quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Rinaldo de Fernandes

Rinaldo Nunes Fernandes (Chapadinha, MA, 1960), embora maranhense, morou durante dez anos em Fortaleza, onde se graduou em Letras (Universidade Federal do Ceará). Tem contos em jornais de Fortaleza e João Pessoa. Em 1997 teve editado o volume O Caçador (Editora Universitária da Paraíba). Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Começou sua atividade de escritor publicando contos e artigos nos suplementos literários dos jornais O Povo e Diário do Nordeste, de Fortaleza/CE. O perfume de Roberta, seu segundo livro de histórias curtas, saiu em 2005. O conto “Negro”, do livro “O Caçador”, virou curta-metragem, do cineasta paraibano Renato Alves. Como pesquisador, escreveu os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Organizador dos livros O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões (São Paulo: Geração Editorial, 2002), Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004), Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (São Paulo, Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2006).

O Caçador é composto de peças de variados tamanhos e feitios. Algumas não chegam a dez linhas. São tão sintéticas que mais parecem flashes ou desenhos simples (“Folha seca”), embora não se confundam com rascunhos. Pois há nelas os ingredientes básicos do chamado conto tradicional: personagens, enredo, desfecho, etc. Aliás, remates saborosos, porque inesperados. A matéria-prima dos dramas narrados é quase sempre a solidão. A narradora de “Carpinteira” aperta bem a torneira da pia que teima em pingar, olha-se “no grande espelho”, enquanto o filho dorme e o marido não vem. Rumina o dia da libertação, constrói “um barco com as tranças nuas de cebola”, para nele fugir sobre as águas que estouram da biqueira. Solidão e desespero, como se vê também no pai cujo filho morreu (“A Roda-Gigante”). Ou em “A Viúva”, cuja protagonista vive “na lenta tarde” e molha com choro “a camisa da saudade”.

                Alguns dos personagens de Rinaldo são jovens estudantes urbanos em permanente conflito existencial, sexual, social e político. Os protagonistas estão quase sempre perdidos em si mesmos, solitários, embora às vezes acompanhados de amigo ou amiga. Em “Procurando o carnaval” nada de importante acontece durante a narração. Ou nada de importante é narrado. O leitor perguntará: onde está, então, o enredo? Pois o enredo é justamente isto: um jovem viaja num ônibus em busca do carnaval numa pequena cidade da orla marítima e nenhuma diversão encontra. Vaga por ruas e praias, até compreender que naquele lugar não haverá carnaval. O narrador onisciente poucas vezes dá voz ao personagem, mas segue-lhe os passos e pensamentos, como se sua sombra fosse.

                O carnaval reaparece como pano de fundo no pungente “Bloco & solidão”. O narrador também busca diversão em Olinda. Mas busca, sobretudo, se livrar da solidão e da morte: “Fiquei triste, porque eu achava que as pessoas viam que eu tinha o vírus”.

                Solidão, droga e sexo são substâncias essenciais de outras composições do livro de Rinaldo. Como em “O besouro”, no qual o narrador “vê” uma festa no campus. Na ação seguinte (principal), aproxima-se de um umbuzeiro e, com mais três estudantes, passa a se drogar, até sentir as primeiras sensações alucinógenas. Delírio se vê também em “Suspeitas”. Não mais o campus, mas um acampamento de jovens.  O narrador ouve “um som do Pink Floyd” e passa a se imaginar “numa praia distante”. Até perceber a aproximação ameaçadora das “palmeiras com finas espadas nas palhas”. Em “A tragédia prima de Sílvia Andrade”, um dos mais longos do volume, os personagens são também jovens estudantes às voltas com drogas. Olinda reaparece, embora de relance, no volátil “Chuva e fogo”. Jovens de esquerda estão em “A carta”.

Há, ainda, na obra de Rinaldo de Fernandes o chamado conto de denúncia social e, em menor escala, o conto enigmático ou parabólico. Entre aqueles situam-se “Negro”, também de feição kafkiana; “Um homem, na janela, de óculos escuros”, em que o real social se mistura ao irreal e ao enigmático; “Vozes de maio”, dedicado ao Grupo Tortura Nunca Mais; “Mulheres fugitivas”; “Tempo de fezes”, composto à maneira dos contos de fadas e como parábola; e “Pulseiras coloridas”. Os personagens são tipos urbanos. Entretanto, o leitor é seduzido muito mais pelos dramas narrados do que propriamente pelos seres fictícios.

Hábil forjador de variadas técnicas de elaboração do conto, Rinaldo se sobrepuja quando parte da aparente lógica dos fatos para chegar ao sombrio mundo do enigma. Em “O estampido” há uma série de pequenos atos, como nos sonhos, com cenas rápidas, narradas pelo protagonista. A visão de uma mulher numa janela atrai o narrador. O surgimento, de inopino, de um delegado, num carro, num ir e vir maluco, à procura de um agente, dá ao conto um ar de mistério. É como se os personagens, os visíveis e os invisíveis, representassem entidades não identificadas. E ocorre um fenômeno que se repetirá em mais de uma narrativa: um personagem toma o lugar de outro. Trocam de lugar ou se substituem. Assim, um homem, na rua, vê uma mulher na janela de um primeiro andar. Seduzido, decide ir ao encontro dela, mas, ao entrar na casa, não a vê. Da janela observa a mulher no bar onde ele estivera. Ou seja, ele se torna o ser visto, enquanto ela se faz o ser que vê. Em “Os gafanhotos” o real vai aos poucos cedendo lugar ao irreal. O narrador gosta de pintura, passa férias em Miami, tem mulher e secretária, mora numa cobertura à beira da praia. Ou seja, um pequeno burguês urbano, como outros milhares. Súbito dá-se o inusitado: “De repente veio o vômito. Os coqueiros da orla começaram a largar as palhas em grandes golfadas”. Instaura-se o enigma ou o fantástico: as palhas são enormes gafanhotos. 

Em “Antes que acabe” verifica-se mais uma vez o fenômeno da troca de lugar. Dalva e Carlos conversam em casa. Ele se banha, ela lê anúncio de jornal. Terceiro personagem surge na praça diante da casa. A seguir, outra mulher aparece na rua e vai ao encontro do homem. No entanto, este homem é Carlos. Logo, o personagem do banheiro não é Carlos. Em “Um homem, na janela, de óculos escuros” (observe-se a presença de janela mais uma vez) repete-se o fenômeno de um personagem trocar de lugar com outro. Menino cata lixo, em aterro, com a mãe. Do alto de edifício, homem observa a cena e chama com o indicador o garoto, que se retira e sobe ao apartamento. Nesse momento se dá a troca de posições dos personagens: o homem desce e vai se sentar numa pedra no meio do aterro. Minutos depois o menino chamará o homem, que voltará ao escritório. O desfecho é uma pintura, um poema: “E os urubus, que, revoando sobre o menino, num lerdo balé, agora bicam o salame do crepúsculo”. 

Outra peça enigmática é “O livro verde”, relato de narrador não identificado. O mesmo se há de dizer de “O chapéu”. O conto que dá título ao volume pode ser visto como uma alegoria, a lembrar ora Murilo Rubião, ora Julio Cortázar. Para explicar esse tipo de narrativa há um conto que se mostra como um metaconto: “Conversando sobre a arte do conto (ou a obsessão pela goiaba)”. Um contista conversa com alguém de nome Ricardo, que está mais preocupado em comer goiabas do que em ouvir leitura de contos. Entre um diálogo e outro são inseridas quatro composições curtas, tendo título apenas a primeira. O contista se diz incompreendido; as pessoas chamam de herméticos os seus contos. Lido o primeiro, o interlocutor diz não ter entendido nada. O escritor assegura tratar-se de uma “alegoria do imperialismo”. Após a leitura do segundo, Ricardo afirma: “não entendi de novo”. O outro então pergunta: “Você já leu alguma coisa do Julio Cortázar?” E passa a explicar o que é o fantástico do escritor argentino.

Rinaldo de Fernandes foge do fácil, do óbvio, do tradicional, embora não se aventure em experiências formais. Não se contenta com a história bem contada, de começo, meio e fim, enredo linear. E utiliza ingredientes inovadores há algum tempo praticados, como recorte de jornal fictício; frases curtas e entrelaçadas, como em “Viagem (ainda um conto beat)”; frases recortadas, como se fosse um poema (“A orgia vermelha do poeta”); multiplicação de vocábulo solto na página, à maneira do poema concreto; inserção de poemas de autoria de personagem e de letra de música fictícia; contos dentro de um conto, etc.

A linguagem de Rinaldo de Fernandes não se prende ao coloquial nem ao artificial ou ao erudito. Vocábulos ditos populares aparecem naturalmente nas frases: “alcançar um jornal”. São muitas as frases de efeito ou que evitam descrições inúteis: “despenquei no coração persa da sala”; “espionava estrelas por trás da cortina”. Às vezes lembra Graciliano Ramos, não na linguagem, mas na apresentação de personagens complexos, doentios. Em resumo, Rinaldo de Fernandes, com O Caçador, caminha felinamente, sorrateiramente pelos “múltiplos caminhos do conto”, para usar a expressão de Amador Ribeiro Neto, na apresentação do livro.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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