sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Tércia Montenegro

Tércia Montenegro Lemos (Fortaleza, 1976) tem graduação em Letras, mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de contos O Vendedor de Judas (Fortaleza: Edições UFC, 1998; 2 ed, Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003), que recebeu o prêmio Funarte; Linha Férrea (São Paulo: Lemos Editorial, 2001), que recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros da Biblioteca Nacional e venceu o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela Revista Cult, em 2000; e O resto de teu corpo no aquário (Fortaleza: Secult, 2005), Prêmio Secretaria da Cultura do Estado do Ceará em 2004. Em 2005, recebeu os prêmios Osmundo Pontes e Fran Martins, pela Academia Cearense de Letras. Escreveu ainda o ensaio biográfico Oliveira Paiva (Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003) e participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), Contos Cruéis (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006). Tem dois livros infantis, Um pequeno gesto (Fortaleza: Demócrito Rocha/ APDMCE, 2006) e O gosto dos nomes (Fortaleza: Seduc, 2006).

No mais das vezes, os primeiros livros, mesmo de escritores menos jovens, demonstram imaturidade de seus autores, quando não são notórios a falta de leituras, sobretudo dos clássicos, e de exercício da escrita, imprescindível ao seu aprimoramento.

“O Vendedor de Judas”, conto que dá título ao volume, mostra que pelo menos em dois pilares da cultura a nova contista fincou os pés (ou a cabeça): os textos bíblicos e o folclore. Para intitular o livro, valeu-se do conto inspirado no mito bíblico da traição. O conto, porém, se centra no folclore de Judas, as comemorações profanas do Sábado de Aleluia, em que o “personagem” é um boneco, para ser vendido. Mercadoria, portanto. Não chega, pois, a personagem. Ou seja, os papéis se invertem: Judas, o vendedor de Cristo, se transforma em boneco a ser vendido e queimado. O protagonista do conto é, na verdade, um fabricante e vendedor de “bonecos esculpidos em madeira clara”.

Mas vejamos alguns aspectos da carpintaria da contista. Comecemos pelos personagens, sempre poucos em cada história. Tão poucos que em alguns contos estão em completa solidão. Em “A Espera”, o preso à espera da visita de uma filha que lhe promete levar fotos de outra filha, morta, e “o abraço impedido pelas grades”. Em “Um Poeta”, os três personagens “sentados no jardim, pensando em morrer.” Em “A Longa Espera”, o velho que “ficou só, no casarão alpendrado, com as terras diminuídas e a esposa cada vez mais magra, resmungando sozinha.” A solidão dele e a dela, mesmo vivendo na mesma casa. Em “A Inspetora”, D. Mozarina, vivendo apenas de lembranças: “fecha as janelas, arreia-se numa cadeira, abanando o pescoço com o decote.”  Em “Himalaia”, o menino órfão no farol abandonado, “aquele fio de terra, herança de três gerações.” Em “O Mestre”, um pobre coitado que já viveu na riqueza e terminou mendigo: “na maior parte do tempo, o mestre fica mesmo é calado, com seu ar prepotente, olhando as páginas abertas dos muitos livros.” E o que dizermos do velho viúvo à procura da esposa, pelos povoados, enlouquecido, angustiado (“A Longa Espera”)? São personagens sofridos, quase sempre às voltas com fantasmas do passado.

Há uma relevância do passado no contexto de algumas narrativas, o que se contrapõe às lições de teóricos da ficção menor. Em “A Espera” o marido esfaqueara a esposa, “numa crise de ciúmes”, e, em consequência, a mãe da jovem também morrera, poucas horas após a consumação do crime. Alguns contos lembram os de Moreira Campos, pela carga de sofrimento, angústia, solidão das personagens, assim como pelo andamento dos incidentes, os diálogos, a caracterização das personagens, o desfecho. Essa narração de fatos do passado é absolutamente necessária ao entendimento do leitor, sob pena de o conto se tornar ilegível. Isso se repete em “Vitorina”, uma aleijada que nutrira paixão por um rapaz, depois feito padre e morto no mar. Um dos melhores contos do livro.

Em alguns dos contos de TM o tempo narrado se alonga, sem prejuízo dos incidentes centrais da trama. De qualquer forma, quase todas as narrativas principiam no passado, quando não descrevem traços do protagonista ou o ambiente. Vejamos: “A cidade era pequena” (“O Vendedor de Judas”); “Era longo o caminho de terra e mato” (“O Franciscano”, no qual a trama esconde o homossexualismo do protagonista); “Ninguém se lembra mais de quando ele apareceu” (“O Mestre”); “Dos três, João é o mais inquieto” (“Um Poeta”) e outros.

No desenrolar das tramas, Tércia se serve ora de narração ora de diálogos, estes sempre bem dosados, curtos, sem apelos a gírias, modismos ou regionalismos. Vale ressaltar que os espaços das ações nunca são nominados, sejam cidades ou logradouros, sendo perceptíveis, porém, o espaço das pequenas cidades nordestinas. Num conto há um Mercado Central, que pode ser o de Fortaleza. Em outros há referências a um botequim da esquina, a uma padaria da esquina, a “uma barraquinha tosca, cheirando a peixe”, talvez referência às praias de Fortaleza. Em outras histórias aparecem peitoril da janela, anões de jardim, estátuas de gesso, bibelôs de porcelana, mesa de jantar, chapéu, banquinho, roupas molhadas no varal, mocinhas à calçada, “desfazendo as tranças”, tudo a lembrar casas, velhas casas, ruas de cidadezinhas. Os “crimes de faca”, a “surra de cinturão grosso”, porcos e galinhas soltos no quintal ou no terreiro conduzem ao interior.

São raros os contos em que o espaço da ação principal está circunscrito a quatro paredes. Em “O Tapete Vermelho” é um convento de freiras, onde Irmã Querubina, “a mais ingênua de todas”, se vê a final catalisadora de um milagre. Em “O Poeta” três personagens numa casa em clima de sonho, como nos contos fantásticos. É uma das narrativas mais profundamente poéticas, uma das mais bem realizadas do livro. Linguagem bem elaborada, sem gorduras, como em outras. A praia, o farol, “a escadinha enferrujada do velho farol” em “Himalaia”. Em “Carnaval de antigamente” cabe ao leitor escrever as entrelinhas do enredo, completar o quadro. Em “Morte às Escondidas” menina vê avô morrendo, num quarto.

Em alguns contos o espaço da ação é difuso, como em “O Vendedor de Judas”. O protagonista ora se encontra no meio da rua a caminhar, ora num bar, ora num hotel, ora a caminho de volta, “perto da Serra Branca, a minúscula figura do homem montado num cavalo marrom.” Nesse conta a linguagem semelha a do cinema.

O ponto de vista é, nos dois últimos do volume, na 1.ª pessoa; nos demais, o narrador é onisciente. Em “Réquiem” um tom fantástico perpassa a narrativa. Professor particular de música recebe telefonema de amigo espírita, que teria psicografado réquiem em mensagem de  certo André Luís, um espírito. Em “O Sobrevivente” o clima é mais fantástico ainda. Uma peste assola a cidade. “A doença corrói por dentro, chegando ao coração.” A linguagem é profética, bíblica. Todos cairiam nas garras da pestilência.”

Há momentos de intensa poesia, especialmente em “Dois Búzios ao Mar”. Um casal indo ao mar, como num sonho de amor trágico. No entanto, não pode ser confundido com poema, por presentes todos os requisitos da ficção menor.

O Vendedor de Judas é uma demonstração do talento de Tércia Montenegro, assim como de sua dedicação à leitura de obras fundamentais da Literatura e ao exercício do ato de escrever e reescrever. Um exemplo a ser seguido, no que for possível, pelos que se iniciam nas Letras.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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