólitos, são, na verdade, muito reais. Leia-se o conto “Pedrofídio”, no qual o protagonista narra suas dores, as picadas de cobra sofridas, o perambular pelos matos durante anos, a matar cobras, como um alucinado. No entanto, é apenas um miserável, um homem roubado, cuja avó foi enforcada por seu atual patrão, que o escraviza, faz dele “cabide”, onde pendura roupas.

Os personagens vão e vêm, cometem loucuras, se envolvem em conflitos a toda hora, numa sarabanda dos diabos. Apesar disso, há neles, contos e romances, um tal enquadramento, uma tal pintura, mesmo que opulenta, cheia de cores, que mais parece ao leitor estar lendo uma primavera ou a natureza em estado de primavera. Leia-se “Os Idiotas do Sol”, no qual toda a narrativa se localiza num ponto qualquer da África, cercado de “gigantescas florestas”, habitado pelos “mais estranhos e despropositados animais”. As personagens vivem isoladas de tudo, como se cumprindo um destino, embora conduzidas pelo “pai” do narrador, um homem aparentemente normal, eis que ministro em 1872, no Brasil. Portanto, as personagens não são seres incomuns ou de outro mundo, embora pareçam o contrário. São estranhas, sim, porém muito reais. No entanto, a realidade de muitos deles pode ser apenas aparente, e isto o contista se esforça por apresentar. O homem que se afunda na África com a família tinha sido ministro de Estado no Brasil. Pedrofídio, matador de cobras e ele mesmo um homem-cobra, não passa de um lavrador, um homem do campo.

Carlos Emílio foge aos padrões do conto tradicional quando empurra suas personagens para fora dos restritos espaços de uma sala, de uma casa. Ele prefere os quintais, as praias, os desertos, os campos, as montanhas, os pomares, as árvores, que buscam o firmamento, o mais longínquo, o infinito. O espaço geográfico real está pintado em alguns contos, como uma planície africana, na história da família do ministro, ou Gentilândia, em Fortaleza, no conto do pomar. Aliás, a capital do Ceará está presente em algumas narrativas, não exatamente como foi ou é. Nada de ruas, monumentos, prédios históricas. Em outros contos o espaço geográfico é inominado, embora, às vezes, de fácil apreensão (o sertão, na história do homem das cobras, e a praia de “O Barco”). No entanto, onde localizar aquele sertão ou aquela praia? Na verdade, o contista não tem a mínima vontade ou necessidade de geografar as suas narrativas, talvez para não se enquadrar neste ou naquele tipo de prosa de ficção, seja o regionalismo, seja outro qualquer.

As personagens andam, correm, se transformam nisso e naquilo, e até voam, porque em sonho, pesadelo, alucinadas. E se afundam em buracos, poços, se perdem nos matos, em labirintos subterrâneos, feito formigas, seres do imaginário. Morrem de forma misteriosa, como Bertha, a irmã mais nova do narrador de “Os Idiotas do Sol”, de morte prevista, porque relacionada a fenômenos celestes. E, aonde quer que elas vão, carregam seus dramas, a intensidade de seus conflitos. Vão, somem, saem pela última palavra do conto e entram para a eternidade. Ou para a história.

O tempo em Carlos Emílio é imensurável. Mesmo se se deixar de lado o flash-back, como no conto dos idiotas do sol. Por quanto tempo viveram as cinco personagens no interior da África? Dias, meses, anos?

Durante a narrativa o tempo é, em alguns contos, constantemente revolvido. Pedrofídio vai e vem no tempo: conta o seu tempo de assustado, o tempo da primeira picada de cobra, o tempo das andanças pelos matos, a matar cobras, o tempo anterior a tudo isto, o tempo da volta à própria casa, o tempo da última picada, o tempo da escravidão. Há na história dele irrealidade? Será um conto fantástico?

O tempo na ficção de Carlos Emílio é nebuloso. A manhã se confunde com a tarde e a noite. O dia da morte ou do susto se confunde com os dias de outras mortes e outros sustos. Nunca se sabe se a personagem viveu um dia, um ano, um século. Talvez nem haja tempo. Talvez estejam fora do tempo, além delas mesmas, anteriores ao seu nascimento ou posteriores ao seu desaparecimento.

Qual o tom das narrativas curtas de Carlos Emílio? De que ingredientes se serve para compor suas narrativas? Pode-se dizer que o tom é o não-tom. Ou o tom é ambivalente, ambíguo. O menino do pomar que conta seus medos pode até nem ter tido medos e falar deles apenas para deixar no leitor a impressão de que a personagem é o medo ou o contar o medo. O narrador das aventuras africanas, que pode ser um menino, conta a morte da irmã, a fuga do cavalo, a ira do pai – e pode tudo isto ter sido normal para ele. Ao leitor, no entanto, isto é assombroso.

Não há pieguice, saudosismo, melancolia nas personagens emilianas. Elas aparecem, contam episódios, desaparecem, como se o leitor não tivesse o direito de ter a impressão de ter visto um menino com medo do homem que ouvia rádio no fundo de um poço.

A linguagem dos contos (e dos romances) de CE é esparramada, volumosa, como uma corredeira, uma cachoeira. Não há diques para ele. A narração escoa, evolui e, como um rio impetuoso, fura o mar, quebra ondas e se mistura ao oceano. Ele nem precisa de diálogos, quase sempre curtos. O narrador transmite uma ou outra fala de outra personagem e continua a narrar. Ele é o protagonista da narração, embora nem sempre seja da narrativa. As personagens falam, conversam, porém pouco se sabe dessas falas e conversas. Falam, o mais das vezes, para si mesmas, sem que o leitor perceba isto. E, sobretudo, narram. São narradores insaciáveis, incansáveis, mesmo na hora da morte ou do desaparecimento.

O diálogo interior, o fluxo da consciência, todas as modernas linguagens estão presentes nos contos e romances de CE.

O ponto de vista nas obras de CE é o mais das vezes o do observador, mesmo quando a primeira pessoa fala, seja ela protagonista, testemunha ou personagem secundária. Às vezes o narrador fala por ele e por outros, na primeira pessoa do plural (nós) e, aqui e ali, muda para o singular (eu), como em “O pomar”. Os outros, no entanto, são bem mais que secundários, são quase que apêndices, figurantes. Em alguns contos o narrador não é narrador de verdade. Como se a história já estivesse escrita e fosse o leitor, ao ler, o narrador. O leitor seria, assim, co-autor. Pode-se supor também que a história (se é que há história) é narrada pelo escritor, que pode ser um personagem oculto. Como em “O Barco”. Carlos Emílio consegue enganar o leitor com facilidade. Às vezes o narrador parece ser o principal da trama, quando na verdade é apenas um observador, isento quase sempre, imune aos dramas que se apresentam aos seus olhos ou saltam de sua memória. Outras vezes parece ser o protagonista, de tão presente na narração e na narrativa. Mas isto não importa ao leitor. O menino ou rapaz que narra as aventuras dele, de suas irmãs e de seus pais, nos cafundós de uma África mítica, sem a presença de negros, feras, florestas incorrompidas, pode estar contando uma história absurda, misteriosa, fantástica, real ou imaginária. Será um narrador-protagonista, uma testemunha, um narrador secundário?

Há contistas que passam a vida escrevendo esboços de romances. Não é o caso de CE, que escreve contos a seu modo e romances também. Seus contos poderiam ter 500 páginas e, ainda assim, seriam contos. Não quaisquer contos, mas contos dele, com a marca dele. Porque não seriam romances, não teriam dezenas de personagens, não seriam divididos em capítulos, não trariam enredos romanescos. Simples (ou complexa) questão de estilo, modo de elaborar o conto. As personagens de seus contos às vezes viajam pelo mundo, como as dos romances. Como o homem-cobra, o personagem-narrador de “Pedrofídio”, que sai com os filhos pelos matos, a matar cobras e gentes. As personagens não se delineiam como retratos ampliados, permanecem esboçadas nas entrelinhas, pintadas ou rabiscadas como personagens de contos, que sabem até aonde vão. E se conformam com o fim da história, como o menino que não ficou triste nem zangado, quando fecharam o pomar onde brincava (“O Pomar”).

Muito bem apontou Dimas Macedo, em “Os Enigmas de Carlos Emílio” (LC, p. 77), ao se referir ao romance Além, Jericoacoara: (...) “não estamos obrigados a concluir pela existência de um enredo, ainda porque o mesmo não se manifesta de forma literal, embora pareça emergir em diversos momentos do seu entretexto”. E assim também se pode observar da leitura de muitos de seus contos: a ausência de enredo ou a sua manifestação de forma furtiva, como o colear de uma serpente. No conto “O Barco”, por exemplo, um casal, muitos filhos, um barco construído por “gente formada em artes de navegar” e só. Não se vislumbra um enredo. As personagens não atuam, não agem, não se locomovem. Pensam, apenas pensam, sobretudo nos muitos filhos, cada um deles uma letra do alfabeto. Talvez não haja o enredo tradicional ou mais usual. Ocorre que se trata de um enredo esgarçado, sobretudo quando o narrador parece falar para si mesmo. Veja-se a narrativa “Os Idiotas do Sol”, em que o narrador conta parte da história dele e de sua família e se concentra no tempo em que viveram num pedaço de terra africana. Há uma explicação de porque foram as cinco pessoas para a África. O “mistério” estaria no “Livro da Terra”, possivelmente um manuscrito, que um dia o narrador promete publicar.

Entretanto, a urdidura ficcional é tão bem armada ou arrumada, entrelaçada, os fios tão bem amarrados, a formarem um sólido, embora às vezes maleável, plano, como se o leitor se visse num tapete persa de As Mil e Uma Noites, a voar pelo espaço da irrealidade, sem medo de cair em abismos, certo de que o tecido é firme e colorido e de que a aventura será inusitada, que a leitura se dá sem sobressaltos.

Recriando os mitos perdidos e elaborando novos mitos, Carlos Emílio se converte numa espécie de feiticeiro e conclama contra si os catequizadores modernos, como a televisão, a serviço dos novos monarcas. Conclamará ainda aqueles que, de outra forma, falam a mesma língua dos inquisidores e, travestidos de santos missionários, pregam a idolatria a deuses estrangeiros.

Esses e outros mitos estão também presentes em muitos dos contos de Carlos Emílio. Isto é, o mito como elaboração ficcional. Pois, como observa Dimas Macedo, no artigo citado neste capítulo, “a obra de Carlos Emílio é toda ela pura ficção”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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