segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Pedro Salgueiro (Aleine)

O caso se deu na época em que eu buscava desesperadamente Aleine. Desde o início da tarde haviam me expulsado, pois cometi a imprudência de perguntar por ela. Fui abandonado numa passagem de nível, quando o trem diminui a marcha, logo após aquele aguaceiro de fins de maio. Vaguei pela linha férrea, na esperança de escutar algum apito ou sentir qualquer chacoalhar nos trilhos; enfim desisti e tomei certo caminho secundário que descia rumo a um imenso vale — bem ao longe uma cordilheira azulzinha quase se confundia com a linha do horizonte. Demorei a encontrar sinal de vida, apurando o ouvido ao mínimo indício de vento; de vez em quando, esfriava a cabeça com água de um córrego ou subia numa pedra para buscar qualquer povoação.

Já no final da tarde distingui, de cima de um carvalho, a fumaça de uma chaminé — andei mais alguns quilômetros para avistar a torre de uma igreja. Apressei o passo, querendo chegar no começo da noite — planejava misturar-me com algumas vacas que seguiam na direção do vilarejo. Encontrava-me na entrada quando notei a placa de advertência: “Estamos de mudança”. Tudo tinha sido tão estranho — desde que fui obrigado a descer daquele trem — que não me dei conta do absurdo da situação: eu, procurando minha mulher que havia sumido misteriosamente, fui me deparar com um lugarejo perdido, e logo na entrada era recebido por tal advertência.

Esqueci pela primeira vez Aleine e perambulei por ruas escuras, apenas iluminadas com raros lampiões dependurados em árvores no meio da rua. Esgueirava-me pelas sombras dos muros, evitando assim a claridade — com medo de ser reconhecido (o que, hoje lembrando, seria mais um absurdo em meio a tantos: pois como poderiam me reconhecer se nunca eu havia andado por aquelas paragens, tão ermas e distantes da cidade em que nasci!?). Pareciam não me notar, apenas ficavam mais sérios — cerravam os olhos e carregavam o semblante, como certos pais ainda hoje fazem para repreender os filhos pequenos quando eles cometem qualquer danação. Paravam a conversa no meio, interrompiam jogos de cartas, mudavam de calçada ao ter de cruzar comigo — não se dirigiam a mim, é verdade, mas eu sentia neles um certo medo, um vago receio da minha presença. Subi em uma grande árvore para passar a noite — não me arriscava a dormir desprotegido em qualquer banco da praça. Não conseguia pregar olhos, o medo e a excitação dos últimos dias mexeram com meus nervos — e as noites não me permitiam um minuto de descanso. Aproveitei a calma da madrugada para pensar em Aleine, e já sonhava com um novo encontro quando ouvi vozes distantes: confabulavam, discutindo não sei que assunto, pois o vento de vez em quando mudava de direção para em seguida trazer novamente os sussurros; trepei num galho mais alto da árvore e então pude avistar ao longe uma pequena assembleia. Juntavam galhos, acendiam tochas (em quase todas as casas, sinais de mudança: malas nas calçadas, carroças sendo cobertas, mulheres ajeitando as crianças) — formavam uma enorme fogueira, enquanto discutiam apontando em várias direções.

De repente um medo tomou conta de mim, as pernas tremiam, o suor cobrindo meu corpo inteirinho: pensei rápido, um desespero invadindo meus pensamentos; saltei ligeiro da árvore e disparei na mais apressada carreira de que minhas pernas foram capazes, no rumo oposto ao da claridade. Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada — sempre me afastando.

Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que — enquanto eu a procuro — muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela.

(Pedro Salgueiro, Inimigos)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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