sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) III

Balada do Desertor

Na Primavera a guerra prenunciava,
Uma nova batalha no Vale dos Mortos,
Como a destruição apocalíptica do Armagedon.
Lembrei-me dos inúmeros mutilados,
Volvi meus olhos de poeira e dor,
Para centenas de lares,
Repletos de órfãos famintos,
Onde o fantasma feroz da fome,
Rodava em círculo aquelas moradas.

Amarrei, então, o cadarço da botina,
Salpicado de lama e sangue,
Trilhei pela estrada deserta de minas,
Dando adeus a peleja
Nada de glorioso o me aguardava.

Apenas o pelotão de fuzilamento,
O uniforme rasgado,
Os botões dourados arrancados
E a insígnia tirada a força de meu peito.

Quando descansei ao cair da tarde,
Num rancho à beira da estrada,
Só havia entre os escombros,
Um naco de pão centeio,
Empoeirado na desordem daquela dispensa.

Faltava água para beber,
E o cantil já estava vazio,
E os rios corriam lentos em direção ao mar,
Passavam envenenados,
Nada mais podia esperar.

A minha arma vendi num bordel,
E entre putas e rufiões,
Celebrei a minha deserção,
Morri crivado de balas
com a minha própria arma,
Naquela madrugada azul e fria
Quando não mais havia
um níquel para eu gastar.

Para que serve um homem hoje em dia?
Somente para morrer,
Somente para matar.

Prece de um Pecador
 

Meu Senhor fui negligente
E agora estou doente
Por conta de minha transgressão
Não amar só ti
Diante de tanta farra e profanação

Meu Senhor estou convalescente
E busco o vosso perdão
Meu Deus
Não me abandones
Sou apenas um pobre grão
Pecando nesse pobre chão

Meu Senhor fui descuidado
E agora estou ferrado
Diante de tanta violação
Abrande minha pena
Diante do vosso Tribunal de Apelação

Pequei, Senhor!
Tenha piedade de mim
na hora de minha condenação.

O Herético

Numa madrugada
Quando queimava de febre
Suspendi os olhos para o oitão
E tremendo de frio
Busquei no tempo
Agasalho para a minha solidão.

Balada da Minha Dor
 

Eu sou um cão vadio sobre a face da terra,
Farejando no ar tanto indignação.
Eu lambi as feridas de São Roque,
Levei o seu precioso pão.

Eu fui o cão de caça do palácio de Gotardo.
Transitei num tempo de peste,
e nas colinas ao Leste,
quando me buscaram,
eu estava distante cravejando minha presa no calcanhar do Cão.

Eu estive com São Lázaro,
e testemunhei a sua ressurreição
Por longas décadas andei de pelo caído,
de sardas espalhadas pelo chão.
E nem por isso abaixei o meu focinho,
nem deixei que o carinho,
diluísse nesses tempos de completa podridão.

Eu permaneci ligado,
Algumas vezes travado:
de haxixe, maconha e bom bocado.
Nesse condado repleto por putas, veados e ladrões.

Eu vi a miséria tomar conta de meu país
e nem assim me exilei,
eu aqui fiquei.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

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