sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 17)

He-heee… pimenta boa!
Tanto assanha o maridão,
Que, emocionada, a patroa
Dobra a ardência do pirão…
A. A. DE ASSIS (PR)
-
Quero, por tudo e por nada,
Esquecer-te a qualquer preço
Mas a distância danada
Já sabe o meu endereço!
ANTÔNIO COLAVITE FILHO (SP)
-
Sou feliz! Não vivo ao lado
das estrelas na amplidão,
mas posso ter um punhado
de vaga-lumes na mão.
ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES (RJ)
-
Desta saudade infinita
não guardo mágoas, porque
foi a coisa mais bonita
que me ficou de você.
APARÍCIO FERNANDES (RN)
-

Que barulho o Zé fazia,
na moita de sabugueiro,
e quem passava sentia
que o barulho… tinha cheiro!
CAMPOS SALES (SP)
-
Uma luz quase apagada…
Um sonho chegado ao fim…
Eis um pedaço do nada
que tu fizeste de mim!
CONCEIÇÃO DE ASSIS (MG)
-
Sou tal qual ave ferida
que as suas asas quebrou
e Deus, para dar-lhe vida,
os seus pedaços juntou.
DIVA DA COSTA LEMOS (RS)
-
Bebo lembranças em tragos,
ao ponto da embriaguez,
para curar os estragos
que a sua ausência me fez!
ELISABETH SOUZA CRUZ (RJ)
-
No jogo da vida é assim:
tem encrenca e desacato,
e, quando ele chega ao fim,
a mãe de alguém paga o pato…
ERCY MARQUES DE FARIA (SP)
-
Desponta sereno o dia,
e o meu sonho, sem demora,
enche o mundo de poesia
ao romper da linda aurora!
EVA GARCIA (RN)
-
A palavra mais ardente
não é o fogo, é a paixão;
queimando o corpo da gente
deixa em brasa o coração.
GILDA MOURA (RN)
-
Aquela ponte que unia
nossas vilas ribeirinhas
une ainda, por magia,
tuas saudades e as minhas.
GISLAINE CANALES (SC)
-
Com ambição desmedida
por coisas materiais,
o homem não tem medida,
nem liberdade, nem paz…
GONZAGA DA SILVA (RN)
-
O sol, eterno andarilho,
Nas rotas do movimento,
Abre as cortinas com brilho
No escuro do firmamento.
HÉLIO ALEXANDRE (RN)
-
A ressaca da bebida
é pra ninguém esquecer.
Por isso a melhor pedida
é não parar de beber.
HELIODORO MORAIS (RN)
-
Quase todo brasileiro
tem esta…“mania”… estranha:
– dá sumiço no dinheiro
mais depressa do que ganha!
 IZO GOLDMAN (SP )
-

Se for teste, meu Senhor,
o viver nesta fornalha,
tu verás que a fé e o amor
de um nordestino não falha!
J.B. XAVIER (SP)
-
Não sei se é pecado ou vício,
bobeira… sei lá mais quê…
esse agridoce suplício
de só pensar em você!
 JEANETTE DE CNOP (PR )
-
Minhas lágrimas serenas,
cada qual mais ressentida,
formam um rosário de penas,
das mágoas de minha vida.
JORGE MURAD (RJ)

 -
Quando nós somos crianças
tantos sonhos são sonhados.
Hoje…adultos, são lembranças
daqueles tempos passados.
JOSÉ FELDMAN (PR)
-
“Escolha a pessoa certa
para entregar-se, querida.”
Mamãe, quando a fome aperta,
não dá pra escolher comida!
JOSÉ TAVARES DE LIMA (MG)
-
Não lastime as tristes horas
da viagem que angustia…
Viver é criar auroras
no ocaso de cada dia!
JOSÉ VALDEZ DE C. MOURA (SP)
-
O vazio dos teus braços,
depois de tristonho adeus,
fez a dor rondar meus passos,
na busca inútil dos teus…
JÚLIA LEAL MIRANDA (RJ)
-
O terapeuta sugere:
- “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
- “Tô” fora! Pimenta, não!
LUCÍLIA DECARLI (PR)
-
De todo “não” que me deste,
o que mais triste me fez
foi aquele que disseste
disfarçado num “talvez”…
LUIZ CARLOS ABRITTA (MG)
-
Nunca temerei fracassos
chegarei mesmo sozinho.
Quem segue do pai, os passos,
sabe as curvas do caminho…
MANOEL CAVALCANTE (RN)
-
“Limpou” o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
MARIA DOLORES PAIXÃO (MG)
-
Meu sogro nem “manda brasa”,
mas, quando está de veneta,
deixa a “mala velha” em casa
e sai com qualquer “maleta”..
MARIA NASCIMENTO (RJ)
-
Vão ficando tão distantes
os carinhos do passado,
que eu nem sei se o que era antes
foi vivido… ou foi sonhado…
MARINA BRUNA (SP)
-
Se navegar é preciso,
se é necessário sonhar,
eu sonho no teu sorriso,
navegando em teu olhar!
MARISA OLIVAES (RS)
-
Quando a nuvem da má sorte
Cobre de sombras teu mar,
A esperança é o vento forte
Que faz o tempo mudar.
MILTON DE SOUZA (RS)
-
De tanto sofrer na vida,
eu peço a Deus, sem revolta;
– Abra as porteiras da ida,
feche as porteiras da volta.
MILTON NUNES LOUREIRO (RJ)
-
Loucuras… quantas já fiz
nos tempos da mocidade…
“Morri de amor” – fui feliz!…
Hoje vivo de saudade…
NÁDIA HUGUENIN (RJ)
-
Não há fronteira na vida
que separe um grande amor,
quando a ponte foi erguida
pelas mãos do Criador.
OLGA AGULHON (PR)
-
Do poeta, o maior sofrer
assim pode ser descrito:
É a luta para escrever
o que nunca foi escrito.
OLYMPIO COUTINHO (MG)
-
Nos extremos desta vida,
um contraste se percebe:
– A Terra chora a partida
daquele que o Céu recebe!
OSVALDO REIS (PR)
-
Altruísta, de verdade,
do benfazer! É sequaz,
age, com serenidade,
sem ostentar, o que faz…
PEDRO GRILO (RN)

-
Minha renúncia…Quem sabe…
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!
PROF. GARCIA (RN)
-
Coração, velha gaiola…
A saudade, no poleiro,
com seu canto me consola
noite e dia, o tempo inteiro!
REINALDO AGUIAR (RN)
-
Disse o carteiro, confuso:
- mora aqui o “seu” Leitão?
- Não mais, respondeu o luso:
virou torresmo e sabão.
RELVA DE EGYPTO REZENDE (MG)
-
Quando a paixão é marcada
por possessão, se resume
numa rosa incinerada
na fornalha do ciúme…
RENATA PACCOLA (SP)
-
A vida é um “fogo de palha”
e o tempo se mostra algoz,
mais parece uma fornalha
onde a palha… “somos nós”!…
ROBERTO TCHEPELENTYKY (SP)
-
Se nas revistas reparas,
verás que é questão de gosto:
alguns preferem ver Caras,
outros preferem o oposto…
RODOLPHO ABBUD (RJ)
-
Os dois velhinhos dançavam,
mostrando desenvoltura;
mas sempre que tropeçavam,
trocava de dentadura!
RONALDO AFONSO JÚNIOR (MG)
-
Quando a vida se distrai,
ou dá tudo, ou tudo nega:
Rico… pega o carro e sai;
pobre sai… e o carro pega!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA (SP)
-

Destilando hipocrisia
segue a tola humanidade
queimando a vã fantasia
nas fogueiras da vaidade!
UBIRATAN QUEIROZ (RN)
-

Aquela duna imponente,
que na paisagem se alteia,
tem na origem, certamente,
minúsculos grãos de areia.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ (PR)
-
Que lua-de-mel aquela!
Faltou luz, foi um sufoco:
a noiva queria vela,
o noivo só tinha um toco…
WANDA DE PAULA MOURTHÉ (MG)
-
É sempre ameno, suave, 
é um ápice da emoção,
quando a gente encontra a chave
que destranca um coração!…
ZÉ DE SOUSA (RN)

Irmãos Grimm (Os Seis Cisnes)

Era uma vez um rei que estava caçando numa imensa floresta, e ele caçava um animal selvagem com tanta vontade que nenhum dos que acompanhavam conseguiam segui-lo. Quando a noite chegou ele fez uma parada e olhou ao redor, e então, ele percebeu que ele havia perdido o seu caminho de volta.

Procurou uma saída, mas não encontrou nenhuma. Então, ele avistou uma velhinha que balançava a cabeça continuamente; ela era uma bruxa e vinha em direção a ele.

— “Minha bondosa senhora,” o rei disse para ela, — “Será que a senhoria poderia me mostrar o caminho para eu sair da floresta?”

— “Oh, sim, senhor rei,” respondeu ela, “lógico que eu posso, mas sob uma condição, e se não cumprires o prometido, jamais conseguirás sair da floresta, e morrerás de fome.”

— “E que condições são estas?” perguntou o rei.

— “Eu tenho uma filha,” disse a velhinha, “linda como não existe nenhuma outra no mundo, e muito digna de se tornar sua esposa, e se permitires que ela se torne sua Rainha, eu lhe mostrarei o caminho para sair da floresta.”

Como o rei estava angustiado, ele concordou, e a velhinha o conduziu para a sua pequena cabana, onde a filha dela estava sentada perto do fogo. Ela recebeu o rei como se ela estivesse esperando por ele, e ele constatou que ela era muito bonita, mesmo assim, ela não foi do seu agrado, e ele não conseguia olhar para ela, sem sentir um horror secreto.

Depois de ele ter conduzido a jovem para o seu cavalo, a velhinha mostrou-lhe o caminho, e o rei voltou para o seu palácio novamente, onde foi celebrado o casamento.

O rei já havia se casado uma vez, e com a primeira esposa, ele teve sete filhos, seis meninos e uma menina, a quem ele amava mais do que tudo no mundo. Como ele temia que a madrasta poderia não tratar bem dos seus filhos agora, ou mesmo fazer-lhes algum mal, ele os levou para um castelo solitário que ficava no meio de uma floresta. Ele ficava tão escondido, e o caminho para encontrá-lo era tão difícil, que ele mesmo não conseguiria tê-lo encontrado, se uma fada não tivesse dado a ele um novelo com propriedades mágicas.

Quando ele soltava o novelo, ele se desenrolava e mostrava o caminho até o castelo. O rei, todavia, ia todos os dias visitar os seus filhos queridos na floresta que a Rainha começou a notar a sua ausência; ela ficou curiosa e queria saber o que ele fazia quando estava totalmente sozinho na floresta. Ela deu uma certa quantia em dinheiro para os seus criados, e eles contaram o segredo para ela, e contaram a ela também sobre o novelo mágico que sozinho poderia mostrar o caminho.

E então, ela não conseguiu ter mais sossego, até que ela descobriu onde o rei guardava o novelo, e então, ela fez camisas de seda branca, e como ela tinha aprendido a arte da bruxaria com a sua mãe, ela costurou um encanto dentro das camisas. E quando o rei havia saído para caçar, ela pegou as camisas de seda e foi para a floresta, e o novelo mostrou a ela o caminho. Os filhos, que viram de longe que alguém estava se aproximando, pensaram que o pai deles estava vindo visitá-los, e radiantes de alegria, correram para encontrar-se com ele.

Então, ela lançou uma camisa de seda sobre cada um deles, e mal as camisas haviam tocado seus corpos e eles foram transformados em cisnes, e voaram para longe da floresta. A Rainha voltou para casa feliz e realizada, e pensou que ela tivesse se livrado dos seus enteados, mas a menina não havia corrido com seus irmãos para encontrá-la, e a rainha nada sabia sobre ela. No dia seguinte o rei foi visitar os seus filhos, mas ele não encontrou ninguém além da garota.

— “Onde estão os teus irmãos?”, perguntou o rei.

— “Ah, meu pai,” respondeu a menina, — “eles foram embora e me deixaram sozinha!” e ela contou para ele que tinha visto da sua janelinha como os seus irmãos fugiram para a floresta transformados em cisnes, e ela mostrou a ele as penas, que eles tinham deixado cair no quintal, e que ela apanhou.

O rei ficou triste, mas ele não pensou que a rainha tinha feito essa maldade, e como ele receava que a garota poderia também ser roubada dele, quis levá-la consigo. Mas a pequenina tinha medo da madrasta, e insistiu ao rei para deixá-la ficar apenas mais uma noite no castelo da floresta.

A pobre menina pensou: — “Não posso mais ficar aqui. Irei procurar os meus irmãos.”

E quando a noite chegou, ela fugiu, e foi direto para a floresta. Ela caminhou a noite toda, e no dia seguinte também caminhou sem parar, até que ela não conseguiu continuar caminhando porque estava muito cansada. Então, ela encontrou uma cabana na floresta, e entrou dentro dela, e encontrou um quarto onde havia seis pequenas camas, mas ela não ousou deitar-se em uma delas, mas escondeu-se debaixo de uma das camas, e deitou-se no chão duro, pretendendo passar a noite ali.

Pouco antes do amanhecer, todavia, ela ouviu um barulho de asas batendo, e viu que seis cisnes vinham voando pela janela. Eles pousaram no chão e sopravam as plumas uns dos outros, e as suas penas de cisnes ficaram lisas como camisas. Então, a garotinha olhou para eles e ela reconheceu os seus irmãos, ficou contente e saiu debaixo da cama. Os irmãos também ficaram felizes em verem sua irmãzinha, mas a alegria deles teve curta duração.

— “Aqui não podes morar,” disseram eles para ela.

— “Este é um esconderijo de ladrões, se eles chegarem em casa, e te encontrarem, eles te matarão.”

— “Mas vocês não podem me proteger?”, perguntou a irmãzinha.

— “Não,” responderam eles, somente durante quinze minutos por dia de cada noite nós podemos tirar as nossas plumas de cisnes e usar durante esse tempo a forma humana; depois disso, voltamos novamente a sermos cisnes.”

A irmãzinha chorou e disse,

— “Vocês não conseguem se libertar?

— “Oh, não,” eles responderam, “as condições são muito difíceis! Durante seis anos não poderás falar nem sorrir, e durante esse tempo você deverá costurar seis camisas pequenas feitas de aster para nós. E se uma única palavra for pronunciada da sua boca, todo teu trabalho terá sido em vão.”

E quando os irmãos tinham dito isto, os quinze minutos haviam passado, e eles voaram novamente pela janela como se fossem cisnes.

A garota porém, havia decidido resolutamente libertar os seus irmãos, mesmo que isto lhe custasse a própria vida. Ela saiu da cabana, foi para o meio da floresta, sentou-se numa árvore, e lá passou a noite. Na manhã seguinte, ela saiu para colher aster e começou a tecer.

Ela não poderia conversar com ninguém, tampouco poderia sorrir; ela ficou sentada ali e nada lhe interessava além do seu trabalho. Quando já fazia muito tempo que ela tinha passado ali, aconteceu que o rei daquele país estava caçando na floresta, e o seus companheiros de caça vieram até a árvore onde a garota estava sentada. Eles a chamaram e disseram:

— “Quem és tu?” Mas ela não falou nada.

— “Desça aqui com a gente,” disseram eles. — “Não vamos lhe fazer nenhum mal.”

Ela apenas balançava a cabeça. Como eles a pressionavam com perguntas ela lançou seu colar de ouro para eles, e pensou que isso os deixaria satisfeitos. Eles, no entanto, não paravam, então, ela jogou sua cinta para eles, e isso também não adiantou nada, jogou também suas ligas e aos poucos tudo o que ela usava até que ela ficou só de blusa. Os caçadores, porém, não se tomaram por vencidos, mas subiram na árvore, desceram a menina e a levaram para o rei. O rei perguntou:

— “Quem és tu? O que estavas fazendo em cima da árvore?”

Mas ela não respondia. O rei fez a pergunta em vários idiomas que ele conhecia, mas ela permanecia tão calada como um peixe. Como ela era muito linda, o coração do rei ficou encantado, e ele foi tomado por uma grande paixão por ela. Ele colocou nela a sua manta, levou-a em seu cavalo, e a conduziu para o seu castelo. Depois, ele mandou que ela se vestisse com roupas riquíssimas, e a beleza dela brilhava como um dia reluzente, mas nenhuma palavra ele conseguia tirar dela. Ele a colocou ao seu lado, na mesa, e a sua postura humilde e educada o encantou tanto que ele disse:

— “Ela é a mulher com quem eu quero me casar, e não quero nenhuma outra.” E depois de alguns dias ele se uniu a ela.

Mas o rei tinha uma mãe perversa que não estava satisfeita com este casamento e falava mal da rainha.

— “Quem sabe,” disse ela, — “de onde veio essa garota que não sabe falar? Ela não é digna de um rei!”

Depois que um ano se passou, quando a rainha deu a luz ao seu primeiro filho no mundo, a velhinha tomou dela a criança, e manchou a boca dela de sangue enquanto ela dormia. Depois ela foi até o rei e acusou a rainha de ser uma devoradora de crianças. O rei não quis acreditar nisso, e não permitiu que ninguém fizesse nenhum mal a ela. Ela, no entanto, continuava sempre costurando as camisas, e não se preocupava com mais nada. No ano seguinte, quando ela deu a luz a um belo garoto, a falsa madrasta se utilizou do mesma maldade, mas o rei não aceitava acreditar nas palavras dela. Ele disse:

— “Ela é bondosa e meiga demais para fazer qualquer coisa desse tipo, se ela não fosse muda, e pudesse se defender, a sua inocência seria explicada.”

Mas quando a velhinha roubou o filho recém-nascido pela terceira vez, e acusou a rainha, que não proferia nenhuma palavra ou defesa, o rei não pode fazer nada senão entregá-la à justiça, e ela foi condenada a sofrer a morte na fogueira.

Quando chegou o dia para que a sentença fosse executada, esse era o último dia dos seis anos durante os quais ela não podia falar nem rir, e ela tinha libertado os seus queridos irmãos do poder do encantamento. As seis camisas estavam prontas, somente faltava a manga da sexta camisa. Quando, então, ela era levada para a fogueira, ela levava as camisas em seus braços, e quando ela se levantou e o fogo ia ser acendido, ela olhou ao redor e viu seis cisnes que vinham voando pelo ar em direção a ela. Então, ela percebeu que a sua libertação estava chegando, e seu coração pulava de alegria.

Os cisnes pousaram sobre ela e desceram de modo que ela podia lançar as camisas em cima deles, e a medida que eles eram tocados pelas camisas, suas plumas de cisnes se desfaziam e seus irmãos assumiam sua forma humana diante dela, e eles eram fortes e bonitos. Apenas o mais jovem lhe faltava o braço esquerdo, e tinha no lugar do braço uma asa de cisne em seu ombro. Eles se abraçaram e se beijaram, e a rainha foi até o rei, que estava muito emocionado, e ela começou a falar e disse:

— “Querido marido, agora eu posso falar e declarar para ti que sou inocente e fui acusada injustamente.”

E ela lhe contou toda a maldade que a velhinha havia levado embora os três filhos dela e os havia escondido. Então, para grande alegria do rei, eles foram encontrados e trazidos até ele, e como punição, a madrasta má foi colocada na fogueira e queimou até virar cinzas. Mas o rei e a rainha com seus seis irmãos viveram muitos anos feliz e em paz.
================
Nota:
Aster = planta da família das borragináceas também conhecida como murugem.


Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/Os_seis_cisnes

Miguel Russowsky (Poemas Avulsos)

A CHUVA CHORA

A chuva chora lenta na vidraça
suas lágrimas são finas... (eu também).
Hoje estou triste e dói... A vida passa
e eu faço versos sem saber a quem.

Há sonhos que recheio de fumaça
sortidos em teares do desdém.
Amei... Perdi... e da amargura, a taça,
soube fazer de mim o seu refém.

Escrevo... A chuva chora... O pensamento
umedece meus olhos, no momento
em que tento findar este terceto.

Sei que o silêncio habita a tarde fria,
só não sei como a chuva, tão macia,
consegue por espinhos num soneto.

ARREPENDIMENTO

Um por um, os meus sonhos, nesta vida,
Despi no andar do tempo modorrento
Qual árvore esfolhada pelo vento
Numa tarde outonal, entristecida.

Quebrei-me um pouco, assim, a cada ida
À procura não sei de qual intento.
Deixei amor, amigos e, ao relento,
Destroços de minha alma enrijecida.

E hoje, velho, ao voltar da caminhada,
Tropeço em meus pedaços pela estrada
Com saudosa visão aqui e ali.

Não mais me iludo, e essa descrença atesta
Que passarei o tempo que me resta
Recolhendo os pedaços que perdi.

CHOVE… E NÃO VENS!

Chove a chuva e tu não vens... (Tristeza!)
... e os talheres... e os cálices de vinho
sobre a toalha, alvíssima de linho...
e as velas... (mas nenhuma foi acesa! )

... e as flores como parte da surpresa...
e alguém ansioso pelo teu carinho...
e a música ambiente... e o som baixinho...
e as duas taças de cristal na mesa...

... e as dobra, com amor, nos guardanapos,
cheias de ardis para teus dedos, guapos...
e as iniciais bordadas num cantinho...

... e a lareira onde o fogo já não arde...
Chove e faz frio... e tu não vens...( É tarde! )
Soubesses como dói jantar sozinho?!..

CONVITE PARA JANTAR

Ela e a Tristeza, sim há semelhança,
ambas estão no pensamento agora.
E a chuva chove... Chove e não se cansa...
Muito solícita a vidraça chora.

O meu relógio diz, de hora em hora,
Uma palavra só: - Desesperança!
E a chuva chove lenta, fria e mansa
e mansa e fria não se vai embora.

A minha amada, longe, não me escreve...
Corre em meu rosto a lágrima, de leve
e vem borrar o retratinho antigo.

A solidão renova o olhar sizudo...
Chove... Silêncio... ( e o telefone mudo)
 Pois bem, Tristeza, janta aqui comigo!

DOMINGO...(DE LICOR E AÇÚCAR CÂNDI)

Manhã de sol...A luz passeia a toa...
Explode a primavera em frenesi.
Meu bairro, todo chique, não destoa,
parece um ogro alegre que se ri.

Mignon, gentil, arisco, sobrevoa,
a namorar a rosa, um colibri...
...e perfumes no ar...-Que coisa boa!
O céu está pertinho...É logo ali!

Meu domingo é grande (- Muito grande!)
Cheinho de licor e açúcar cândi.
Estou de bem com toda a humanidade.

Minha amada virá...(telefonou-me)
e ela não quer que lhe revele o nome,
que tem dez letras...(é ?... -FELICIDADE!)

ESTOU SÓ!... (DUVIDO)

Estou só?...(Não tão só: eu tenho esta caneta
que adora conversar. É discreta, fiel
e sempre me quis bem. Depois tem o papel
que apóia o meu trabalho e veste a camiseta.)

Eu, só?...(Só se quiser. A ideia, meu corcel,
se parece um “Sputnik”, vai a qualquer planeta,
não cansa de falar, toca flauta e trombeta
e traz ao meu silêncio, amadas em tropel).

Estou só?...Um pouquinho. (Aprendi que a saudade
desfaz da solidão, ao menos a metade
e o resto que sobrar, com jeito, vira pó)

Estou triste, é verdade. Entanto (quem diria?)
uma lágrima só, pode ser companhia.
Duvido, sendo assim, que eu esteja só.

NOITE SEM AURORA

A noite de um adeus não tem aurora
mas tem silêncios longos por recheio;
tem farpas arranhando, bem no meio...;
tem desesperos mil vagando fora...

A noite de um adeus, eu sei que chora
ao ver a sepultura de um anseio.
Não a censuro e até a manuseio
com estes versos que componho agora.

A noite de um adeus ensina a gente
ter dias sem relógio...e alguém já disse
que nunca cicatriza totalmente.

A noite de um adeus...só bem depois
expõe a solidão, numa velhice,
em que murchamos tristes nós, os dois.

ORAÇÃO DO POETA

– Que me darás, Senhor, pela jornada
de dores, privações e misereres?
– Eu te darei a noite salpicada
de estrelas e silêncio. Que mais queres?

– E para a solidão da madrugada?
– Já fiz o mundo cheio de mulheres.
procura e encontrarás a tua amada.
Faz os mais lindos versos que puderes.

– Mas como irei, Senhor, reconhecê-la?
– Há no céu, entre todas, uma estrela
que apenas tu verás. Que mais perguntas?

– E este frio e esta angústia que ora sinto?
– Quando ela penetrar em teu recinto
a primavera e a paz hão de vir juntas.

OUTONO EM MEIO

O vento desistiu de seus andares,
cansou-se e resolveu dormir mais cedo.
As folhas, nem balançam no arvoredo.
Borboletas...algumas pelos ares.

Nuvenzinhas solteiras e sem medo
buscam no céu seus noivos ou seus pares.
Cá por dentro borbulham os cismares
numa ausência de rumos e de enredo.

(- Ó tardes, de domingo, ensolaradas!...)
O silêncio murmura uma cantiga
para ouvirmos a sós...mas de mãos dadas.

Deixemos, por enquanto o lábio mudo!
E o relógio, deixemos que prossiga...
Conversar?...Para que, se sabes tudo?!.

PROMESSAS
 

Estava eu só Passou... Sorriu... Olhei-a...
Estremeceu. Estremeci. Sucede
que o imprevisível manda e a gente cede.
No céu azul brilhava a lua cheia.

Depois... as consequências... — Quem as mede
se a razão, sem razão, já titubeia?
E o mar acariciando o ardil, na areia:
"O vinho é bom sorver antes que azede!"

Vai-se o verão. Agora é frio e neva.
Palavras sem valor, o vento as leva.
As juras antecedem as desditas.

Um instante de amor — eternidade!
Dois instantes de amor — fidelidade'
... Nem todas as mentiras foram ditas.

RECEITA DE SAÚDE E FELICIDADE

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"

TARDE NEVOENTA... EM JULHO

Domingo sem ninguém...A casa está vazia.
O silêncio no horror persistente blasfema.
Quer se fazer ouvir. Ó tolo estratagema!...
Eu posso ouvi-lo bem, mas qual a serventia?

A solidão nem quer me servir como tema...
...e a tarde se espezinha imensamente fria...
Ó Tristeza, vem cá! Se queres companhia
ajuda-me a cerzir pedaços de um poema

Talvez assombrações que possuam prestígio
se queiram embutir em tercetos, com zelo,
para dar-lhe feições de soneto-prodígio.

Alguém se desmanchou em brumas do passado
e quer ressuscitar de cor, num atropelo.
Se lembrar é viver, eu devo estar errado.
=
Fonte da Imagem = Libreria Fogola Pisa (Facebook)

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) As Fiandeiras

Recolhido no Algarve

Era uma mãe que tinha uma filha e só pensava em casá-la bem. Foi a casa de um mercador que vendia linho, e pediu-lhe para que lhe vendesse uma pedra de linho, porque a filha fiava tudo num dia. Trouxe o linho para casa e disse à filha:

– Tens de me fiar esta pedra de linho hoje mesmo, porque amanhã vou buscar mais. Quando voltar a casa quero achar o linho todo fiado.

A pequena foi sentar-se à porta, a chorar, sem saber como obedecer à mãe. Passou uma velhinha:

– A menina o que tem, que está a chorar desse modo?

– O que hei de ter! É minha mãe que quer à força que lhe fie num dia uma pedra de linho, e eu não sei fiar.

– Deixe a menina estar que eu lhe fio tudo se me prometer que no dia do seu casamento me há de chamar três vezes tia.

A menina olhou para dentro de casa, e viu o linho remexido, e todo fiado. No dia seguinte a mãe foi à loja, gabou muito a habilidade da filha, e pediu outra pedra de linho para ela fiar. A pequena foi sentar-se à porta, a chorar, esperando que passasse a velhinha da véspera.

Passou uma outra:

– A menina o que tem, que está a chorar dessa maneira?

A pequena contou-lhe as ordens que tinha recebido da mãe.

– Pois se a menina me promete que no dia do casamento me há de chamar três vezes sua tia, o linho há de aparecer fiado.

A pequena prometeu que sim, e olhando para dentro de casa deu com o linho remexido e pronto.
   
A mãe foi buscar mais outra pedra de linho, e repetiu-se o mesmo caso; até que passou uma terceira velhinha que lhe fez tudo com a mesma promessa. O comerciante sabendo daquela habilidade quis ver a rapariga, achou-a bonita e esperta e quis casar com ela; a mãe ficou bem contente porque o noivo era muito rico. O comerciante mandou-lhe um grande presente, com muitas rocas e fusos, para que quando casassem, as suas criadas todas fiassem. No dia do casamento fez-se um grande jantar, e todos os seus amigos assistiram; quando estavam à mesa bateu à porta uma velhinha:

– Ai! É aqui que mora a noiva?

– Entre minha tia; sente-se aqui, minha tia; coma alguma coisa, minha tia.

Ficaram todos pasmados de verem uma velha tão corcovada com um nariz muito grande. Mas calaram-se. Instantes depois, bateram à porta; era outra velhinha:

– É aqui que mora a noiva que se casou hoje?

– É, minha tia; entre, minha tia; jante conosco, minha tia.

A velha sentou-se e todos ficaram pasmados do grande aleijão que ela tinha nos queixos. Mas continuaram a jantar. Bateram outra vez à porta; era outra velhinha, que fez a mesma pergunta.

– Ora entre, minha tia; cá a esperávamos, minha tia; há de jantar conosco, minha tia.

Também não causou menos pasmo esta velha toda corcovada e com as costelas embicadas para fora; mas desta vez os curiosos, principalmente o noivo, perguntaram porque tinham aquelas tias tamanhos aleijões.

Disse a primeira:

– Tenho assim o nariz, porque fiei muito, muito, e as arestas do linho puseram-me assim.

– E eu, meu sobrinho, tenho assim os queixos, porque fiei muito, e fiquei assim por tanto riçar os tomentos.

– E eu, sobrinho, fiquei com estas corcovas por estar sempre para um canto com a roca à cinta.

O marido assim que ouviu aquilo, levantou-se e foi pegar nas rocas, fusos, sarilhos, dobadouras e tudo e atirou-os para a rua, e disse que na sua casa nunca mais se havia de fiar, porque não queria que lhe acontecessem à sua mulher tais desgraças.
=======================
Notas Comparativas

Nas The Fireside Stories of Ireland, de P. Kennedy, acha-se este conto, e traduzido por Brueyre com o título A preguiçosa e suas tias. (Contes populaires de la Grande Bretagne, n.º XXII, pág. 159).

Entre as diferentes fontes, cita a versão escocesa da coleção de Chambers, Whooppity storie (op. cit, p. 245, de Brueyre); há uma lição francesa Histoire du Ric Din-Don de M.lle L'Héritier; no Pentamerone de Basile, o conto italiano, e na Novelline di Santo Stefano, de Gubernatis, La Comprata.

No Norske Folkeeventyr, de Asbjørnsen e Moe, As Três Tias;

e na coleção sueca de Cavallius e Stephens. A Rapariga Que Não Podia Fiar Ouro com Lama e Palha, e As Três Corvinhas.

Jacob Grimm, nos seus Kinder und Hausmärchen, n.º 14, traz As Três Fiandeiras; traduzido nos Contes choisis, de Fred. Baudry, p. 128.

Há alguns vestígios em Rumpelstilzchen; na coleção de Bürching, Volksagen, Märchen, und Legenden, é o das Três Fiandeirinhas.

Há uma outra versão portuguesa traduzida por G. Ralston nos Portuguese Folk-Tales, de Consiglieri Pedroso, n.º XIX, com o título As Tias. Na Mythologie des plantes, t. 11, p. 212, Gubernatis traz um conto popular da Calábria, cujo maravilhoso versa sobre o poder de fiar concedido pelas fadas a uma mulher.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_Tradicionais_do_Povo_Portugu%C3%AAs/As_fiandeiras

Jangada de Versos do Ceará (7) Artur Eduardo Benevides

Artur Eduardo Benevides
(Príncipe dos Poetas Cearenses)
Pacatuba, 1923

Soneto inglês


Na divina tolice dos que amam,
Quando se traçam rumos sem sentido.
Algumas cousas belas se proclamam
Do acontecido ou do inacontecido.
De repente, fiquei enamorado!
Será, talvez, na idade, uma loucura.
Mas, se é destino meu mudar o fado,
Já sei que o desatino não tem cura.
Por que somente agora vejo tudo?
Por que guardas em ti tanta poesia?
Com tua luz ficou feliz e mudo
Um coração que a morte pressentia.

Mas, esse amor, que agora em mim se enflora,
Será por certo, o último, Senhora.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Soneto em Recife

Tão leve qual capulho de algodão
Que a brisa da tarde transportasse
Sinto o doce luar de tua face
Sobre o azul dos gestos em canção.

Mesmo distante, vem-me tua mão
Trazendo a flor que agora despertasse
Na manhã de teu sonho, de que nasce
A paz das verdes relvas pelo chão.

Que fazes por aí? Aqui, eu teço
Uma saudade enorme. Não te esqueço.
Se te, esquecesse, já estaria morto.

Muito tempo custou-me a travessia
Até te achar, nas ilhas da Poesia,
Iluminando as noites do meu porto.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Elegia cearense

1.
Longo é o estio.
Longos os caminhos para os pés dos homens.
Longo o silêncio sobre os campos. Longo
o olhar que ama o que perdeu.
Já não vêm as auroras no bico das aves
nem se ouve a canção de amor
dos tangerinos.
A morte nos apóia. Exaustos, resistimos.
Se se acaso caímos os nossos dedos
começam a replantar a rosa da esperança.
Ai Ceará
teu nome está em nós como um sinal
de sangue, sonho e sol.
Chão de lírios e espadas flamejantes,
território que Deus arranca dos demônios,
mulher dos andarilhos, dálida da canícula,
em nós tu mil rorejas. Pousas. És canção.

2.
Para cantar-te me banho em tua memória
e ouço a voz enternecida
diante de esfinges soluçando.
Oh! ver-te apunhalada — e o sol
roubando tua frágil adolescência
e ponto em tua face o esgar
de quem se sente, súbito, perdido.
Teus pobres rios secam
os galhos perdem os frutos
as aves bicam o céu
fogem as nuvens.
Então ficamos escravizados
à tua sede austera, ao teu desejo
de um dia seres bela igual às noivas
que se casam no fim dos teus invernos.

3.
Triste é ver as crianças finando-se nos braços
de mães alucinadas que vendo-as à morte
inda cantam de amor canções do tempo antigo.
E ficas desesperada vendo os filhos
ao longo das estradas onde há pouco
trabalhadores cantavam ao entardecer.
Mudas a voz, então: és cantochão
és réquiem crescendo à sombra dos degredos
és rouca como presos que murmuram
palavras dos dias em que foram
jovens e felizes.
Para cantar-te, Bem-Amada telúrica,
seria feliz se vez de vãs palavras
tivesse em minha boca chuvas e sementes.
Ai, viúva do inverno, flor violentada,
teu sol não brilha: queima. Mas um luar
renasce sempre no olhar
dos homens.
Ó grande olhar de pedra, sede e solstício:
te dessem um novo reino e nunca aceitarias!

4.
Belos são os teus frutos porque difíceis.
Em cada sepultura nasce uma rosa.
Em cada filho teu o amor é como o inverno.
Jamais tu morrerás. Não seríamos fortes
se por ti não estivéssemos em vigílias cruéis, ó mãe!
Mas se as chuvas te querem
como louco partimos
para o amanho da terra.
Os campos então ficam maduros
qual ventre de mulher,
e as bocas
— tranqüilas e felizes —
gritam
palavras de amor
que erguem
primaveras.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A sombra das palavras

As palavras nos recriam.
Às vezes, belas, nos reconciliam
com o voo das cousas em mistério
ou o magistério
da solidão das nuvens do Sião.

Elas guardam a prenhez
de lobas solitárias. A lividez
das cousas fontanárias.
E as albas e os montes
cobrindo o descolor de velhos horizontes.
Ou de nossas feridas e súbitas partidas
para o nunca mais.
E tudo nelas é um velho cais
onde tentamos amar. E ancorar.

Podemos ir a Tebas, dançar em Babilônia,
ou ter uma alma dórica ou jônia.
E partir para o desconhecido.
Ou sermos apenas um gemido
por não havermos beijado os seios da Donzela
em sua cidadela.

As palavras são fendas
de onde vemos palomas descerem sobre lendas
e canções emoldurarem as moças nas varandas,
ou as plumas da tarde, as cousas mais brandas
e as pedras sagradas
em que se escondem as cartas das Amadas.

Em ritmo e verdade celebram a desventura
de nosso desviver e a incessante loucura
do entardecer fatal da Poesia.
Às vezes, têm o cristal puríssimo do dia,
mas chegam com leveza de pés de bailarinas
ou de róseas algas vespertinas
dormindo sobre espumas. E são brumas
abrindo-se no verso como rosas,
frágeis e formosas,
quais luzes de estrelas num rondó.
E mesmo poucas e loucas
estão nos sete anos de Jacó.

Os poetas são seus turiferários,
que êxtases ofertam, nos itinerários,
com um canto a prolongar
por terras de Aragão, ou às margens do Jordão,
fazendo do sonho uma estrela polar.
Em seu ir e vir
pelos campos desertos ou as tardes de Ofir,
tentam limpar a pátina e o bolor
do tempo interior.
Ou fazem renascer o perfume e o lume
da espera e da vida.
E essa é sua glória. Sua lida.
Seu barco, a descer, lento
pelos rios de nosso pensamento,
enquanto em sedução e solidão
transformam-se em abismo ou alumbramento.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Soneto autobiográfico

O meu modo solene, o jeito vago,
A metódica forma de enfrentar
Os problemas, as lutas, o deixar
E as outras cousas que em silêncio trago,

Nasceram quais nenúfares no mar,
Ou serenas visões de um grande lago.
Mas nunca os procurei, tampouco afago.
A minha face externa, singular.

Habito etérea torre em decadência,
Mas essa é minha marca de existência.
O meu destino. Ou sorte. Ou meu fanal.

No coração, contudo, vos abraço
E sigo pelo sonho passo a passo,
Tentando ser moderno e provençal.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Momento

O vôo dos pássaros prolonga
a beleza das tardes.
E há, em nosso olhar,
um vasto
dealbar.
Tudo, em grandeza, torna-se possível.
O visível nasce do invisível.
As nuvens acenam, de repente.
E aquilo que emergiu
é o emergente.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Num sonho

Em minhas mãos tomo teu rosto agora
E não sei se esse gesto vai ferir-me.
Não sei se fico aqui, pensando em ir-me,
Ou se a teus pés sucumba sem demora.

Tenho medo de amar! Vou demitir-me
Desse ofício de sonhos. Vou-me embora.
Mas, o Amor me chama e nele ancora
O meu jeito de ser e de exprimir-me.

Tomo teu rosto, então, por um minuto.
Um grande amor, do eterno claro fruto,
Envolve-me de todo e com loucura.

Entregue fico então ao meu desejo
E ficas em meus braços e te beijo
E morres de prazer e de ventura.
——————–

Fonte:
http://www.revista.agulha.nom.br/artur4.html#soneto

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 32 – 18 de outubro de 1887

Tudo foge; fogem autos,
Fogem onças, foge tudo.
Ó guardas moles e incautos!
Ó corações de veludo!

Uma onça, que vivia
Em casa de uma senhora,
Viu aberta a porta um dia
Da gaiola, e foi-se embora.

Na roça? Não; na cidade.
Que cidade? É boa! a tua.
Dou mais esta claridade:
Era na rua... na rua...

Rua da América... Pronto!
Mas, se não leste a notícia,
Cuidarás que é isto um conto,
É talvez conto e malícia.

Não, amigo. Era uma onça,
Tinha aos três anos chegado;
Vivia discreta e sonsa
Em casa, num gradeado.

Vai senão quando, — um descuido —
Deixaram-lhe aberta a porta,
E a onça sentiu um fluido
Que não sente onça já morta.

Sentiu passar-lhe no lombo
O fluido da liberdade,
E, ligeira como um pombo,
Deixou a casa da grade.

Nenhum liberal, que o seja
Como deve, achará livro
De tantos da sua igreja
Que condene este carniv’ro.

Pois se foge o papagaio,
O macaco, a patativa,
Seja outubro, seja maio,
Tenha ou não tenha mãe viva,

Que muito é lá que uma nobre
Onça das brasílias matas,
Logo que possa, recobre
O uso das sua patas?

Lá por viver entre gente
E canapés delicados,
Não acho suficiente
Para condená-la a brados.

Certo é que fugiu. Bem perto,
Duas casas logo abaixo,
Achou como que um deserto,
E resolveu:”Lá me encaixo”.

Era casa em obras. Passa
Todo o sábado e domingo,
Sem comer sombra de caça,
Sem beber de sangue um pingo.

Na segunda-feira, cedo
Sobe ali um operário,
Despido de qualquer medo:
Vai ganhar o seu salário.

Casualmente (bendito
Seja Deus!) o desgraçado
Vê o olhar da onça fito
De dentro de um tabuado.

Foge; muita gente acode
Armada, e com laço e rede,
A ver se apanhá-la pode;
Ela, com fome e com sede,

Fere o pé a um bom valente,
Mas é já laçada, e morre
Á faca da demais gente,
Que ali bravamente corre.

E porque não era grave
A ferida recebida,
Fechou-se com dura chave
A história, e mais a ferida.

E disse alguém, que não erra
Ocasião de uma vasa:
— “Que há mais natural na terra
Que criar onças em casa?

“Quando muito, demos graças
Aos deuses, que esta podia
Matar duas ou três praças,
E toda um inspetoria.

“Não há onças espanholas?
Não há onças desgraçadas
Estas não rugem nas solas
Das botas acalcanhadas?

“Virá tempo em que não ande
Pessoa que se respeite
Sem uma onça já grande,
Ou, pelo menos, de leite.

“Que toda a senhora fina,
De passeio ou de passagem,
Tenha uma onça menina
Ao lado, na carruagem.

“Que algumas fujam, que trinquem
O pé a qualquer pessoa,
Ou por mal, ou porque brinquem
Pode acontecer, é boa!

“Mas quem já viu neste mundo
Progresso sem sacrifício?
Sangue que corre é fecundo,
E há virtude que foi vício.

“Cavalo que anda direito
Já foi bravio e inquieto,
Onça que morde um sujeito,
Talvez não lhe morda o neto.

“Vamos, pois, encomendemos
Onças, muitas onçazinhas,
E nos quintais as criemos,
Como se criam galinhas”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Tércia Montenegro (Linha Férrea)

Não conseguia mais dormir. Observava o sono do velho: braços e pernas estirados, inúteis. Apenas a cabeça permanecia viva, para dar ordens em alta voz e lançar olhares cheios de fúria.

No começo, quando era um menino, o velho quis educá-lo; funcionou como uma família inteira, com todos os cuidados. Era rico, sem herdeiros __ foi fácil apegar-se àquela criança magra e suja que se divertia improvisando armadilhas para aves, pelo simples prazer de segurá-las e ir arrancando, uma a uma, as penas de suas asas.

Depois do desastre, tudo mudou. O menino, já adolescente, via-se obrigado a cuidar daquele homem transformado em estranha carcaça, que bem se poderia jogar num canto esquecido, não fossem os gritos que ecoavam pela casa.

“É como uma linha férrea desativada” __ o médico lhe mostrava o raio-X, levantando a chapa contra a luz. Lá estava a coluna vertebral, na estrada completa, com todos os seus ossinhos aparentemente em perfeito estado. Mas agora não servia para mais nada, os membros paralisados, a teia dos músculos já frouxa. O velho precisaria de atenção constante: para ir ao banheiro, para passear na cadeira de rodas (estofada como um sofá), para mudar os canais da televisão... E os gritos a cada momento. Chamava o rapaz por qualquer motivo, um copo d'água que era preciso levar aos lábios, a mosca que lhe zumbia sobre a testa.

Ele quis contratar um enfermeiro, mas não conseguiu convencer o velho __ era seu filhinho, não podia abandoná-lo na mão de qualquer pessoa. A partir daí nasceram os olhares de ódio, única ameaça do pai adotivo, intimidação silenciosa que dizia o que a voz não arriscava.

Os dias eram todos iguais, e a rotina lhe trazia certa habilidade com as tarefas. Fazia tudo no horário certinho: comida, banho, barba. Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso. E os assuntos repetidos, que ele respondia com silêncio, mas não podia deixar de escutar, desesperado com as mesmas histórias, as queixas. Por que o velho não fazia como os pássaros, que nem piavam nem nada, com as penas extraídas como dentes e as asas ao final completamente peladas, dois bracinhos tortos e nus, pingados de sangue?

O velho, porém, falava. Os olhos, se os buscasse, eram sempre iguais, inflamados de raiva, ódio de estarem ali, presos, enquanto o rapaz poderia passeá-los por onde quisesse, qualquer paisagem, qualquer corpo __ era livre, móvel. A cada momento poderia deixá-lo, aproveitar a vida... mas ele não permitiria que aquilo acontecesse. Havia a herança, uma fortuna em dinheiro e terras. Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos então ficaram alegres __ o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belíssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro dá e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens __ poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. Verdade que tinha enriquecido ali, as terras eram boas e o povo, ingênuo. Mas para os jovens aquilo devia ser uma cidadezinha de merda, sem diversão nenhuma, hein? Se era!

O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que também se exaltava, esticando o pescoço. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, até que o homem tossiu uma, duas vezes __ e se calou. Depois o olho ficou novamente sério, a voz agravou-se:

__ Mas isso tudo, eu lhe digo, só depois da minha morte. Até lá, você fica comigo, é sua obrigação.

Sinal de cabeça, afirmativa a contragosto. Como se um forte vento tivesse destruído a armadilha de gravetos e o passarinho emplumado já voasse bem longe... De volta às tarefas de sempre, tudo no horário certo. Mas ele não conseguia se concentrar mais em nada, nem dormir.

Caminhava pela sala silenciosa, dissolvido na penumbra, sem formas. Sala ampla, com a coleção de relógios antigos respirando metalicamente. Tão jovem, ele. Bonito, até __ olhava-se no espelho, às vezes, e gostava do rosto moreno, de feições firmes. Tão distante da velhice, daquele cheiro adocicado que o tempo traz. A pele bamba despregando pouco a pouco da carne e da vida: tudo inútil, depois. Abre a porta da frente __ o jardim está quase morto, repleto de folhas secas. Agora observa outra vez a chapa contra a luz. Uma linha férrea, sim. Sem ligações nervosas, sem circuitos, o trenzinho parado não se sabe em que canto do corpo, enferrujando.

Naquela cidade, a estação fica distante, os trilhos são longos e cortam as principais ruas e a praça. Lembra-se do primeiro encontro com o velho: ali perto, ao pé da ferrovia, ele menino, vendo aquele homem que andava normalmente e tinha descido do trem sem precisar de ajuda, sem imaginar que ficaria inválido. Um convite para almoçar: ele, tão magro e sujo, adorou o bife com batatas. Depois, quando o homem o chamou para a casa, pensou que ia ser sempre assim, todo dia, filhinho-e-papai.

Entrou no quarto do velho. O sono custoso, sufocado, lábios soltos preparando ordens. Amordaçá-lo, sim. Como a um cão raivoso. Nunca mais ouvir seus gritos chamando, lá da cozinha, do banheiro. O homem se tornou essa cabeça aflita que não pára de ordenar. O resto do corpo é indiferente __ poderia encostar ferro em brasa na pele: tudo morto.

Pela noite, o passeio na cadeira-sofá; ele vai empurrando por trás e assim não vê os olhos do velho, de boca amordaçada, braços e pernas acorrentados na própria paralisia. “Vamos rever o local do nosso encontro, papai” __ a voz baixa, só ela, no escuro.

Amanhã será livre. Dinheiro, terras, viagens __ por que o velho foi falar? Talvez ele nunca tivesse pensado naquilo. O trem das onze chega logo. Sente um arrepio: a luz do poste iluminou o rosto do homem, o mesmo que descia na estação, anos atrás. Não podia imaginar que um dia estaria deitado na linha do trem, com o menininho lhe ajeitando os membros, cuidadoso como se buscasse o equilíbrio entre as madeiras de uma gaiola.

Afasta-se. Pensa em voltar rápido para casa; a cadeira de rodas leve, ágil. Mas não resiste a um impulso: o de ver os vagões correndo, correndo, atravessando a linha férrea e correndo, correndo.

 (Tércia Montenegro, Linha Férrea)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Tércia Montenegro

Tércia Montenegro Lemos (Fortaleza, 1976) tem graduação em Letras, mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de contos O Vendedor de Judas (Fortaleza: Edições UFC, 1998; 2 ed, Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003), que recebeu o prêmio Funarte; Linha Férrea (São Paulo: Lemos Editorial, 2001), que recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros da Biblioteca Nacional e venceu o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela Revista Cult, em 2000; e O resto de teu corpo no aquário (Fortaleza: Secult, 2005), Prêmio Secretaria da Cultura do Estado do Ceará em 2004. Em 2005, recebeu os prêmios Osmundo Pontes e Fran Martins, pela Academia Cearense de Letras. Escreveu ainda o ensaio biográfico Oliveira Paiva (Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003) e participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), Contos Cruéis (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006). Tem dois livros infantis, Um pequeno gesto (Fortaleza: Demócrito Rocha/ APDMCE, 2006) e O gosto dos nomes (Fortaleza: Seduc, 2006).

No mais das vezes, os primeiros livros, mesmo de escritores menos jovens, demonstram imaturidade de seus autores, quando não são notórios a falta de leituras, sobretudo dos clássicos, e de exercício da escrita, imprescindível ao seu aprimoramento.

“O Vendedor de Judas”, conto que dá título ao volume, mostra que pelo menos em dois pilares da cultura a nova contista fincou os pés (ou a cabeça): os textos bíblicos e o folclore. Para intitular o livro, valeu-se do conto inspirado no mito bíblico da traição. O conto, porém, se centra no folclore de Judas, as comemorações profanas do Sábado de Aleluia, em que o “personagem” é um boneco, para ser vendido. Mercadoria, portanto. Não chega, pois, a personagem. Ou seja, os papéis se invertem: Judas, o vendedor de Cristo, se transforma em boneco a ser vendido e queimado. O protagonista do conto é, na verdade, um fabricante e vendedor de “bonecos esculpidos em madeira clara”.

Mas vejamos alguns aspectos da carpintaria da contista. Comecemos pelos personagens, sempre poucos em cada história. Tão poucos que em alguns contos estão em completa solidão. Em “A Espera”, o preso à espera da visita de uma filha que lhe promete levar fotos de outra filha, morta, e “o abraço impedido pelas grades”. Em “Um Poeta”, os três personagens “sentados no jardim, pensando em morrer.” Em “A Longa Espera”, o velho que “ficou só, no casarão alpendrado, com as terras diminuídas e a esposa cada vez mais magra, resmungando sozinha.” A solidão dele e a dela, mesmo vivendo na mesma casa. Em “A Inspetora”, D. Mozarina, vivendo apenas de lembranças: “fecha as janelas, arreia-se numa cadeira, abanando o pescoço com o decote.”  Em “Himalaia”, o menino órfão no farol abandonado, “aquele fio de terra, herança de três gerações.” Em “O Mestre”, um pobre coitado que já viveu na riqueza e terminou mendigo: “na maior parte do tempo, o mestre fica mesmo é calado, com seu ar prepotente, olhando as páginas abertas dos muitos livros.” E o que dizermos do velho viúvo à procura da esposa, pelos povoados, enlouquecido, angustiado (“A Longa Espera”)? São personagens sofridos, quase sempre às voltas com fantasmas do passado.

Há uma relevância do passado no contexto de algumas narrativas, o que se contrapõe às lições de teóricos da ficção menor. Em “A Espera” o marido esfaqueara a esposa, “numa crise de ciúmes”, e, em consequência, a mãe da jovem também morrera, poucas horas após a consumação do crime. Alguns contos lembram os de Moreira Campos, pela carga de sofrimento, angústia, solidão das personagens, assim como pelo andamento dos incidentes, os diálogos, a caracterização das personagens, o desfecho. Essa narração de fatos do passado é absolutamente necessária ao entendimento do leitor, sob pena de o conto se tornar ilegível. Isso se repete em “Vitorina”, uma aleijada que nutrira paixão por um rapaz, depois feito padre e morto no mar. Um dos melhores contos do livro.

Em alguns dos contos de TM o tempo narrado se alonga, sem prejuízo dos incidentes centrais da trama. De qualquer forma, quase todas as narrativas principiam no passado, quando não descrevem traços do protagonista ou o ambiente. Vejamos: “A cidade era pequena” (“O Vendedor de Judas”); “Era longo o caminho de terra e mato” (“O Franciscano”, no qual a trama esconde o homossexualismo do protagonista); “Ninguém se lembra mais de quando ele apareceu” (“O Mestre”); “Dos três, João é o mais inquieto” (“Um Poeta”) e outros.

No desenrolar das tramas, Tércia se serve ora de narração ora de diálogos, estes sempre bem dosados, curtos, sem apelos a gírias, modismos ou regionalismos. Vale ressaltar que os espaços das ações nunca são nominados, sejam cidades ou logradouros, sendo perceptíveis, porém, o espaço das pequenas cidades nordestinas. Num conto há um Mercado Central, que pode ser o de Fortaleza. Em outros há referências a um botequim da esquina, a uma padaria da esquina, a “uma barraquinha tosca, cheirando a peixe”, talvez referência às praias de Fortaleza. Em outras histórias aparecem peitoril da janela, anões de jardim, estátuas de gesso, bibelôs de porcelana, mesa de jantar, chapéu, banquinho, roupas molhadas no varal, mocinhas à calçada, “desfazendo as tranças”, tudo a lembrar casas, velhas casas, ruas de cidadezinhas. Os “crimes de faca”, a “surra de cinturão grosso”, porcos e galinhas soltos no quintal ou no terreiro conduzem ao interior.

São raros os contos em que o espaço da ação principal está circunscrito a quatro paredes. Em “O Tapete Vermelho” é um convento de freiras, onde Irmã Querubina, “a mais ingênua de todas”, se vê a final catalisadora de um milagre. Em “O Poeta” três personagens numa casa em clima de sonho, como nos contos fantásticos. É uma das narrativas mais profundamente poéticas, uma das mais bem realizadas do livro. Linguagem bem elaborada, sem gorduras, como em outras. A praia, o farol, “a escadinha enferrujada do velho farol” em “Himalaia”. Em “Carnaval de antigamente” cabe ao leitor escrever as entrelinhas do enredo, completar o quadro. Em “Morte às Escondidas” menina vê avô morrendo, num quarto.

Em alguns contos o espaço da ação é difuso, como em “O Vendedor de Judas”. O protagonista ora se encontra no meio da rua a caminhar, ora num bar, ora num hotel, ora a caminho de volta, “perto da Serra Branca, a minúscula figura do homem montado num cavalo marrom.” Nesse conta a linguagem semelha a do cinema.

O ponto de vista é, nos dois últimos do volume, na 1.ª pessoa; nos demais, o narrador é onisciente. Em “Réquiem” um tom fantástico perpassa a narrativa. Professor particular de música recebe telefonema de amigo espírita, que teria psicografado réquiem em mensagem de  certo André Luís, um espírito. Em “O Sobrevivente” o clima é mais fantástico ainda. Uma peste assola a cidade. “A doença corrói por dentro, chegando ao coração.” A linguagem é profética, bíblica. Todos cairiam nas garras da pestilência.”

Há momentos de intensa poesia, especialmente em “Dois Búzios ao Mar”. Um casal indo ao mar, como num sonho de amor trágico. No entanto, não pode ser confundido com poema, por presentes todos os requisitos da ficção menor.

O Vendedor de Judas é uma demonstração do talento de Tércia Montenegro, assim como de sua dedicação à leitura de obras fundamentais da Literatura e ao exercício do ato de escrever e reescrever. Um exemplo a ser seguido, no que for possível, pelos que se iniciam nas Letras.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas “Trovia” – n. 170 – fev. 2014)



Coração, nunca se vingue
de quem tanto te ameaça...
É fácil ser estilingue,
difícil é ser vidraça.
Dias Monteiro

Tu tão moça, eu tão vivido...
tantos anos de permeio.
Bem poderias ter sido
o grande amor que não veio...
J.G. de Araújo Jorge

Que falta me faz, Senhor,
um anjo de intenso brilho,
que foi exemplo de amor...
e me chamava de filho!
João Freire Filho

Meu velho criado-mudo,
minha discreta almofada,
vocês, que sabem de tudo,
por favor, não contem nada.
Lucy Sother Rocha

No cantar de uma cigarra
há tanta melancolia,
que parece ser a tarde
chorando a morte do dia...
Pedro Emílio

Ao labor ergue um tributo!
Semeia o bem, vai, semeia!
Nem que a colheita do fruto
venha a ser de mão alheia! 

Rodolpho Abbud


“Não há pão? Comam brioche!",
disse a rainha ao seu povo.
Antes um pão que o deboche,
de preferência... com ovo.
Diamantino Ferreira – RJ

Muito esquisito esse "muso",
o ancião com quem se casou:
da fortuna ela faz uso,
mas o resto... nunca usou!...
José Ouverney – SP

Que pena que uma pequena
não teve pena de mim.
E eu que dela fui ter pena
fiquei depenado assim...
J. Revoredo Neto – RN

Quando a mulher não sacia
sua “fome de leão”,
come na sogra ou na tia...
boas de forno e fogão!
Maria Madalena Ferreira – RJ

A trova se desapruma,
e dela não há quem ria,
se a rima que a gente arruma
rema rumo à baixaria...
Osvaldo Reis – PR

Meu pai, comprando fiado,
que tem palavra provou...
Prometeu ao ser cobrado:
“Eu não pago!” – e não pagou!
Pedro Ornellas – SP

O gajo, sendo um velhaco,
engajou-se bem no ofício:
– um cargo de puxa-saco
pra puxar palma em comício!
Renato Alves – RJ

A ratazana e o ratinho
brigaram feio, de fato:
foi ciúme do vizinho...
que, na verdade, era um “gato”!
Selma Patti Spinelli – SP


  

Tal qual dois rios se abraçam,
formando um só rio após,
dois “eus” pelo amor se enlaçam,
passando a chamar-se “nós”!
A. A. de Assis – PR

Lutando em favor do bem,
nossa fé nunca se abate.
Que eu possa dizer também:
“Combati o bom combate”.
Almir Pinto de Azevedo – RJ

A vida é lição constante
em tudo o que se executa,
mas só se aprende o bastante
quando chega o fim da luta.
Amaryllis Schloenbach – SP

Quando sozinhos, vigiemos
sempre o nosso pensamento;
na rua a língua que temos,
e em casa o temperamento.
Amilton Maciel – SP

Rasguei minha fantasia
nas cinzas do carnaval.
Abandonou-me a alegria,
volto agora ao meu real.
Angela Stefanelli – RJ

O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR

Não tema que o tema eu tema,
temas não temo, porque,
que importa qual seja o tema,
meu tema é sempre: "Você"!
Carolina Ramos – SP

Entre o sonho e a realidade,
vendo o meu filho eu pensei:
eis a mais bela verdade
de tudo quanto sonhei!
Conceição de Assis – MG

Uma prece eleve a Deus,
com fé peça hoje a cura
para alguém junto dos seus
e cure essa criatura.
Cônego Telles – PR
 

Yo llevo la primavera,
dentro de mi corazón,
por tu amor que a él le diera,
¡Su única eterna ilusión!
Cristina Olivera Chávez – USA

A noite caminha torta,
sem estrelas, sem luar...
Mesmo assim eu abro a porta
querendo te ver chegar.
Dáguima Verônica – MG

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto...
Darly O. Barros – SP

Eu ergo a taça a brindar
a noite que o quarto invade
e, no cristal do luar,
bebo o vinho da saudade!
Domitilla Borges Beltrame – SP

Chuvas mansas ou granizos
agradecemos em prece,
que é de lágrimas e risos
que consiste a nossa messe.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Bendigo a mão calejada
que, num trabalho fecundo,
presa ao cabo de uma enxada,
dá cabo à fome do mundo!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Da janela do avião
aos receios dei um fim;
Deus está na imensidão
e também dentro de mim.
Eliana Jimenez – SC

Sempre que a lágrima desce
e insiste em molhar-me a face,
eu uso o lenço da prece...
e é como se eu não chorasse...
Ercy Marques de Faria – SP

Cascata, teu pranto triste
parece que não tem fim...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
Francisco Garcia – RN

Aquela rede que um dia
foi nosso ninho perfeito
hoje balança vazia
na varanda do meu peito.
Francisco Pessoa – CE

No tronco de uma mangueira
escrevi: Felicidade...
Mas alguém, por brincadeira,
riscou e escreveu: Saudade!
Gasparini Filho – SP

Nosso romance de amor
começou bem diferente...
Foi nosso computador
que aproximou mais a gente.
Gislaine Canales – RS

Nosso amor é uma certeza
dentro do meu coração;
e a luz da paixão, acesa,
apaga a luz da razão!
Istela Marina – PR

A velhice, meu irmão,
não é uma questão de idade.
É quando vai-se a ilusão
e vem chegando a saudade.
Jaime Pina da Silveira – SP

Gotinhas em cada galho,
a natureza brilhante.
Pois cada gota de orvalho
mais parece um diamante.
Janske Schlenker – PR

Hoje trago na lembrança
uma dor que sobrevive
num fiapo de esperança
pelo amor que nunca tive
JB Xavier – SP

Resto de sonho – confete –,
abandonado no chão,
na quarta-feira reflete
a amargura do salão.
Jeanette De Cnop – PR

Quando a mente se alvoroça
e vocifera no entulho,
arremeda uma carroça:
mais vazia...mais barulho.
João BX Oliveira – SP

Não há dizer que defina
o doce amor da mulher;
quando toca, mescla, ensina,
faz do homem o que quer!
Jorge Fregadolli – PR

Amor... dois copos de vinho
são nossos dois corações,
cujo sabor é o carinho
transbordando de emoções!
José Feldman – PR

Não sou pobre, sou risonho,
Tenho amor, paz e guarida.
Não tenho a vida que sonho,
Mas tenho os sonhos da vida.
José Lucas de Barros – RN

Leve toque em tua mão
revela tanto segredo:
faz bater o coração
no calor de cada dedo.
José Roberto P. de Souza – SP

Velho rio que recolhe
tantas lembranças sem fim...
És um mundo que me acolhe
no mundo que resta em mim...
José Valdez – SP

Enquanto a chuva, lá fora,
escorre pela vidraça,
choro meu pranto que, embora
passando a chuva, não passa.
Laérson Quaresma – SP

Un amigo es un hermano,
obra de amor en la tierra.
Nunca le niegues tu mano,
busca laz paz, no la guerra.
Líbia Carciofetti – Argentina

Sou criança, sou poeta,
sou menina, sou mulher.
Nesta vida a minha meta
é ser o que eu bem quiser.
Lucélia Santos – RN

Sonatas intercaladas
antes, durante e depois...
E em nossa pele, trocadas,
as digitais de nós dois!
Lucília Decarli – PR

A paz que tanto almejei,
em sonhos que não têm fim,
estava onde não busquei:
-– perdida dentro de mim!
Luiz Antonio Cardoso – SP

Do simples pó eu procedo,
sei que a ele hei de voltar;
a vida não tem segredo:
é um eterno retornar.
Luiz Carlos Abritta – MG

Palabras aún en distancia
son vida para quien ama;
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.
Maria Cristina Fervier – Argentina

Pobre vai de pé no chão,
de carona, só por sorte.
Rico estaciona o carrão
e caminha por esporte...
Marina Valente – SP

Não navego em calmaria,
minhas velas querem vento!
Se pudesse, (in)ventaria
um verso mais turbulento!
Mário Zamataro – PR

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão;
sê firme, em cada pisada,
que as honras te seguirão.
Maurício Friedrich – PR

Deus, com seus poderes plenos.
fez todos homens iguais.
Mas sabe que valem menos
os que pensam valer mais...
Milton Souza – RS

Revendo os porta-retratos,
que o tempo guarda, sem fim,
eu vejo, em tempos exatos,
cada pedaço de mim.
Nei Garcez – PR

Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.
Neiva Fernandes – RJ

A rotina e os desencantos,
que fazem da vida um tédio,
têm alívio em nossos cantos
e, na trova, um bom remédio.
Olga Agulhon – PR

Em teu olhar fascinante,
meu coração se perdeu,
e mantém minha alma errante
plena do amor que é só teu...
Olga Maria Ferreira – RS

Pegas da pá, da marreta,
da picareta, do malho...
Pego papel, a caneta,
o pensamento... e trabalho.
Olympio Coutinho – MG

Tanto a paixão nos deslumbra
e o seu ardor nos seduz,
que, em nosso quarto, a penumbra
é pontilhada de luz...!
Pedro Melo – SP

Confesso-me um trovador,
sei que não sou dos melhores;
meu segredo é pôr amor,
para não ser dos piores.
Raymundo Salles – BA

Para ter felicidade,
ao buscá-la eu pressuponho
que, seja qual for a idade,
felicidade é ter sonho.
Rita Mourão – SP

Todo milagre é um encanto;
não há outra explicação.
Da natureza, de um santo,
da ciência ou da paixão.
Roberto Acruche – RJ

Desde criança a poesia
é a minha grande riqueza:
minha fonte de alegria,
minha eterna fortaleza.
Roza de Oliveira – PR

Grata sou profundamente
por ter na vida encontrado
o mais caro dos presentes:
bons amigos a meu lado!
Sinclair Casemiro – PR

Do nascer à despedida,
ele é sal e sol na estrada,
ele é luz em nossa vida,
sem amor não somos nada...
Sônia Ditzel Martelo – PR

Entre as pedras do caminho,
deixei um sonho disperso,
que morreu longe, sozinho,
nas rimas tristes de um verso!
Sônia Sobreira – RJ

Se  a tristeza me confina
e apaga meu brilho assim,
a   luz  da fé  me ilumina
e me defende... de mim!
Thereza Costa Val – MG

Sei que viver é lutar,
mas luto em desigualdade.
Eu sou concha e a vida é o mar
em noite e tempestade.
Therezinha Brisolla – SP

Pelos caminhos plantei
as sementes de amizade,
e um patrimônio eu herdei
colhendo a felicidade.
Vanda Alves da Silva – PR

O pai de mão calejada
bendiz ao árduo labor
pela caneta dourada
na mão do filho doutor.
Wandira Fagundes Queiroz – PR

====================================
Visite:
http://poesiaemtrovas.blogspot.com.br/
http://universosdeversos.blogspot.com/
http://www.falandodetrova.com.br/

Jaime Vieira (Nas Asas da Poesia)


AMANHECER I

O sol amarrado
no porão da noite
escapa.
Afugenta a lua
espanta as estrelas.
Decidido vai para rua
e anuncia
um novo dia.

AMANHECER II

A madrugada vem a galope
no alazão da noite.
No céu, entre as nuvens,
o rasto que fica,
são estrelas.

AMANHECER III

o sol sonolento
lentamente
desperta
e com agulhas certas
tece o amanhecer.

AMANHECER IV

o amanhecer é
um pássaro ligeiro
leva nas asas
a escuridão
da noite.

ASSALTO

Eu só não te devolvo
estes anos de ti roubados,
porque os meus sonhos guardados,
estes sim,
num assalto, por ti
foram levados.

Roubaste-me o tempo.
Roubaste-me o sono.
Já nem sou mais dono
do meu coração.

CAIS I

Gaivotas já não
acordam a paisagem.
A tarde ancora
no porto.
Fecham-se os olhos do dia,
anoitece.

Chega a noite
em negrito,
debulha estrelas
no infinito
enquanto no porto,
ancorada em mim,
a paisagem agora
dorme.

CAIS II

Meus sonhos
adormecidos
levantaram
âncoras.

Veio a noite
veio o dia
e se atracaram
nos meus cais.

Fiquei no porto
apregoando versos
de um poema torto
ancorado em mim.

INDIFERENÇA

pêssegos ásperos
lâminas frias
estilhaços
quem diria?,
a tua frieza
aquece meu coração.

INTIMIDADE

o acordo
nosso
é tão
íntimo
que a cor do
nosso íntimo
revelar,
não posso.

MOVIMENTO

Voo da ave ferida
paisagem aberta – amplidão.
Há uma espécie de conspiração
movendo as coisas:
a vida!

NEON

quando a noite vem
uma teimosa ilusão
inventa uma lua,
é no meio da rua
que os sonhos ainda estão.

NOVO AMOR

Todo novo amor
é um conto de fada.
Pode ser tudo
pode ser nada.
Água corrente
de morro abaixo,
diante deste riacho;
refrescar os pés,
olhar as nuvens
e sonhar.

NUDEZ

atrás do biombo
das minhas ilusões
dispo-me
das decepções
que querendo ou não
a vida sempre me veste.

OS LENÇOS

pendurados no varal
meus lenços ainda úmidos
de um recente adeus
esperando o sol
ainda respingam
lentas lágrimas.

RACHADURAS

o desprezo
é uma arma dura
fere fundo,
atravessa
as armaduras
de qualquer
coração.

Fonte:
Jaime Vieira de Souza Filho. Asas. SP: EDICON, 1989.

Irmãos Grimm (Os Emissários da Morte)

Em tempos remotos, em certa ocasião, um gigante estava viajando por uma estrada muito grande, quando de repente um desconhecido apareceu diante dele, e disse, "Alto lá, nem mais um passo adiante!"

"O quê é isso!" exclamou o gigante, "uma criatura que eu posso esmagar no meio dos meus dedos, quer impedir o meu caminho? Quem és tu que te atreves a falar com tanta ousadia?"

"Eu sou a Morte," respondeu a criatura. "Ninguém pode comigo, e tu também deves obedecer às minhas ordens."

Mas o gigante se recusou, e começou a lutar com a Morte. Foi uma luta longa e violenta, mas finalmente o gigante levantou sua mão, e golpeou a Morte com um soco, e ela caiu que nem uma pedra.

O gigante seguiu o seu caminho, e a Morte ficou ali desolada, e estava tão fraquinha que não conseguia se levantar novamente.

"O que será que vai acontecer agora," disse a morte, "se eu ficar deitada aqui num cantinho? Ninguém mais vai morrer no mundo, e ele vai ficar tão cheio de pessoas que não vai haver mais espaço e eles terão de ficar um ao lado do outro."

Enquanto isso, um jovem passava pela estrada, ele era forte e saudável, e cantava uma canção, e olhava para todos os lados. Quando ele viu a criatura meio desmaiada, ele ficou tomado de compaixão, levantou o infeliz, ofereceu-lhe uma bebida restauradora que trazia num frasco, e esperou que ele se recuperasse.

"Tendes noção," disse o estranho, enquanto se levantava, "de quem sou, e de quem se trata aquele a quem ajudaste a se levantar novamente?"

"Não," respondeu o jovem, "Não conheço a ti."

"Eu sou a Morte," respondeu a criatura. "Eu nunca poupo ninguém, e não posso fazer uma exceção para você, — mas podes ver que sou grato, e te prometo que não irei te buscar inesperadamente, mas enviarei meus mensageiros para ti antes de chegar a tua hora."

"Bem," disse o jovem, "já é uma grande vitória o conhecimento de que saberei o dia da tua chegada, e que de qualquer forma estarei livre de tua presença por tempo tão longo."

Então, o jovem tomou seu caminho, e estava aliviado, e feliz consigo mesmo, e viveu despreocupado. Mas juventude e saúde não costumam viver juntos por muito tempo, logo as doenças e as preocupações começaram a aparecer, as quais o atormentavam durante o dia, e o tomavam conta dele durante o resto da noite.

"Morrer não vou," dizia para si mesmo, "pois a Morte me enviará seus mensageiros antes que isso aconteça, mas eu gostaria que estes infelizes dias de doença tivessem acabado."

Assim que ele se sentiu bem novamente ele começou a viver feliz outra vez. Até que um dia alguém bateu levemente em seus ombros. Olhou de lado, e a Morte estava diante dele, e disse,

"Segue-me, pois é chegada a hora de tua partida deste mundo,"

"O quê," respondeu o jovem, "estais descumprindo tua palavra? Não me prometeste que enviarias teus mensageiros antes que vieste definitivamente? Não vi nenhum deles!"

"Silêncio!" respondeu a Morte. "Não te mandei eu um mensageiro após o outro como prometi? A febre não veio e te castigou, te sacudiu, e te deixou prostrado? As tonturas não te povoaram a cabeça? A artrite não contraiu todos os teu membros? Os teus ouvidos não ficaram zunindo durante algum tempo? A dor de dentes não te visitou todos os dias? A escuridão não te molestou a visão? E além de tudo isso, será que o meu irmão o Sono nunca te fez lembrar todas as noites de mim? Nunca deitaste durante a noite como se já tivesses morrido?"

O jovem não conseguia responder; se resignou diante do destino, e seguiu o seu caminho em companhia da Morte.

Fonte:

Sonetos Satíricos III

AMADEU AMARAL (SP)

Um fidalgo na neblina


Uma noite, a vagar entre a neblina,
Enxergo um vulto sobranceiro e nobre,
Que de um gabão romântico se cobre
E sob um largo feltro a testa empina.

Nem a chuva a cair faz que se dobre,
Nem à rajada mais cruel se inclina.
Avanço; e, no halo de um lampião de esquina,
Vejo de perto meu fidalgo: é um pobre...

Dou-lhe uma esmola e sigo. Continua
Pisando a lama parda o Cavaleiro,
Na praça morta, sob o céu sem lua...

E eis como um triste, amargado e esquivo,
Com um pouco de distância e de nevoeiro,
Pode passar por um fidalgo altivo.

LISINDO COPPOLI (SP)

Arte moderna

(a propósito da I Bienal, em 1951)

Leonardo?!... Rafael?!... Tenham paciência!
Tudo isso não passa de bobagem.
Dom Ciccillo andou bem: teve a coragem
De acabar de uma vez co'a decadência.

A pintura moderna é arte e ciência
Das mais sublimes, pois não tendo imagem
Nem natureza morta nem paisagem,
Mais que aos sentidos, fala à inteligência.

E convém dizer isso: uma obra-prima
Das mais modernas fica muito acima
Das antigas por mais esta razão:

Que, sendo um quadro, p'ra gozar-lhe o efeito
Pode-se pendurar de todo jeito:
É a mesma coisa em qualquer posição.

MOACIR PIZA (SP)

O Botelho


Alto, ossudo, feioso; bigodeira
Farta, cobrindo a boca desdentada,
Onde fizeram túmulo, ou morada,
O Despropósito, a Tolice e a Asneira.

Cara de esbirro, amarelenta, ornada
De chato narigão, que tudo cheira;
Mole pelanca, à guisa de papeira;
Cabeça de urubu, cheia de... nada.

Olhar inexpressivo; gesto brusco;
Pirrônico, turrão, todo arrelia;
Rindo, — apavorador; sério, — patusco.

Eis o que refletira um bom espelho,
Se diante dele se postasse um dia
O papão da Estatística — o Botelho.

RAIMUNDO CORREIA
(Raymundo da Motta de Azevedo Corrêa)
São Luis/MA (1859 – 1911) Paris/França

HÓS! E AIS!

(sobre a Garota de Ipanema)

Há um certo Demócrito que chora
Vendo-a e há muito poeta que se enleia;
E um, cujo nome não me vem à idéia,
Vive a rondar a casa em que ela mora.

Até o santo apóstolo anda fora
De si e do jornal, pela sereia:
Adorou-a o Fontoura, eu adorei-a,
E o Filinto de Almeida inda hoje a adora.

Quando ela passa, abre o Silvestre a boca
E o Luís suspira as formas dela vendo
Amplas, redondas, fartas, sensuais.

Hós de espanto e ais de dor ela provoca,
Mas entre os ais e os hós passa, fazendo
Tanto caso dos hós como dos ais.

RAIMUNDO CORREIA

À mesa da gazetilha

[desafio de Correia a Lopes Cardoso]

O Maia, o Ramos, o Cardoso, o Lemos
E eu — da mesa em redor estamos;
E vários livros sobre vários ramos
Da ciência, em frente, sobre a mesa, temos.

Mas livros tão insípidos não lemos
Nós: eu, Lemos, Cardoso, Maia e Ramos;
Porquanto às letras só nos dedicamos
E só às letras nos dedicaremos.

Prosa-se. Ramos diz: "Como é grandioso
Um poema!" — Lemos diz: "Nada há que atraia
Mais que um fino dito espirituoso!"

"Mas eu prefiro um 'calembour'!" (diz o Maia)
Desmaia! É tua vez, Lopes Cardoso!
Tens a palavra! O 'calembour' que saia!

RESPOSTA DE LOPES CARDOSO

Eu e o Lemos, e o Raimundo, o Ramos...
Urramos? Isso não! apenas lemos
Lemos (o João de), que em frente temos,
E os seus versos piegas criticamos.

D'estrofe em estrofe, a chalaçar, erramos,
E Ramos, o Raimundo, o próprio Lemos...
São o diabo! uns verdadeiros demos,
Com cujos ditos gargalhadas damos!

Quanto deles o espírito eu invejo!
São inacompanháveis no gracejo,
Na pilhéria sutil, no calemburgo!

Eles, nas suas frases põem a gala
Da fina graça, que na Corte cala,
Eu, na chalaça, que só cala em burgo!

Fontes:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/satirico.htm
Imagem = Libreria Fogola Pisa (Facebook)