sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Ana Miranda

Ana Maria Nóbrega Miranda (Fortaleza, 1951) residiu em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Publicou os livros de poesia Anjos e demônios (Rio de Janeiro: José Olympio, 1978) e Celebração do outro (Rio de Janeiro: Antares, 1983). Como romancista, publicou Boca do Inferno (1989), O retrato do rei (1991), Sem pecado (1993), A última quimera (1995), Desmundo (1996), Amrik (1997), além do livro de contos Noturnos (1999) e da novela Clarice (1999), todos pela Companhia das Letras. Tem obras publicadas em diversos países, entre eles Argentina, Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Espanha e Suécia. Recebeu o prêmio Jabuti em 1990 (pelo romance Boca do Inferno) e, em 2003, o romance Dias & Dias foi agraciado com os prêmios Jabuti e o da Academia Brasileira de Letras. Boca do Inferno foi incluído na lista dos cem melhores romances do século XX em língua portuguesa, publicada pelo jornal O Globo.

 Em Noturnos, Ana Miranda se vale de uma forma quase fixa (como o soneto e a sextina) de narrativa: cerca de duas páginas; uma só frase ou parágrafo (apenas um ponto, o final); muitas vírgulas; diálogos (falas) intercalados à narração (monólogo) e iniciados por maiúscula. Como se escritos sob medida ou por encomenda de jornal ou revista. A narração é sempre na primeira pessoa do feminino (sem nome explícito). Noturnos seria um romance, houvesse uma costura a amarrar os diversos segmentos (contos) do livro. Mas falta um enredo, mesmo daqueles menos palpáveis, como os de Virgínia Woolf ou do noveau-roman. Em poucas composições se pode vislumbrar uma trama, como em “Violino”. Além disso, as narradoras são mulheres de diversos feitios, embora semelhantes. Como na solidão em que vivem. Em “Blusa vermelha” confessa: “estou só, na penumbra”. Em algumas composições a personagem parece apenas divagar, sonhar, ou imaginar a “ação” que narra, como em “O vestido de noiva”. Inicia-se com um ato (que pode ser imaginário e não real): “Uma mulher abre a porta do quarto”, e se conclui com um gesto e uma lamentação: “mas quando olho pela janela percebo que anoiteceu”. Antes, constata: “nem sei a que mundos minha mente me leva”. Em muitos contos a mulher chora: “No banho choro, a água na água se desfaz, ele ouve e bate à porta” (“A morte do cisne”). “Lua” se abre assim: “No meio da noite acordo com o rosto molhado de lágrimas”.

Algumas narrativas são apenas instantâneos, flashes. E quase nada acontece ou não se vislumbra uma história. Em vez de ação, apenas reflexão. Além disso, não há nenhuma referência a pontos geográficos, nomes de cidades, logradouros. Quando muito, ao mar, à praia ou ao campo. Em “Profecia” mulher se encontra num “lugar deserto na margem oposto do lado, onde há um campo seco”. Em “Macaco” a personagem ouve o “barulho das ondas do mar batendo na muralha de pedras”. Outra se refere a “uma praia chuvosa”. A cidade aparece aqui e ali, como uma alusão apenas, mesmo na composição intitulada “Cidade”: “A cidade me chama pela janela, vejo lá embaixo as pessoas caminhando”. As descrições de ambientes são raríssimas: “uma bela casa branca com vista para a paisagem do oceano”.

A referência a objetos domésticos (armários, roupas, perfumes) se explica pela constante permanência da personagem em casa. Em “Um vestido” toda a “ação” gira em torno da compra de um vestido, “como se vestir o corpo fosse o mesmo que desnudar a alma”. Livros são também objetos não somente decorativos nas obras de Ana. Há até um conto intitulado “Meus livros”. A narradora dessa peça dá explicação para a inclinação da contista pela geografia interior: “Existe em minha cabeça uma estranha geografia que se refere ao mundo em torno de mim, um mundo físico mas de significados infinitos, essa geografia surgiu do meu hábito de viver trancada com meus livros”.             

A noite é outro elemento preponderante nestes contos e talvez isso explique o título do volume. Algumas composições acentuam essa vocação da contista para a noturnidade, como em “Obrigação noturna”: “em pé diante da janela olho a escuridão”.

As mulheres de Ana Miranda são pessoas delicadas, bem educadas, não falam palavrões, se vestem bem, frequentam ambientes finos, vivem em apartamentos de classe média, leem livros, bebem vinho. Uma ou outra foge a esse tipo, como a doméstica Odete e a narradora de “Casa roubada”, que mora em hotéis baratos, trabalhava numa fábrica de tecidos e tinha uma casa.

Há sempre outro personagem, na maioria das vezes masculino (marido, amigo, desconhecido). Esse outro ser quase nunca aparece com nitidez ou é descrito em detalhes. Em “Retrato de homem” se vê apenas um rascunho ou esboço de personagem: “na primeira vez em que nos encontramos ele bebeu duas garrafas de vinho, agarrou meus punhos”. Esse outro pode ser caracterizado até como monstro: “Tenho tanto medo do monstro da esquina”. Mas não ousa se aproximar dele, do outro. E prefere dar-lhe um apelido. Na maioria das vezes, porém, não há sequer um traço fisionômico do outro, como em “Visitante”: “Ele é o único dos homens vestido de termo”. A protagonista às vezes busca esse outro e não o encontra, como em “Sagrada família”. O outro pode ser um terceiro, como no triângulo amoroso de “Amor vicário”. O marido, que é o outro quase sempre, aqui é apenas o primeiro outro: “Quando meu marido está em casa eu finjo que não me importa a presença do outro homem”. Os outros às vezes dormem, isto é, estão ausentes, são figuras quase mortas. Ou expostas à morte. Em “Amplidão” a narradora se refere a eles como se fossem seres estranhos: “as pessoas da minha família dormem” “indefesas na cama”; “os corpos adormecidos são a expressão das almas, têm os lábios entreabertos e as pálpebras se movem fechadas, seus corpos frios e inertes flutuam, respiram fazendo ruídos e murmuram atormentadas pelos sonhos”.

Muitas vezes ocorre uma fuga se si mesma e dos outros, como em “Corpo e alma”. Fuga misteriosa: “nunca estou no lugar onde aparento estar”. Ou o corpo se distancia da alma: “minha alma vive fugindo pelas janelas”. A figura do Outro se pode esclarecer mais ainda nesta peça enigmática: “o terceiro ser que há em mim e me oprime é o Outro”; “em seguida eu terei fugido e estarei em outro lugar e ele não saberá onde”.

Quando o outro desaparece de cena, entra em seu lugar o ser que narra, para falar de si mesmo. Em pelo menos uma narrativa (“Rosa-dos-ventos”) ocorre o contrário, em que a outra (na maioria das vezes é o outro) é desvendada, mostrada com clareza, e a narradora se comporta como tal.

Muitas vezes o outro não existe mesmo. Ou existe apenas na imaginação dela, a protagonista: “um baile solitário em que danço comigo mesma no salão iluminado por velas, entre seres imaginários” (“Baile negro”). Esses entes aparecem em outras composições. Em “Maiô” mulher compra um maiô para ir ao encontro de “um homem imaginário”.

São raras as vezes em que a narradora se volta para a infância, como em “Machucados” (lembranças), “Ponto de cruz” (ela ainda criança) e “Pai” (em que o outro, o pai, é apenas uma figura de sonho de criança). Em “Mundo da Lua” a que narra tem treze anos, porém namora e fala de sexo.

Em “Carta de Odete” (um dos poucos seres fictícios com nome explícito), a “narradora” é outra, a antiga empregada doméstica. Na maioria dos contos a protagonista é mulher solitária, em casa ou em algum ambiente fechado, a falar de si mesma, de sua solidão, de desencontros, fugas, pecados, culpas. Em “Unhas” a mulher constata: “Nasceram esta noite unhas nos meus dedos das mãos, tão compridas que parecem garras”. E se pergunta: “serão as unhas os meus pecados que se tornaram visíveis?”

Pode-se dizer que os conflitos das personagens de Ana Miranda são consigo mesmas. Dramas de desencontros e desarmonias com os outros. Ou com o outro. No estranho “Mariposas de madeira”, a narradora se encontra com a Outra, que se diz do Outro, e lhe pede que não se aproxime mais “do homem que ela ama”. Esse outro “talvez seja um estrangeiro de olhos azuis que perambula nos gramados e de vez em quando senta à sombra de uma árvore e canta canções de sua terra”. No também estranho “Incompreensão”, a narradora diz não entender “a diferença que há entre mim e eles” (os outros).

As personagens de Ana Miranda vivem a inadaptação ou a sensação de inadaptação ao status quo. Vivem em solidão e essa solidão faz com que os outros seres pareçam figuras apagadas, desbotadas, sombras, quase sem vida, sem aura.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nenhum comentário: