sábado, 25 de janeiro de 2014

Paulo de Tarso Pardal (O Dorso do Livro)

Comi uma barata inteira. Ouvi o estado da morte quando a esmaguei com o pé. Juntei os pedaços na palma da mão, separei pata por pata e distribui-as pelas bordas do prato. A gelatina amarela e as asas ficaram no centro, formando um girassol, que girava com o meu olhar na solitária escura.

Estou aqui a trinta e dois milhões de traços. Tenho uma terrível angústia quando percebo que não existe mais espaço para fazer um só risco na parede. Conto o tempo por esses traços. Cada sono é um risco. Existem trinta e dois milhões de traços que conto a cada quatro sonos. É o que posso fazer para não ficar doido. Não sei a quantos dias equivalem os trinta e dois milhões de traços. Nos primeiros trinta e dois mil, eu ainda sabia o equivalente em dias. Mas tive que me abster de contá-los porque os traços, a partir de um certo sono, passaram a ser mais vitais para mim do que os dias. Por isso, não sei há quantos anos estou. Sei que há trinta e dois milhões de riscos.

Os traços na parede são a minha vida. Lembro que nos dez mil traços recordei a última rua por onde passei antes de vir para cá. Todos os acontecimentos que ocorreram naquele dia eu marquei com um risco. Tenho uma traço para o poste, outro para o ônibus, outro para a calçada, outro para o cigarro, outro para dono do bar, outro para uma mulher que bebeu comigo, outro para o balcão, outro para o sangue. Com eles fiz o meu universo – o mundo são riscos. Não posso ficar sem eles. Acho que ainda sei pensar porque tenho os traços, por isso eles são mais importantes do que os dias, que não sei mais como são. Não sei o que fiz para estar aqui. Sei que existe um traço no meio da parede, maior do que os outros, que deve significar algo importante, mas não me lembro mais. Devo ter, agora, só um pedaço do cérebro – aquele que sabe contar os trinta e dois milhões de riscos a cada quatro sonos: não sei pensar além disso.

Depois que eu comer a barata, vou dormir pensando no prazer de fazer mais um traço na parede.

Eles pensam que já morri: há trinta e dois traços que não me mandam comida: por isso comi uma barata inteira: azar dela!

Eles têm medo de mim. Acham que virei bicho, que não precisam mais gastar comida com um bicho.

Acho que daqui a trinta e dois riscos eles vão abrir a porta que há trinta e dois não abrem e, neste momento, vou mordê-los e engoli-los, como faço com esta barata. Daqui a trinta e dois traços, vou ficar livre de gritos do meu pensamento que ecoam desesperadamente nestas paredes, e eles vão notar que ainda não morri.

Daqui a trinta e dois gritos, depois que eu comer o primeiro homem, vou fazer o segundo contar os trinta e dois milhões de traços trinta e duas milhões de vezes. Só assim, poderei matá-lo também.

Enquanto os trinta e dois riscos não chegam, vou mastigar a última perna da barata que está no prato: trinta e duas milhões de vezes.

 (Paulo de Tarso Pardal, Margem Oculta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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