quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Jangada de Versos do Ceará (6)

NIRTON VENÂNCIO 
Crateús (1955)
-
UNIDADE


Cada dia
tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.

Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.

Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabe no porto
o rumo do sul e do norte.

PER SI

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução
simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

O GATO

Sob as estrelas
o gato é místico.
Passeia na noite
sobre os telhados de vidro
com suas patas silenciosas
como se tivesse planos e segredos
no percurso das suas sete vidas.

O gato vagueia nos telhados
e no meu coração,
pousa leve em cada passo
como pássaro
conspirador
misterioso
salta por cima dos que dormem
e não sonham comigo.

VIÉS
 

O poeta percebe
de forma
estranha.
Por isso percebe.

GALOPE
 

O corpo do homem
é um cavalo
onde
a alma põe a sela
e dispara no mundo
- o galope da existência
é um fato mágico
um mistério profundo
uma revolução eterna.

As esporas dos dias
atiçam o meu corpo
pelo sertão do mundo
e com as rédeas dos braços
cavalgo
pela trajetória contínua do sol
com a vida ferrada
nos olhos
e os segredos nos alforjes do peito.

Jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo
é decisivo
todo caminho
dá para o norte
todo corpo
é um gibão sobre a alma
toda a vida
é o lado externo da morte
todo peito
é um roçado
para toda safra
ser das rosas.

TRANSITIVO
 

A minha fala
só é
fala
quando
muda.
A minha fala
não é
fala
quando não move.
- aí
ela é muda.

A minha mudez
só é
mudez
quando
fala.
A minha mudez
não é
mudez
quando
não estala
- aí
ela cala.

PRAZO
 

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira…

Fonte:
http://nirtonvenancio.blogspot.com.br

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