sábado, 25 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Paulo de Tarso Pardal

Paulo de Tarso Vasconcelos Chaves (Russas, 1955) é contista, artista plástico, crítico literário e músico. Licenciado em Letras e mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Professor de literatura em colégios e faculdades, atua na imprensa cearense como ficcionista e crítico literário. Tem editados os livros de contos Margem Oculta (Fortaleza: Edição Gráfica Oficina, 1995), Difícil Enganar os Deuses (Sobral: ASEL, 1999) e Do Pitoco (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2006); além da dissertação de mestrado O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto (Fortaleza: UFC Edições, 1999), dos ensaios Pensaios (Fortaleza: O Curumin Sem Nome, 2000), Discurso do Imaginário (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003) e Autores do Vestibular da UFC (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2005 e 2006), dos livros Sonetos (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2000), de poesias, e Pirralho (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2002), de partituras.

Os temas mais frequentes nas 27 composições das duas primeiras coleções de Paulo de Tardo Pardal são a loucura, a solidão, a passagem do tempo. O protagonista de “A asa que ri” se vê perseguido por asas-de-fogo. O narrador de “O dorso do livro” está preso “numa solitária escura”. O tom da narração, embora haja lógica na elaboração das frases, é o de quem raciocina pelas linhas tortas da loucura: “Comi uma barata inteira”; “Estou aqui há trinta e dois milhões de traços”; “Eles têm medo de mim”; “depois que eu comer o primeiro homem”. O ser fictício de “(Re)Verso” é chamado ora de poeta, ora de louco: “Anda pelo banheiro como uma barata tonta”. Cercado de sombras, vaga pela solidão da casa.

Há uma galeria ampla de personagens solitários nas peças ficcionais de Pardal. Além dos já mencionados, destacam-se o pintor de “Ludo ou lapidação do branco”, o ser fictício da obra intitulada “?”, o de “Água salgada” (“Tive a impressão de que só eu existia no mundo”.)

Em algumas composições o tempo é caótico; noutros, congelado, parado ou apenas lento. Há também um tempo acelerado. Nestes casos, os tempos verbais se misturam, se enredam, como se passado, presente e futuro fossem um só tempo. Em “O olhar” os dois personagens (Dona Maria José e ele) se perdem num labirinto de tempos verbais diversos: “Talvez ele nunca esqueça”; “ela entenderia”; “se ela precisasse”; “ele ficaria ali”; “teve vontade”; “talvez dormisse”; “estava quieta”. Há elaborações frasais curiosas, como no segundo parágrafo de “O sonho do gato”, em que os verbos não aparecem, como se o tempo tivesse parado: “O gato branco em cima do muro de três tipos de tinta: o branco do gato: o branco do cinza do muro: o branco da sombra brilhante dos pontos vermelhos”. Como se fosse uma pintura.

Às vezes a trama se dilata no tempo, como na peça “Margem oculta”: “de vez em quando”, “nunca teve”, “passou a percebê-lo”, “Kátia não foi bonita a vida toda”, “quando a conheci”, “quanto tempo durou”, “demorou anos”, “depois de algum tempo”. Há, ainda, o caso especial de “Camile”, cuja protagonista tem dúvidas até sobre o próprio nome: “Acho que me chamo Camile”. Sua dúvida maior, no entanto, é quanto à idade: “Devo ter dezessete anos”; “Quando ouço essa voz, disso eu tenho certeza, tenho cinco anos”.

Alguns seres fictícios de Pardal estão sempre sonhando, lembrando sonhos, vivendo em função deles ou do passado. Veja-se o poético conto “A menina do sonho azul”, no qual “todos tiveram o mesmo sonho”. Em “Difícil enganar os Deuses”, Mariana ora sonha com escuridão e vozes, ora “com todos os sonhos passados”. Nos seus sonhos estão as respostas para as suas dúvidas e dos outros. Finalmente “sonhou que ia morrer no sétimo dia”. Outro protagonista que vive em razão dos sonhos é o mendigo-louco Chico Galo Preto, de “O homem que conheceu o Inferno”. Após pedir um cafezinho ao padre, revela: “O meu sonho vai ser com o Galo Preto que vem me beliscar toda noite”. Há até uma narrativa intitulada “Sonho”. E gatos que sonham.

Os seres fictícios de Paulo de Tarso Pardal são prisioneiros da sociedade ou de si mesmos. Uns são mendigos; outros, maníacos e assassinos. O narrador de “O dorso do livro” vai enlouquecendo a cada risco que grava na parede, para significar um ato, um momento, “algo importante”. A protagonista de “Rastros de uma serpente” está presa e fala a advogado, provavelmente: “Sabe doutor, eu nunca matei ninguém não”. Camile está presa a uma pedra, no meio da porta da casa, agarrada a uma boneca. Como se não quisesse deixar de ser criança. O protagonista de “Mania”, sem nome explícito, se aprisionou a Mariana, se anulou, se perdeu de si mesmo: “Quando estou com Mariana, não penso, não sei onde estou”.

Há, ainda, pintores, que são retratistas dos outros, de paisagens, como se quisessem paralisar o tempo. Estão sós num mundo de cores e traços, como o narrador de “O mito da caverna” ou o de “Ludo ou lapidação do branco”.

O vento e a chuva, às vezes, são quase personagens, como fantasmas a rondarem os seres vivos. Camile insiste em ver a chuva, embora tenha medo de trovão. Da janela vê a chuva engrossar e um clarão no céu.  Em “A cidade mais eterna do mundo” Seu Salomão chorou tanto, quando soube da morte de Safira, que suas lágrimas aguaram todos os campos. Mais tarde, “um vento verde invadiu a sala, tomou conta de toda a casa, espalhou-se pela cidade inteira”. Em “A vida perdida de Lu” certa vez “caiu uma chuva de rosas vermelhas. Passaram três dias chovendo flores vermelhas”. Em “Difícil enganar os deuses” “o vento era cortante e forte”.

Os dramas se desenrolam em cidade grande ou lugarejos do Nordeste brasileiro, como o pequeno povoado de Nossa Senhora do Bom Parto, em “A visita de Sara”. Aqui e ali narradores pintam trechos de paisagens dessa região. E não esquecem o vocabulário regional (vassoura e uru de palha de carnaúba, siriguela, incelência, gasguito, embiocado), os costumes do sertão (plantações de milho, feijão e mandioca), sem que haja nisto nenhuma concessão ao velho regionalismo.

E, assim, tudo levaria o escritor a se apegar somente a esquemas neonaturalistas. Mas Pardal trafega também, e com muita competência, pelo realismo mágico, sobretudo no segundo volume.  Em “A cidade mais eterna do mundo”, ambientada no sertão, havia um homem de cento e oitenta e seis anos. Quando morreu Safira, a prostituta mais querida da cidade, o ancião chorou tanto que “não precisou inverno para as plantações”. O insólito se estabelece de vez, quando “um vento verde invadiu a sala” e “os meninos começaram a flutuar, a um palmo do chão: – Pai, eu estou voando!” Em “A menina do sonho azul” o clima estranho se instaura desde o início da narração: “Todos pressentiram que alguma coisa ia acontecer naquela noite”. O leitor é preparado para ler uma história estranha: “Naquela noite, todos tiveram o mesmo sonho: o mundo estava ficando azul”. Em “A vida perdida de Lu” o personagem-narrador se dirige a um ouvinte anônimo, um jornalista, chamado de senhor. Refere-se sempre à personagem Lu: “Quando os homens fazem amor com ela, eles se transformam em passarinhos”. E, como se também se dirigisse ao leitor, explica: “Sei que o senhor não acredita nisso, mas é verdade”. Isto é, o fantástico se mostra na primeira frase e se explica na segunda: um fato estranho à realidade, impossível de se realizar, mas real para o narrador. Mais adiante o personagem faz outra afirmação absurda: “Eu gosto mesmo é de me transformar em beija-flor. Fico bitocando (sic) as flores vermelhas”. Em “A visita de Sara” também desde o início o leitor pressente o fantástico, quando um imenso balão colorido caiu perto da igreja. E se encorpa a seguir: “Na hora em que Sara chegou em seu imenso balão de fogo, os homens sentiram uma necessidade imensa de fazer amor com suas mulheres”. O final da narrativa é o inverso do início: “Sara entrou no balão, no meio do fogo” e partiu. Em outra composição, Pardal presta homenagem ao contista Moreira Campos, citando exatamente o seu mais fantástico conto: “Dizem que os cães veem coisas”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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