sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 32 – 18 de outubro de 1887

Tudo foge; fogem autos,
Fogem onças, foge tudo.
Ó guardas moles e incautos!
Ó corações de veludo!

Uma onça, que vivia
Em casa de uma senhora,
Viu aberta a porta um dia
Da gaiola, e foi-se embora.

Na roça? Não; na cidade.
Que cidade? É boa! a tua.
Dou mais esta claridade:
Era na rua... na rua...

Rua da América... Pronto!
Mas, se não leste a notícia,
Cuidarás que é isto um conto,
É talvez conto e malícia.

Não, amigo. Era uma onça,
Tinha aos três anos chegado;
Vivia discreta e sonsa
Em casa, num gradeado.

Vai senão quando, — um descuido —
Deixaram-lhe aberta a porta,
E a onça sentiu um fluido
Que não sente onça já morta.

Sentiu passar-lhe no lombo
O fluido da liberdade,
E, ligeira como um pombo,
Deixou a casa da grade.

Nenhum liberal, que o seja
Como deve, achará livro
De tantos da sua igreja
Que condene este carniv’ro.

Pois se foge o papagaio,
O macaco, a patativa,
Seja outubro, seja maio,
Tenha ou não tenha mãe viva,

Que muito é lá que uma nobre
Onça das brasílias matas,
Logo que possa, recobre
O uso das sua patas?

Lá por viver entre gente
E canapés delicados,
Não acho suficiente
Para condená-la a brados.

Certo é que fugiu. Bem perto,
Duas casas logo abaixo,
Achou como que um deserto,
E resolveu:”Lá me encaixo”.

Era casa em obras. Passa
Todo o sábado e domingo,
Sem comer sombra de caça,
Sem beber de sangue um pingo.

Na segunda-feira, cedo
Sobe ali um operário,
Despido de qualquer medo:
Vai ganhar o seu salário.

Casualmente (bendito
Seja Deus!) o desgraçado
Vê o olhar da onça fito
De dentro de um tabuado.

Foge; muita gente acode
Armada, e com laço e rede,
A ver se apanhá-la pode;
Ela, com fome e com sede,

Fere o pé a um bom valente,
Mas é já laçada, e morre
Á faca da demais gente,
Que ali bravamente corre.

E porque não era grave
A ferida recebida,
Fechou-se com dura chave
A história, e mais a ferida.

E disse alguém, que não erra
Ocasião de uma vasa:
— “Que há mais natural na terra
Que criar onças em casa?

“Quando muito, demos graças
Aos deuses, que esta podia
Matar duas ou três praças,
E toda um inspetoria.

“Não há onças espanholas?
Não há onças desgraçadas
Estas não rugem nas solas
Das botas acalcanhadas?

“Virá tempo em que não ande
Pessoa que se respeite
Sem uma onça já grande,
Ou, pelo menos, de leite.

“Que toda a senhora fina,
De passeio ou de passagem,
Tenha uma onça menina
Ao lado, na carruagem.

“Que algumas fujam, que trinquem
O pé a qualquer pessoa,
Ou por mal, ou porque brinquem
Pode acontecer, é boa!

“Mas quem já viu neste mundo
Progresso sem sacrifício?
Sangue que corre é fecundo,
E há virtude que foi vício.

“Cavalo que anda direito
Já foi bravio e inquieto,
Onça que morde um sujeito,
Talvez não lhe morda o neto.

“Vamos, pois, encomendemos
Onças, muitas onçazinhas,
E nos quintais as criemos,
Como se criam galinhas”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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