quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) 1990 em Diante – Jorge Pieiro

Nos anos 1990 apareceram alguns periódicos literários: O Pão (homenagem ao jornal da Padaria Espiritual), em 1992; Espiral: Revista Literária, em 1995; Almanaque de Contos Cearenses, que, embora não tenha sido criado como revista, pode ser considerado a única revista cearense de contos, com apenas uma edição, em 1997; e Literapia – Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, em 1999. Como “continuação” do Almanaque, em 2005 surgiu a revista Caos Portátil – Um Almanaque de Contos, também dedicada exclusivamente à prosa de ficção breve.

Nas páginas desses órgãos se publicaram e publicam contos dos mais variados feitios, sejam de escritores mais conhecidos na comunidade literária, com livros editados e comentados, sejam dos mais jovens e inéditos.

O Almanaque exerceu o mesmo papel de O Saco no final dos anos 1970: o de dar ânimo aos novos escritores cearenses, ao mesmo tempo em que surgiu da necessidade de publicação de poemas e contos daqueles poetas e contistas. Naqueles anos ocorria no Brasil o chamado boom do conto. Nos anos 1990 teve início outro boom, que se estendeu pelo século XXI. À frente do Almanaque estiveram Pedro Salgueiro e Tércia Montenegro. Além de homenagem a escritores do passado (Adolfo Caminha, Otávio Lobo, Moreira Campos e Juarez Barroso), se publicaram peças de outros veteranos (Eduardo Campos, José Alcides Pinto, Caio Porfírio Carneiro) e de contistas cearenses surgidos depois dos anos 1970: (alguns com vários livros publicados ou premiados em importantes concursos literários, como Natércia Campos, Nilto Maciel, Carlos Emílio Corrêa Lima, Audifax Rios, Batista de Lima, Ronaldo Correia de Brito), além dos mais novos ou inéditos em livro, como Alano de Freitas, Paulo de Tarso Pardal, Jorge Pieiro, Astolfo Lima Sandy, Luís Marcus da Silva, Dimas Carvalho, Pedro Salgueiro, Napoleão Sousa Jr, Luciano Bonfim e Tércia Montenegro.
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JORGE PIEIRO

Jorge Alan Pinheiro Guimarães (Limoeiro do Norte, 1961) é mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Publicou Ofícios de desdita (Fortaleza: edição do autor, 1987); Fragmentos de Panaplo (Fortaleza: Ed. do autor, 1989); O tange/dor (Fortaleza: Ed. do autor, 1991); Galeria de murmúrios (Fortaleza: Cadernos de Panaplo, 1995); Neverness (Fortaleza: Letra & Música, 1996); Caos portátil (Fortaleza: Letra & Música, 1999); Os sonhos de Josafá (Fortaleza: Seduc, 2006) e Bolha de Osso (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Tem contos nas coletâneas Almanaque de Contos Cearenses (Recife: Ed. Bagaço, 1997), Geração 90 – Manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo, 2001), Geração 90 – os transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003) e Os cem menores contos brasileiros do século (São Paulo: Ateliê Editorial, 2005). Co-edita – juntamente com Pedro Salgueiro – a revista Caos Portátil – um almanaque de contos.

            Aos seus contos ele designa de contemas. E explica: “contema é a menor unidade significativa do conto”, além de poder “representar a aglutinação da palavra Conto com a palavra Poema” e, ainda, poder “querer sugerir o tema para o conto a ser, quem sabe?, desenvolvido...”

            A linhagem de Jorge é a de Gilmar de Carvalho e Uilcon Pereira. Do primeiro herdou a aversão à disciplina técnica da arte de contar, narrar. De ambos herdou o gosto pelos personagens impalpáveis, mutantes, nebulosos, imaginários, quase mitológicos. “naíra desencantou-se de sua forma vespa em mulher” (“desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”). Loucos, delirantes, crianças habitam o universo caótico da ficção de Pieiro. O narrador de “meu tio e eu” não via no tio um doido, embora soubesse da opinião dos outros: “julgavam que ele fosse doido.” Porque o tio rolava no chão, gritava, corria com o menino (“cavaleiros de armadura”), em perseguição aos inimigos, as galinhas. São de novo Quixote e Sancho. Trata-se de um conto de alto teor poético, sem deixar de ser narrativo. “O tio foi ficando igual a um cordão azul” (...). A morte do tio, o sentimento do narrador, o tempo passando – é tudo um poema de intensidade máxima. Em outra narrativa de concepção e realização soberbas, “chocolates brancos”, o protagonista-narrador, um mudo em busca de comunicação com o mundo, narra suas descobertas: os nomes das pessoas com quem se encontra numa praça todos os dias.

            Da série “episódios delirantes”, segunda parte de Caos Portátil, dois personagens, Io e Ella, buscam saídas, verdades. “Eu revolvo meus olhos como se não houvesse mais esperança”. Na verdade (haverá verdade?), Ella é apenas fruto da imaginação de Io: “E eu não sou uma pessoa. Sou sua imaginação, sua fruição.” Io é um inventor, um criador, um escritor, como se lê no episódio 7: “Ella, quero andar com você pelas ruas. Vamos? Não posso, bobo. Você é um escritor... Por que não? Você inventa...”

Nos sete contemas de O Tangedor o leitor encontra personagens os mais estranhos: um espantalho apaixonado rabiscava setas no papel e uma delas atingiu-lhe o peito de palha; um alienígena e uns “bichinhos das gaiolas” que saíram voando na manhã da caatinga; um louva-a-deus com medo da “língua pegajosa de tamanduá”; o vento que coleciona folhas secas e tenta “relatar essa vida de vento”. Há ainda o narrador que executou o sol; o criador da personagem valdizete (“ela não existe”, “a não ser que eu próprio seja esse homem inventando histórias fantásticas”); e rubem (os nomes dos personagens são sempre escritos com letras minúsculas), que “só queria encantar a vida” e terminou descobrindo que “violões mudos são cisnes bebendo água”. Estes primeiros contemas seriam uma amostra do que viria em outros livros.

Em Fragmentos de Panaplo surge o lugar, ou o “desejo-lugar”, onde os personagens viverão. Panaplo “achada, despertada e desiludida”. Mas “talvez panaplo não mais exista. Pela falta de fé...” Nele, “lugar de ninguém estar”, o leitor deparará aqui e ali uma estação de trem, trilhos, uma estrada, a “última mangueira”, passarinhos, papagaios, jardins, colinas, gnomos, fadas, rainhas, meninos de louça, bruxos, dragões, gigantes, espelhos e também prédios em avenidas, automóveis, cães policiais, furgões, a violência urbana. Em Panaplo tudo acontece ou tudo existe: um narrador diz ter se encontrado “com um walter benjamim em panaplo, num dia de seus delírios”.

Em Caos Portátil ocorrem algumas mudanças formais em relação ao livro anterior. Os parágrafos são iniciados com letras maiúsculas, assim como nomes de lugares e personagens. Panaplo não é mais “panaplo”. O espaço geográfico do Ceará aparece algumas vezes: o barranco do Jaguaribe, em “à nau do velho lobo-do-rio”, localidades e prédios de Fortaleza, como o Cine São Luiz, o Theatro José de Alencar, o hospital Mira y López, o Parque do Cocó, a Praça Portugal, a Praça do Ferreira, embora não mencionada pelo nome (“A praça reflete simpatia nos meus olhos. Gosto dos seus adereços. Os bancos de madeira, compridos, pintados de branco, estimulam os proprietários do tempo livre”). Há também referência à cidade criada por Uilcon Pereira, Àssombradado, numa homenagem ao escritor paulista. Está no conto citado neste parágrafo: “– Vamos comprar pérolas em Àssombradado!”

Os narradores quase nunca se identificam por nomes. Em “comemoração de um remorso” o narrador aguarda o trem na estação, que “está tão fria”. Parece estar só, a pensar no passado e no futuro. Em “interrupção de um sonho de cidade e vale” lembra as “três sombras” que o “aborreceram na estrada, durante a luta com o javali”. Após a luta, caiu “no vale de um jaguar jamais sonhado.” Em “descrição de uma cena do irreal domingo” o personagem informa: “sempre morei numa estação que não existia”. No entanto, a casa sempre existiu naquele lugar e por trás dela os trilhos. Em “um incidente numa lama da noite” o narrador talvez seja um lobisomem. Numa noite, “rolando no lamaçal”, viu “a branca vaca” passar “voando por cima de mim”. Surgem homens armados. Ele se defende: “por favor, homens, não atirem! não sou um lobisomem...”

Também em Caos Portátil muitos narradores e personagens não têm nomes explícitos. Em “última sessão”, no Cine São Luiz, “um homem invade a imagem na tela”. A plateia ouve o estrondo do tiro. A seguir, outro espectador foge do local, “carregando a arma fumegante, sem entender, na correria, o que ainda pode ser real...” Ficção (o filme) e realidade (plateia) se confundem. Essa fusão da realidade com a ficção ou o espetáculo artístico reaparece em “a execução”. No Theatro José de Alencar durante um concerto, o trompetista “meteu a mão no colete e arrastou, sic, uma navalha”. O espetáculo continuou, “o maestro fez gesto de grito, mas nada conseguiu com a batuta no ar.” Os espectadores deliraram. Aquilo fazia parte do show?

A opinião de Horácio Rodrigues, no ensaio “O Jorge dos Espelhos Cearenses”, é a de que o contista, “Sem pompa e com atrevimento, transforma a linguagem usual em linguagem literária, parte do corriqueiro chegando a uma dedução fantástica. Em seus contos curtos, quase poemas, Jorge surpreende ao transpor o horizonte semântico da comunicação onde o possível se confunde com o impossível, ultrapassando, de maneira simples, a visão realista”.

Há também narradores plurais, como em “transe de uma divagação”. São “esses humanos diferentes, medrosos a bombas”. Outras vezes o narrador se pluraliza, como “nitratos de muros e pensamentos”. Primeiro um narrador: (...) “ruminando sei lá que vidas... por isso, concluí: sou um bicho condenado” (...) Depois os narradores: (...) “mas nem só eu: nós. E estamos condenados” (...). 

Nos contemas em que o ponto de vista é onisciente os personagens são seres do mundo da fantasia, dos contos de fadas, seres fantásticos. Em “contrabrincadeira da carochinha” gnomos e flores veem desarticulada a sua paz, enquanto a princesa corria “em busca do seu plebeu”. Outras vezes os personagens têm nomes simbólicos: monamy e korea, em “caso de uma desobediência”; naíra, que “desencantou-se de sua forma vespa em mulher”, no contema “desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”; elesbão, o caolho de “historinha especular de um rei ausente”. De Caos Portátil podem ser lembrados aqui Aliandro Odraga (vejam-se as iniciais maiúsculas), o de “umbigo esfacelado”; Oreblas, de “o bicado oreblas”, personagem atacado por pássaros; Prantina, Buan e as ratazanas, de “os nervos”. E muitos outros.

É recorrente a presença de pássaros e de outros animais nos contemas de Pieiro. Como em “a mangueira que colheu corina”: o velho sonho humano de voar, porque “a vida só tem significado para os passarinhos”. Em “antes de tudo & depois de tudo” o personagem sem nome explícito “contemplou o espaço e notou que os pássaros voavam da direita para a esquerda”. Ao final, “o pássaro tomou o rumo do sul, seguindo os pássaros comuns”. Há até um conto, “o bicado oreblas”, em que pássaros invadem a casa do personagem, o aprisionam em fios-raminhos e o bicam “até o amanhecer de um dia seguinte...” A mulher gorda de “o sábio” surge no meio da rua, abre os braços, põe-se a rodar, dando “a impressão de que queria voar”.

Pieiro manipula a linguagem com sabedoria, sem se deixar encantar pela prosa coloquial e de uso comum e muito menos pelo vocabulário erudito ou pelo estilo pomposo. Os narradores não são simples contadores de histórias, embora haja esboços de enredos em alguns contos. A narração às vezes é constituída de frases sem pontuação, como em “o exílio, smj”. Muitos dos contos são divididos em pequenas partes numeradas. Os tempos verbais são utilizados com sabedoria de arquiteto. Em “a cilada”, durante quase toda a narração, os verbos estão no presente, como a tornar evidente a realidade. A primeira frase é: “A porta entreaberta destrói a surpresa.” Na última frase, no desfecho, o verbo vai para o futuro: “A portaberta destruirá outras surpresas.”

A reutilização de temas dos contos de fadas faz de Jorge Pieiro um esmerilhador de personagens. As velhas gêmeas Mirla e Marla lembram bruxas e princesas esquecidas. De tão envelhecidas e envoltas no passado, terminam encontrando o príncipe e voando para o céu, “uma numa vassoura, a outra como um passarinho”. Veja-se também “contrabrincadeira da carochinha”, “historinha especular de um rei ausente”, “o gigante jamais dormia...” e outros. Nem sempre esses personagens habitam Panaplo. E, se habitam, o leitor não percebe. O certo é que havia um gigante em Panaplo e jamais dormia. O mundo de Pieiro é habitado por estranhas criaturas e animais pestilentos, tarântulas, besouros, mas também por crianças em busca da “caixa de barulhos” (“muito detrás dos jogos de amarelinha”). 

No entender de Nelson de Oliveira, em “O novo conto brasileiro: apocalipses”, “Pieiro gosta de trabalhar com ferramentas de corte e solda na microestrutura do discurso. Ou seja, ele, a gramática em uma mão, a tesoura e o tubo de cola noutra, recorta orações e vocábulos a fim de construir sentenças que jamais se completam, cheias de interrupções e atalhos. O resultado é sempre caleidoscópico, com cheiro de escrita automática desautomatizada”.

Na antologia Geração 90: Manuscritos de Computador o escritor de Limoeiro do Norte comparece com dez contos. Narrado na primeira pessoa, “Janela” tem outra personagem, sempre chamada de “Ela”, que também pode ser vista como co-narradora. O narrador principal conduz a narração e dá a palavra à outra: “Ela me disse:”. Essa personagem explica: “Sou apenas a pessoa da janela”. E mais uma vez a lembrança do sonho de voar: (...) “havia o receio de não saber se podia voar.” Ao se referir, o narrador, ao personagem secundário Leonardo, justifica: “Ele veio pelo abismo, voando numa geringonça” (...). Em “O Mágico” mais um personagem de nome estranho, Mr. Kaletzip, o prestidigitador. Em “Não deveria manchar de sangue esta página” o narrador é um palhaço apaixonado pela mulher do equilibrista. É, no entanto, um personagem: mora numa página. O narrador tem a clara noção de que não é real. Sendo assim, não deve matar o equilibrista, mas apenas imaginar sua queda ou programar ameaças veladas e sabotagens. Não deve manchar de sangue a página da história. Há ainda duas homenagens, uma ao escritor Eduardo Luz, em “Tiara de Algodão”, e outra a Moreira Campos, a quem chama de “um maior”, em “Borboleta”. Compara o escritor a sua grande borboleta à “grande mosca no copo de leite”, de um conto do autor de Vidas Marginais. Os pássaros estão presentes no miniconto “Sem título”. O narrador sem nome explícito anuncia: “Nunca desci daquela árvore. Os pássaros me chamam de estátua.”

E assim vai Jorge Pieiro construindo a sua obra, os seus labirintos, os seus caminhos, os seus mundos, os seus panaplos, os seus contemas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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