domingo, 19 de janeiro de 2014

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) V

A FUNÇÃO DE UM POETA

Eu não era tão amargo assim,
nem trazia no rosto a marca do sofrimento.
O semblante sisudo herdei por conta das tragédias.
E o sorriso de menino indefeso desapareceu de meus lábios finos.
Quando descobri verdadeiramente o mundo
esse se desmoronou sob os meus pés.
Procurei, então, nas sendas do passado:
Tude, a negra alta, que mercava fufu
numa lata de manteiga da Aliança para o Progresso,
Os cambucás doces da Lagoa Funda de Américo Carneiro,
A suave proteção de meu avô Augusto Asclepíades.
Mas tudo se esvaiu como uma névoa branca
repleta de saudades.
Canto agora a minha dor,
e sou apenas um pequeno poeta jacuipense,
num canto escuro de uma casa,
sem amor.

BOQUEIRÃO DE MINHAS LEMBRANÇAS
Para minha filha Laura

“Santa Bárbara, Virgem
dos cabelos louros
a sua morada
é na pedra do ouro”
Domínio Público


Tocós, Cipó, Cocorobó, Caldeirão
Riachinhos, riachos, fontinhas, minação
Cedro, Peixe, Sacraiú, Riachão

Água de beber, água de beber, água de beber, meu irmão

Pedra do Taquari, Passagem, Olaria, Tanque da Nação
Cari, corró, donilo, piaú, camarão
Cabaça, carote, pote, porrão

Água de beber, água de beber, meu irmão

Rio do Peixe, Rio Castelo, Rio Achado no Chão
Rede de Três Maio, canoa, tarrafa, temporão
Lagoa Funda, Barreiros, São José, Gavião

Água de beber, meu irmão
Baronesas, golfos, mulungus, sangradouros, corrimão
Afogados da Gameleira, Mestre Domingos, Lontras,
Zé de Epifânio acordando os peixes no breu da escuridão.

Noites de velas,Sentinelas, Água de gasto
Teu batismo João.
Por favor,
Não mate meu Jacuípe
Não mate meu Jacuípe
Povo de meu Riachão.

Senhor,
Meu Deus!
Não me deixeis cair também nessa tentação.

Agora e para sempre
Na hora de nossa morte,
Rios de minha vida
Ó ó ó doce Boqueirão.

BALADA DE AFONSO MANTTA

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
Recitando em redondilha maior
Toda a verve de um ateu
na província de São Fudeu.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E rebradar que a loucura
não deixa o juízo apodrecer,
e que pela terra ficaram poetas,
de varas tesas até o amanhecer.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus
em sua perpendicular,
fazendo da pedra de toque,
o ouro que ornata seu versejar.

Lá vai, Lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E nesse adeus,
estamos nós esperando a hora chegar.

BALADA DO AMARGOSO

Meu avô Antônio Geminiano Santana não nasceu escravo,
mas como escravo fosse,
e sentisse no lombo o peso do vergalho seco de boi,
açoitado por um capitão do mato ou qualquer capataz,
e gemesse de dor na Coluna do Suplício.

Meu avô Antônio Geminiano Santana,
negro forro das terras do Amargoso,
vaqueiro do coronel Aurélio Mascarenhas,
comia em casco de cágado,
bebia num litro de óleo rícino,
como forma de humilhá-lo.

Das boiadas que meu avô Antônio Geminiano Santana tangeu pela vida afora
muitas ficaram pelos caminhos,
ou se perderam dentro dos próprios currais dos Mascarenhas.
Algumas foram trocadas numa mesa de pôquer,
todas marcadas a ferro que o próprio tempo
fez questão que a escória e a oxidação perdesse o sinal de ferrreiro,
moldado o ferrete em ferro aceso no bater do martelo na bigorna
fria da Rua dos Velhacos.

E as terras que meu avô Antonio Geminiano Santana mediu na vara de braço,
só restaram a traça corroendo os selos, à tinta dos carimbos, e o calhamaço de
averbação,
em pleno arquivo morto, jaz no Fórum Desembargador Abelard Rodrigues dos Santos,
meu padrinho, em pleno Riachão.

Meu avô Antônio Geminiano manso como suas próprias criação,
tangia com vovó Umbulina sua prole numerosa que se espalhou pelo sertão ,
e de espeto de aguilhão,
sentiu nas costas iniqüidade dos coronéis de títulos comprados à Guarda Nacional.
Não havia a quem reclamar:
se a Deus ou se ao Diabo.
Morreu pobre
abandonado num beiço de tanque,
enfartado e roxo,
no dia que o coronel lhe expulsou da própria fazenda,
que há quarenta anos tomava conta.
E em seu féretro,
o coronel também lá não apareceu,
ficando somente eu,
para recontar seu amargoso.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

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